Por Talita Vasconcelos
Fui direto para a cozinha do casarão
misturar as coberturas de chocolate e morango. Você pode não acreditar, mas em
muitas séries de vampiro é assim que se faz sangue falso. Claro que a maioria
simplesmente mistura um corante vermelho na cobertura de chocolate, mas quando
não se tem tempo para ficar procurando corante comestível pela cidade, é só
misturar calda de chocolate com calda de morango, e voilà! Temos sangue falso. O que não podemos, nesse caso, é ter um
vampiro diabético em cena...
Bolhas de sangue falso preparadas,
cinzeiros de metal prateado preenchidos e colocados em seus devidos lugares no
cenário para serem utilizados na hora certa – vamos apenas torcer para que
nenhuma formiga apareça por aqui hoje –; agora era só esperar pelo momento de
abrir as cortinas.
Pelo que pude ouvir quando fui colocar os
cinzeiros no palco, o público já começava a chegar. Conferi o relógio: faltavam
quinze minutos para o início do espetáculo.
Achei melhor dar uma olhada no espelho,
para ver se continuava tudo em ordem com a minha caracterização. Mas no caminho
me deparei com uma discussão entre o Otávio Serqueira, dono do casarão/teatro e
um sujeito muito nervoso.
– Manda aquela vaca sair da toca e
devolver a minha máquina!
Hum... Quem será que arrumou confusão
com esse cara? Comecei a me esgueirar pelo corredor para ouvir melhor essa
encrenca, tendo o cuidado de ficar fora do campo de visão dos dois. O cara que
discutia com o Otávio era grandalhão, com cara de poucos amigos, e eu tinha a
impressão de que o conhecia de algum lugar...
– Já falei que ela não está aqui, ela tirou
licença! – gritou Otávio, tentando deter o sujeito.
– O escambau! Eu sei que ela tá aqui.
E de repente o sujeito estava marchando
rapidamente em direção ao corredor – exatamente para onde eu estava escondida.
Sei que é muito ridículo querer correr
e me esconder, afinal, eu não tinha nada a ver com esse rolo, não faço ideia de
quem ele estava procurando ou porque ele estava tão irritado, e tenho certeza
de que eu não era a vaca que pegou o que quer que seja daquele cara, mas acho
que fiquei um pouco assustada com o tamanho dele. Sem brincadeira, o sujeito
era um armário – algo em torno de dois metros de altura por três de largura –,
sem falar que estava furioso. Não parecia ser uma boa combinação.
O problema era que não havia nenhuma
porta ali perto por onde eu pudesse sumir de vista, exceto o escritório da
diretoria, e, naturalmente, era para lá que o sujeito se dirigia. Mas ser pega
descansando lá dentro possivelmente seria menos constrangedor do que ser
flagrada espionando no corredor. Sendo assim, entreguei a alma a Deus e entrei.
Não havia poltrona ou sofá lá dentro.
Havia uma cadeira na frente e outra atrás da escrivaninha e uma no canto da
sala. Fui até a estante, e apanhei o primeiro livro que consegui alcançar. Eu
só estava dando uma folheada num livro para passar o tempo, aliviar a tensão da
estreia... Nada de mais...
Ouvia os passos pesados do gigante se
aproximando, ao mesmo tempo em que o meu coração ia acelerando. Subitamente
senti uma mão cobrindo minha boca, enquanto um braço me apanhava pela cintura e
me tragava para a escuridão.
Em quase seis anos circulando pelo
casarão, eu já tinha ouvido boatos a respeito de passagens secretas, mas sempre
pensei que não passassem disso: boatos. Como a lenda do fantasma do Don Juan
Tenório que assombrava os corredores, e a maldição do Ricardão.
Mas ali estava eu, num corredor escuro,
acessado através de uma passagem na estante do escritório – mais clichê,
impossível –, silenciada pelas mãos do Fantasma da Ópera.
Ele sinalizou para que eu continuasse
em silêncio, e me conduziu pelo corredor até uma escadaria de pedra antiga, que
levava ao andar de baixo.
– Como sabia que eu estava lá? –
sussurrei, quando terminávamos de descer as escadas, nosso caminho iluminado
pela lanterna do celular dele.
– Você não era a única escondida
escutando a discussão – respondeu Vicente, o fantasma.
– Quem era aquele sujeito?
– Acho que é o ex-marido da Rita. Não
sei o que ela aprontou para deixar o homem tão puto.
– O que ela aprontou para deixar
qualquer um puto? Nasceu!
Havia um colchonete, um travesseiro e
um cobertor antialérgico um pouco mais à frente no corredor, pelo pouco que
consegui enxergar naquela quase escuridão, uma mala meio aberta, com algumas
roupas penduradas para fora, e uma mochila encostada na parede.
– Então esse é o seu esconderijo? –
perguntei.
– Bem, eu prefiro o sofá da sala da
contrarregra, ou o camarote três, mas quando alguém resolve aparecer no meio da
noite, o jeito é improvisar para não ser apanhado.
Acontece que o Vicente, além de ator, é
um universitário sem teto, que literalmente mora no casarão/teatro, mas ninguém
da diretoria sabe disso.
Por isso não fiquei tão surpresa por
ele conhecer as passagens secretas daquele lugar. Se alguém sabe se esgueirar
pelo casarão como uma sombra, sem ser visto por ninguém, esse cara é o Vicente.
Ele iluminou a parede do corredor,
perto de sua cama improvisada, e tateou até uma rachadura na parede que abria
outra passagem, de onde emergimos na coxia.
Continua...
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