Por Talita Vasconcelos
Como foi que
chegamos nessa situação?
Em circunstâncias normais, deveríamos
questionar como alguém encaixaria um novo personagem numa peça na noite de
estreia, com um número considerável de pequenas alterações para memorizar no
último minuto, e com a crítica mais rabugenta da região confirmada na plateia;
mas nos meus quase seis anos de Grupo Máscaras aprendi a não duvidar de nenhum
plano maluco dessa galera. Porque, no fim, dando certo ou errado, de qualquer
modo Dona Silvia Rosenthal vai falar mal da gente. E como sempre, a crítica
dela será lida e depositada na pilha das opiniões ignoradas.
Assim sendo, estávamos prontos para
entrar no palco.
Tínhamos um Drácula gripado, um
Frankenstein com nariz machucado, uma Múmia paralítica, uma noiva para dois
monstros e uma Cruella improvisada. Vamos na fé, porque na sorte está difícil.
Unimos as mãos.
–
MERDA!
***
Agora vamos do princípio...
1ª Mente
Merda.
Merda: substantivo feminino. Chulo. Matérias fecais; excremento, bosta.
(fonte: dicionário Aurélio).
Merda: grito de guerra; desejo de boa
sorte, de bom desempenho. (fonte: tradições teatrais).
Merda: aquilo que acontece quando você
deseja “merda” (boa sorte) a um grupo de atores azarados, antes de um
espetáculo apresentado num casarão assombrado, onde espíritos mal intencionados
têm a mania de interpretar as coisas literalmente. (fonte: Lei de Murphy).
E qual das três definições se aplica ao
nosso grupo? Pois é...
Existe uma tradição no teatro, em que
nunca se deseja boa sorte a um ator. Desejamos que ele quebre uma perna. Ou
merda. O problema é que no Teatro Máscaras, os deuses do palco têm o mau hábito
de compreender os termos literalmente. Ou seja, não importa quão simples seja o
espetáculo, sempre dá alguma merda.
***
Tudo começou como num filme. E um filme
de terror. Reza a lenda que se você pensar positivo, o universo só enviará
coisas positivas para você. O problema é que meus amigos e eu não estamos
exatamente nas boas graças do universo no momento. Isso, ou é verdadeiro o
boato de que o casarão onde funciona o teatro em que nos apresentamos foi
amaldiçoado anos atrás, depois que um marido ciumento assassinou a esposa e o
amante dela e espalhou pedaços dos corpos pela estrutura da casa.
Sério, ouvi uma história bizarra sobre
isso! O Otávio Serqueira, empresário teatral e dono do casarão, tem um
documento e um recorte de jornal da época que confirmam que pelo menos parte
dessa história do casal assassinado e sepultado no casarão é verdade. Acho que
isso explica um molar que eu encontrei certa vez numa rachadura na parede de um
dos banheiros do andar de cima. Nojento!
Dizem que antes de morrer, o amante da
dita cuja, que estava sendo torturado pelo corno, rogou uma maldição sobre seu
assassino e todos que ocupassem o casarão daquele dia em diante. O que
exatamente ele rogou na maldição, ninguém sabe. O documento, escrito de próprio
punho pelo assassino só mencionava que o sujeito o amaldiçoou e ao casarão, mas
não transcrevia as palavras exatas. Isso aconteceu em 1906, então não dá mais
para perguntar às testemunhas. Mas é de conhecimento público que esse
antepassado do Otávio que torturou e assassinou a esposa piranha e o amante
vingativo inventava muita história. Também é de conhecimento público que ele
era chegado na água que o passarinho não bebe, então, vai saber...
O fato é que, desde que começamos a
utilizar o casarão para apresentar nossas peças nunca tivemos uma estreia sem
transtornos. Nem mesmo quando a peça era somente uma montagem especial para o
Mês das Bruxas ou para o Natal.
Já tivemos ator com piriri a dois
minutos de entrar no palco; ator que chegou com uma cobra em posição obscena
desenhada na bochecha com marcador permanente – nem queiram saber como o
coitado conseguiu apagar aquilo da cara depois –, e ele devia interpretar uma
freira; ator que perdeu a voz, e teve que passar a peça inteira fazendo mímica
porque não tinha um substituto na hora – ele teve outro piriri –; uma namorada
sequelada invadindo o palco para dar na cara de um ator porque ele estava
abraçado com um travesti; e não vamos nos esquecer do incidente inacreditável
em que tivemos que mobilizar metade do elenco para desentalar a bunda do Papai
Noel de um frigobar – não me perguntem como ele foi parar lá...
E eu só citei os incidentes menos
bizarros!
O caso é que a Lei de Murphy é
apaixonada pelas nossas estreias, mas tem hora que ela abusa.
Por ser Outubro, nós apresentaríamos
uma montagem inspirada nos monstros clássicos do cinema – Drácula,
Frankenstein, A Múmia e O Fantasma da Ópera. Nosso grupo de teatro sempre
produzia montagens especiais de Halloween e Natal, que só ficavam em cartaz
durante um mês.
Nos preparativos, até que correu tudo
bem. Chegamos cedo para a última passagem do texto, e admiramos o cenário
impecável que tinha sido montado no dia anterior: o salão de um castelo
mal-assombrado, com os móveis cobertos de teia de aranha, algumas velas
inteiras, outras pela metade em candelabros antigos, cortinas de veludo
vermelho pesado emoldurando a grande janela ao fundo, e uma escadaria
igualzinha a do castelo do Drácula, do filme de 1931. Eu olhava para o palco e
esperava que a qualquer momento Bela Lugosi fosse descer, envolto numa capa
preta, com os cabelos lustrosos brilhando sob a débil luz produzida pelas
chamas das velas – embora ainda não estivessem acesas.
Em pé na frente do palco, os oito
atores que dariam vida aos monstros e aos heróis da nossa trama formavam um
grupo espantoso: um homem vestido inteiramente de preto com cara de galã de
cinema; um gigante de quase dois metros de altura abraçando pela cintura a
namorada de olho roxo; uma baixinha de cabelos castanhos ondulados com uma
camiseta do Mickey; uma linda garota de vermelho; a Daphne do Scooby-Doo; um
maluco segurando uma garrafinha de Smirnoff; e outro fantasiado de palhaço.
Sentiu o drama, que esse pessoal é super normal, né?
O galã de preto, Leandro Bittencourt –
Casanova, para os íntimos –, tentava manter alguma distância dos demais, para
não nos contaminar com a gripe repentina que o acometera, mas inevitavelmente
acabaria transmitindo o vírus a algumas de nós ao longo da peça, uma vez que
ele interpretaria o Drácula, e morderia metade do elenco até o fim da noite.
O sujeito grandalhão é o Pedro
Falabella – Pedrão, para íntimos e não tão íntimos –, nosso Frankenstein, e ele
não tinha nada a ver com o hematoma no olho de sua namorada, Cristiana
Alvarenga; aquilo era resultado de sua mais recente briga com a síndica do
nosso prédio, Dona Lourdes – e antes que perguntem, não, a velha não agrediu
minha amiga; a história é longa e complicada demais para explicar em detalhes,
mas o caso envolveu o gato xexelento da Dona Lourdes, a vassoura e o balde da
Bruxa do 71, e uma maçaneta ligeiramente torta. Não estava torta antes, mas
agora está. Como Cristiana vai usar uma tonelada de maquiagem para se
transformar no lobisomem – porque ela sempre pega os papéis mais bizarros, com
muito orgulho –, o olho roxo não fará a menor diferença no nosso espetáculo.
Pode ser até que torne o monstro mais assustador...
Ricardo Casagrande, que interpretaria a
Múmia, estava engolindo um comprimido de Rivotril com a vodca Smirnoff – sua
mandinga pessoal antes de cada espetáculo, o que não raramente explica seus
piriris. Ok, eu não acredito que aquilo seja mesmo Rivotril, como o Casanova
costuma dizer; é mais provável que seja só um comprimidinho de Dramin. Seja lá
como for, não é muito seguro misturar com álcool, apesar de que eu já misturei
analgésico com vinho tinto sem sofrer qualquer efeito colateral, mas isso não
vem ao caso...
A propósito, sou a gata de vermelho,
Emanuelly Lacerda – pode me chamar de Manu –, mas hoje serei Mina Murray, a
paixão/obsessão de Drácula. Ui!
A baixinha com a camiseta do Mickey é a
Valentina Trajano, heroína de nossa peça. A princípio, Leandro e eu escrevemos
a personagem como Elsa Van Helsing, mas depois achamos mais legal manter o
primeiro nome da Valentina.
E você não leu errado: depois de ganhar
o rosto de Hugh Jackman no cinema, Van Helsing será uma mulher na nossa
história. Oremos...
Foi o Leandro quem comentou que a Vick
Lancaster estava parecida com a Daphne do Scooby-Doo, quando ela chegou, usando
um vestido roxo, com as madeixas mais vermelhas do mundo balançando ao vento.
– Um pouco mais gordinha, né!? –
retrucou Vick, de bom humor, fazendo a pose típica da Daphne, com os joelhos
juntinhos e a mãozinha na cintura.
E o motivo de o Vicente Pena estar
fantasiado de palhaço é que ele foi animar uma festa infantil naquele dia, mais
cedo, e ainda não trocara de roupa. Ele será o Fantasma da Ópera, um papel que
cai como uma luva para o Vicente, cuja especialidade é se transformar em
fantasma.
Bem, depois de passar o texto pela
última vez no cenário montado, tomando todo cuidado para não danificar as teias
de aranha falsas, e de ter muita vontade de jogar a Rita Ortega, assessora do
Otávio, que veio acompanhar o último ensaio, de cima do palco para fazer essa
mulherzinha entojada parar de dar pitaco no nosso texto, nós finalmente
estávamos prontos!
Prontos para começar a nos transformar
em monstros.
Continua...
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