Por Talita Vasconcelos
– De onde vocês dois vieram? – perguntou
Vick, surpresa ao nos ver surgindo do nada.
– Não queira saber – respondi, rindo.
– A gente prestes a dar vida a um bando
de monstros, e os dois malucos atravessam uma parede... – comentou Valentina. –
Estou começando a acreditar que esse cara é mesmo um fantasma.
– Pode até ser, mas tem bom gosto –
comentou Leandro, com um sorriso malicioso e um tom de voz sugestivo, tentando
soar o menos fanhoso possível com o nariz completamente congestionado pela
gripe. – O que vocês dois estavam fazendo nessa passagem escura?
– Tentando não ser envolvidos num
barraco – respondi.
Um ponto de interrogação surgiu no
rosto de todo mundo.
– Acho que é o ex-marido da Rita que
está lá em cima, virado na macaca, em ponto de agredir o Otávio – desembuchou
Vicente.
– E ela chegou hoje com cara de quem
fez caquinha logo cedo – disse Vick. – O que será que aconteceu?
– Ah, gente, vocês conhecem bem a
história desse relacionamento da Rita com o Godzilla, né? Num dia ele ameaça
dar uma facada na megera, no outro, os PMs estão enquadrando os dois por
perturbar a paz nos motéis da cidade. O nome dessa doença é frescurite aguda!
– Falando em doença estranha, o Ricardo
apareceu? – perguntei.
– Bom, a Cristiana estava terminando de
enfaixar a cabeça da Múmia da última vez que eu a vi, então, acho que sim –
respondeu Valentina.
Eis que a Cristiana apareceu empurrando
uma cadeira de rodas, onde a Múmia parecia completamente paralisada, seguida
pelo Pedrão, caracterizado como Frankenstein, e com um acessório extra: um tufo
de algodão enfiado no nariz, e a julgar pela coloração vermelha que o tingia de
um lado, ainda precisaria dele por algum tempo.
– O que aconteceu? – perguntei,
espantada.
– Um sujeito maluco procurando confusão
por aqui, o Pedrão foi tentar contemporizar, tomou um murro no nariz – disse
Cristiana. – Foi sorte não ter quebrado.
– Tá... E essa cadeira de rodas? –
perguntou Valentina.
– Seguinte pessoal... – disse
Cristiana, num tom que sempre antecede uma notícia catastrófica. Sem qualquer
exagero no termo. – Houve um pequeno acidente de percurso, nossa Múmia não tem
como ficar de pé, e também não vai poder falar.
– E agora? E os diálogos com a Múmia? –
perguntou Valentina, com uma ponta de desespero na voz.
– Vamos ter que improvisar – disse Cristiana.
– A boa notícia é que podemos manter basicamente o mesmo texto, só que dirigido
a outro personagem.
– Como assim? – perguntou Vick,
impaciente, já pressentindo que vinha chumbo grosso por aí.
E então a aparição mais inesperada
aconteceu. Com um casaco de pele que devia estar cozinhando a pessoa ali
dentro, por cima de um tubinho preto longo, com uma peruca preta e branca e uma
cigarreira comprida na mão enluvada, senhoras e senhores eu lhes apresento o
monstro mais inesperado do dia: Cruella de Vil!
E sim, vou escrever “de Vil” porque eu
me recuso a juntar o nome do capiroto a cinco minutos de entrar no palco. Já
temos azares demais para um dia só.
– Mas que p...?
– Olha lá o que vai falar, mocinho! –
repreendeu a dita cuja, interrompendo a exclamação espantada do Leandro.
A propósito, a dita cuja, no caso, era
a Dona Rosa, nossa figurinista. E é curioso que eu nunca tivesse reparado em
sua semelhança absurda com a Cruella: uma mulher alta e esquelética, com a cara
ossuda, na casa dos quarenta e todos, e com uma voz rouca e grave deformada
pelo fumo.
Praticamente vestida a caráter! Só
faltava escalpelar cachorrinhos...
Pensando bem, melhor não dar ideia para
maluco. Vai que...
– Sem ofensa, Dona Rosa – disse
Vicente, cauteloso. – Está maravilhosa nesse figurino... Mas o que a Cruella
tem a ver com essa história?
– Com o que a gente encontrou lá no
guarda-roupa que poderia servir na Dona Rosa, era Cruella ou Vovó Donalda! –
explicou Cristiana. – E a gente achou que a Cruella tinha mais a ver com uma
história de monstros.
– Não, com certeza, mas desde quando a
Dona Rosa é atriz? – insistiu Vick. – De novo, sem ofensa.
– Não sou atriz, mas sou cara de pau, o
que já é meio caminho andado – respondeu a figurinista.
Não tivemos como discordar. Sem falar
que ela é boa improvisadora, e sempre sai com pérolas engraçadas que já nos
serviram de inspiração para alguns roteiros. Além do mais, ela provavelmente
era a única pessoa ali na produção que devia saber todas as falas de cor. Em
quase todas as apresentações, ela sopra o texto para a galera, no lado oposto
do palco ao ocupado por Rafaela; geralmente sem precisar carregar o roteiro na
mão.
Bem, em circunstâncias normais,
deveríamos questionar como alguém encaixaria um novo personagem na peça na
noite de estreia, com um número considerável de pequenas alterações para
memorizar no último minuto, e com a crítica mais rabugenta da região confirmada
na plateia, mas em meus quase seis anos de Grupo Máscaras aprendi a não duvidar
de nenhum plano maluco dessa galera. Porque, no fim, dando certo ou errado, de
qualquer modo Dona Silvia Rosenthal vai falar mal da gente. E como sempre, a
crítica dela será lida e depositada na pilha das opiniões ignoradas.
Assim sendo, estávamos prontos para
entrar no palco.
Tínhamos um Drácula gripado, um
Frankenstein com nariz machucado, uma Múmia paralítica, uma noiva para dois
monstros e uma Cruella improvisada. Vamos na fé, porque na sorte está difícil.
Unimos as mãos.
–
MERDA!
Continua...
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