Houve
uma época em que era comum pessoas criticarem quem gostou do filme Titanic como
se a pessoa tivesse cometido um crime hediondo, ou estivesse desfilando pela
rua com uma calcinha fio dental na cabeça. E verdade seja dita, muitas dessas
pessoas que criticavam quem assumidamente gostou do filme, também gostou, mas
não admitia porque estava na moda zoar o fandom.
Agora,
já se passaram vinte anos desde que o filme foi lançado – misericórdia, dá até
medo mencionar esse fato! –, e vale dizer que, independentemente de a qual
facção você pertencia – os que amaram, assumiram e foram zoados com muito
orgulho; ou os que amaram, guardaram para si, enxugaram as lágrimas pelo DiCaprio, e aporrinharam os amigos que gostavam de ver fotos do elenco do filme
na revista Capricho –, provavelmente vai concordar que Titanic é um dos filmes
mais bonitos já produzidos.
James
Cameron rodou simplesmente a versão definitiva do filme. Afinal, Titanic de
1997 não foi o primeiro filme a mostrar o naufrágio do famoso transatlântico,
mas alguém aí se lembra dos outros?
Hein?
Lembra?
Pois
é...
E
olha que houve uma versão lançada menos de um ano antes, somente para
televisão, estrelada por Catherine Zeta-Jones – a linda Helena De La Vega que
roubou o coração de Antonio Banderas nos dois filmes mais recentes do Zorro – e
Peter Gallagher – o bonitão que passou toda a semana do Natal em coma, sem
saber que estava noivo da Sandra Bullock, enquanto ela arrastava uma asa para o
seu irmão Jack, em Enquanto Você Dormia –, com roteiro não muito diferente do
filme de James Cameron, focado em outros passageiros do Titanic, a maioria
personagens reais, e que também realçava a distinção das classes sociais a
bordo. Curiosamente, esse telefilme só chegou ao Brasil alguns anos depois do
filme de Cameron ter virado hype, e
alguma emissora muito espirituosa – ou muito sem noção, o mais provável – o
exibia com o título Titanic 2! Como
se fosse possível produzir uma continuação da história de um navio que está no
fundo do oceano...
E
na verdade houve um Titanic 2 no
cinema, lançado em 2010, que contava a história de outro navio, que no
centenário do naufrágio recebeu o mesmo nome do fatídico transatlântico, e teve
a missão de refazer sua rota em sentido contrário – de Nova York à Inglaterra
–, mas um tsunami lançou icebergs em sua rota – insinuando que talvez o nome do
navio estivesse amaldiçoado.
Pouca
gente se lembra desses dois fiascos hoje em dia, filmes que tentaram reproduzir
a ideia maravilhosa de James Cameron – o de Catherine Zeta-Jones correu para se
lançar primeiro, mas o filme de Cameron já estava em processo de produção desde
1995 –, só que sem a mesma habilidade, e, sem dúvida, com orçamentos MUITO
menores.
Mas
voltando algumas décadas no tempo, Hollywood produziu vários filmes baseados na
tragédia. Um deles, Saved from the
Titanic, lançado apenas 29 dias após o naufrágio, foi escrito e estrelado pela
atriz Dorothy Gibson, sobrevivente da tragédia. Claro que estamos falando da
época em que os filmes eram mudos, e este, em particular, foi um curta-metragem
de 10 minutos, então, não estranhem ele ter sido gravado, editado e lançado em
tão pouco tempo. Eram outros tempos, outra tecnologia, um outro mundo.
Aliás,
este foi um dos primeiros filmes a utilizar cor em pelo menos duas cenas
gravadas em Kinemacolor. Pena o filme
ter se perdido, já que suas últimas cópias foram destruídas num incêndio. Quem
sabe um dia descubram que aconteceu com ele o mesmo que com Nosferatu, que sobreviveu graças à
cópias piratas.
A
versão que teve maior visibilidade foi A
Night To Remember (Somente Deus Por Testemunha), de 1958, baseado no livro
homônimo de Walter Lord, um documentarista americano. O filme até teve boa
bilheteria na época em que foi lançado, e foi bastante aclamado por
historiadores e sobreviventes do Titanic por sua precisão histórica, mas
posteriormente acabou esquecido.
O
que nos traz de volta ao tão injustamente difamado filme de James Cameron, e ao
motivo de ele ter feito tanto sucesso. Este foi o primeiro filme a focar na
tragédia humana, em vez do desastre histórico. Mas para explicar melhor a
descoberta do sucesso de Cameron, é preciso explicar como ele foi concebido.
Quando
iniciou seu projeto, James Cameron, na verdade, não planejava rodar um filme
sobre o Titanic. O que ele queria era um financiamento para poder explorar
pessoalmente os destroços do navio no fundo do oceano. É sério!
Os
destroços do Titanic foram encontrados em 1985, mais de 70 anos após o
naufrágio, porque, de duas uma: ou o navio seguiu em diagonal enquanto
afundava, afastando-se vários quilômetros do local do naufrágio enquanto descia
mais de três quilômetros oceano abaixo, ou – o mais provável –, o Quarto Oficial
do Titanic, Joseph Boxhall, responsável por atualizar a posição do navio, se
equivocou ligeiramente nos cálculos das coordenadas de sua localização quando
pediu aos operadores de rádio que transmitissem a mensagem de socorro. Esta
hipótese é aceitável, pois, de acordo com depoimentos dos Oficiais do Carpathia, o navio que recolheu os
sobreviventes no mar na manhã da tragédia, eles demoraram um pouco mais que o
previsto para encontrar os botes, pois estavam a 21 km das coordenadas que
receberam pelo rádio. Vale ressaltar que na tarde de 14 de abril, o Capitão
Smith, depois de receber vários alertas de gelo dos navios que iam à frente do
Titanic, mandou que a rota do navio se alterasse um pouco para o sul – provavelmente
ao mesmo tempo em que ordenou que aumentassem a velocidade –, então é possível
que Boxhall tenha realmente se enganado um pouquinho nos cálculos quando deu as
coordenadas ao operador de rádio. Também é possível que o rapaz não tenha
entendido algum dos números rabiscados pelo Oficial, e decidido que não faria
muita diferença transmitir, por exemplo, 21 ou 27, mas isso é especulação
minha...
Mas
como ia dizendo, desde que foram encontrados, os destroços do Titanic atraíram
muita curiosidade. Diversas expedições foram enviadas ao fundo do oceano – e
bota fundo nisso: o navio foi encontrado a 3.843 metros de profundidade, 650 kms
ao sudeste de Terra Nova, Canadá, cercado por um campo de detritos de
aproximadamente 8 km, com objetos e peças do navio que se espalharam enquanto ele
afundava, ou quando ele atingiu o fundo do mar – para explorá-los, examinar sua
conservação ou deterioração, e trazer pedaços e objetos à superfície para serem
estudados e, mais tarde, expostos em museus dedicados às vítimas da tragédia.
Grandes placas de ferro do casco do navio foram resgatadas do naufrágio, e
através delas foi possível constatar que o Titanic foi construído com a
estrutura básica de um navio de guerra, o que certamente colaborou para as
lendas sobre sua invulnerabilidade.
Um
fato curioso é que, embora tenha sido amplamente divulgado posteriormente,
nenhum jornal ou veículo de mídia da época havia descrito o Titanic como
“insubmergível” ou “inafundável” até ele naufragar. Ele era descrito como
“luxuoso”, “gigante”, “o maior navio do mundo”... Mas “inafundável” só lhe foi
atribuído após o desastre. Provavelmente por algum jornalista irônico da
época...
James
Cameron era fascinado por naufrágios, e passou anos obcecado em explorar os
destroços do Titanic. Mas é claro que estúdios como a Paramount e a 20th
Century Fox não financiariam essa expedição a troco de nada. Então Cameron os
convenceu de que ele queria explorar o local do naufrágio para fazer um filme. Ele só não havia decidido
ainda como seria esse tal filme; talvez um documentário...
A
bordo de um submarino extremamente resistente, numa área altamente perigosa,
onde a pressão de 6.000 libras por polegada quadrada da água, e uma mínima
falha na superestrutura do submarino poderia condenar todas as pessoas a bordo,
inclusive o diretor, Cameron realizou seu sonho de descer mais de três
quilômetros no fundo do Atlântico Norte, e ver de perto os destroços do famoso
navio.
As
tomadas que vemos no filme, que mostram imagens do navio no fundo do mar foram
feitas durante esta expedição. O submarino conseguiu acessar partes impensáveis
do sítio arqueológico – e, pelo que se sabe, foi responsável pelo desabamento
de parte da estrutura por causa de um pequeno acidente de percurso numa manobra
–, filmar partes preservadas do navio, inclusive salões e o interior da cabine
do Capitão, objetos pessoais, sapatos abandonados numa posição que indica que
ali, mais de setenta anos antes, foi o local de descanso eterno de uma das
vítimas, há muito decomposta...
Ao
retornar desta expedição, Cameron afirmou ter finalmente compreendido o
Titanic, e tudo o que o navio e seu naufrágio representaram na época. E ele
percebeu que não poderia simplesmente escrever mais um filme técnico,
explicando os eventos que levaram ao naufrágio do maior navio de passageiros do
início do século XX. Ele precisava conectar as pessoas à tragédia humana, ao
trauma das vítimas, e ao que os sobreviventes carregariam ao longo de suas
vidas após aquela noite. E para isso, antes de mais nada, ele precisaria criar
a identificação do público com algumas das vítimas, para que se pudesse
compreender a dimensão da tragédia.
Assim
ele criou nosso casal tão polêmico, tão divisor de opiniões, e,
indiscutivelmente, tão admirado por apoiadores e alopradores do filme.
Para
início de conversa, ele precisava de um casal jovem, porque, partindo do
princípio de que Cameron, indiretamente, se colocou dentro do filme, na pele do
explorador de naufrágios e caçador de tesouros Brock Lovett, que ouviria a
história do Titanic da boca de uma sobrevivente, precisava de alguém que
tivesse possibilidade de ter chegado vivo a 1997, oitenta e quatro anos após a
tragédia, e com lembranças nítidas daquele episódio, logo, não poderia ser uma
criança. Ele forçou a idade de sua protagonista até o limite aceitável: 17
anos, na época do naufrágio; mais ou menos 101, na época do filme. Para quem
gosta de colecionar coincidências intrigantes: Edith Eileen Haisman, uma das
mais longevas sobreviventes do Titanic, morreu em janeiro de 1997 – mais ou menos
dez meses antes da estreia do filme –, aos 100 anos de idade – completados em
outubro –, ela tinha quinze anos quando o Titanic afundou; Lillian Asplund, a
antepenúltima sobrevivente a deixar este mundo, morreu em maio de 2006 – ela
tinha seis anos na época do naufrágio, e completaria cem anos em outubro –; a
última sobrevivente a morrer foi Millvina Dean, em maio de 2009, aos 97 anos –
ela tinha dois meses de idade na época do naufrágio. Esta, pelo menos, não
tinha lembranças traumáticas daquela noite, exceto o que posteriormente lhe
contaram. E aposto que estas últimas se identificaram com o filme.
Em
toda a sua carreira como cineasta, Cameron sempre gostou de contar histórias de
amor, e decidiu que esta era precisamente a melhor maneira de contar a história
do Titanic, e conectar o público a uma tragédia tão distante. Afinal, quem não
gosta de um bom romance? Assim nasceram Jack e Rose, o Romeu e Julieta do
Titanic.
E
não dá para negar que ele foi certeiro! Jack é engraçado, bem-humorado,
otimista, e, se Leonardo DiCaprio não é tão gato quanto algumas pessoas
apregoam, também não desagrada aos olhos de ninguém; e Rose é divertida,
extrovertida, sem frescuras, sem preconceitos, consegue superar suas
fragilidades e sabe ser determinada quando quer.
Pelos
primeiros noventa minutos do filme, Cameron nos apresenta os personagens, conta
como eles embarcaram nessa viagem, como se conheceram, como se apaixonaram, e
faz com que o público também se apaixone por sua história. Só quando já estamos
seduzidos pelo casal, ele revela a noite do naufrágio, e faz com que seus
personagens permaneçam no navio até o fim, e depois fiquem à deriva, não
quentinhos nos botes, de onde teríamos apenas uma visão parcial do desespero
das pessoas que ficaram flutuando na água, a minutos de morrerem congeladas se
a ajuda não se apressasse. Não. Cameron permitiu que seus protagonistas
estivessem entre essas pessoas, para que o público sentisse até o fim a
angústia das vítimas. Porque, naturalmente, ao assistir esse filme pela
primeira vez, todo mundo torcia pela sobrevivência do casal. Sabíamos que Rose
sobreviveria, afinal, era ela quem estava contando a história, mas torcíamos
também por Jack. E posso apostar que a maioria de vocês ficou puto ao ver que o
Cal sobreviveu.
James
Cameron verdadeiramente conectou o público com aquela tragédia, e fez isso
brilhantemente. E o mais importante, ele não deu nenhum ponto sem nó. Ao longo
dessa primeira hora e meia de filme, ele utilizou os personagens que criara e
alguns personagens inspirados em pessoas reais para lançar informações que
ajudam a entender o que realmente aconteceu naquela noite trágica de abril de
1912, e o que levou o Titanic a naufragar. Mas falaremos disso durante a
resenha.
TITANIC
A
equipe de caçadores de tesouros liderada por Brock Lovett mergulha até as profundezas
do Atlântico Norte a bordo de um submarino, para explorar os destroços do
Titanic, em busca de um diamante conhecido como “Coração do Oceano”, que, até
onde se sabe, naufragou com o navio. Seu prazo e seu financiamento estão
acabando, por isso é importante encontrá-lo o quanto antes. Com o auxílio de um
robô, eles conseguem acessar um camarote da primeira classe, e trazer um cofre
à superfície, no entanto, ao abri-lo, encontram apenas o desenho de uma mulher
nua usando a tão almejada joia, datado em 14 de abril de 1912, o dia em que o
Titanic colidiu com o iceberg.
Para
sorte do pesquisador, a mulher do desenho ainda está viva, e vê pela televisão
sua entrevista, revelando a descoberta do desenho, e decide revisitar o passado,
e compartilhar com a equipe de Lovett suas lembranças da fatídica viagem.
Bodine,
outro membro da equipe de exploradores de naufrágios, e ao que tudo indica,
perito neste naufrágio especificamente, desconfia da mulher, pois, de acordo
com sua pesquisa sobre os passageiros, Rose DeWitt Bukater, a modelo do
desenho, morreu no naufrágio do Titanic, aos dezessete anos. Se estivesse viva,
ela estaria na casa dos cem!
Ficaria
surpreso com a lucidez de algumas pessoas, Sr. Bodine. Só que ele tinha mesmo
algumas razões para desconfiar da história da senhorinha, afinal, ela supostamente
embarcou como Rose DeWitt Bukater, com uma passagem de primeira classe; mas pelo
que ela contou ao telefone, e o que conseguiram averiguar, seu nome de solteira
era Rose Dawson, e ela foi atriz nos anos 1920 – o que, para Bodine, é mais uma
evidência de que essa mulher é uma impostora em busca de publicidade. Ela se
casou com um homem de sobrenome Calvert, teve dois filhos, e ficou viúva há
várias décadas.
Querem
mais uma coincidência? A atriz Gloria Stuart, que interpretou a idosa Rose,
tinha 87 anos na época do filme, e precisou que a equipe de maquiagem a fizesse
parecer mais velha. James Cameron queria uma atriz aposentada da Era de Ouro de
Hollywood – anos 1930 ou 1940 – para interpretar a personagem, e Stuart estava
tão lúcida que conquistou o papel no primeiro teste. Ela morreu em 2010, aos
100 anos de idade – aproximadamente, a mesma idade de sua personagem.
De
volta ao filme, pelo sim, pelo não, os pesquisadores decidem trazer a
senhorinha a bordo, e averiguar se ela tem alguma informação a respeito do
paradeiro do diamante. Ela é levada até o barco de pesquisa por um helicóptero,
acompanhada de sua neta Lizzy, e acomodada num camarote muito menor do que o
que ocupou no Titanic, e pede para ver seu desenho.
Claro
que Rose não foi trazida a bordo para falar sobre um pedaço de papel, mas sobre
o diamante azul com o qual foi retratada. Sabem que o diamante viajou da Europa
para a América a bordo do Titanic, e que ele era conhecido como o “diamante azul
da coroa”, pois pertenceu a Luís XVI da França – o marido de Maria Antonieta.
Quando Luís perdeu tudo, inclusive a cabeça, o diamante foi cortado – mas não
na guilhotina –, lapidado e incrustado no colar que chamaram de “O Coração do
Oceano”. Rose só lembra que era uma coisa grande e pesada, e que o nome do
reclamante dele na época do naufrágio era Nathan Hockley, um milionário do aço
de Pittsburg, cujo filho, Caledon, o comprara para sua noiva, Rose. O diamante
tinha seguro e o reembolso foi feito após o naufrágio, o que criou o mito de
que ele afundara com o navio.
Mal
sabe ele que Rose não o ajudará a encontrar o diamante. Mas enriquecerá seus
conhecimentos sobre o Titanic.
Primeiro
a equipe reaviva as lembranças de Rose, mostrando a ela objetos pessoais que
resgataram do camarote naufragado junto com o cofre, como um pente enfeitado e
um espelho de mesa.
E
depois de ouvir de Bodine uma aula teórica sobre como o Titanic afundou, Rose
finalmente começa a compartilhar suas lembranças daquela viagem desde o princípio.
O
Titanic se preparava para zarpar do porto de Southampton na manhã de 10 de abril
de 1912. Os tripulantes faziam a vistoria sanitária dos passageiros da segunda
e terceira classe – somente a terceira classe era realmente obrigada a passar
por essa revista, para garantir que não tinham piolhos –, quando Rose, então
com dezessete anos e o rosto de Kate Winslet, chegou ao porto, acompanhada de
sua mãe, Ruth DeWitt Bukater e seu noivo Caledon Hockley, cuja empresa, segundo
ele, forneceu aço para a construção do navio. Para ela o Titanic não pareceu
tão impressionante quanto a imprensa o descrevera, nem parecia tão maior que
outros navios que ela já tinha visto, como o RMS Mauretania, que até aquele momento detinha o título de maior
navio de passageiros do mundo.
Reza
a lenda, que foi um funcionário da White Star Line, companhia de navegação para
a qual o Titanic operava, quem supostamente fez essa afirmação no cais no dia
em que o navio zarpou. Mas Cameron não podia introduzir tantos personagens
aleatórios no filme, então transferiu a fala ao Cal.
Em
sua narrativa, Rose explica que seu desinteresse pelo Titanic estava
relacionado ao seu noivado forçado com aquele homem.
Enquanto
isso, num Pub perto dali, Jack Dawson ganha duas passagens de terceira classe
para o Titanic num jogo de pôquer.
Notaram
que eu parlo italiano com o sotaque
de um cubano bêbado, né?
Depois
que o convés se esvazia, e o navio ganha o mar, os rapazes fazem a maior festa,
e é quando vemos uma das cenas mais icônicas do filme, quando Jack sobe na
amurada da proa, abre os braços e grita: “EU SOU O REI DO MUNDOOOOOOOO!!!”.
Enquanto o Capitão Smith os observa, satisfeito, lá da ponte de comando.
O
Titanic fez duas paradas antes da travessia do Atlântico: a primeira em
Cherbourg, na França, e a segunda em Queenstown, na Irlanda, mas só a primeira
foi mencionada no filme, e apenas por um
motivo: foi onde Margaret Brown, aquela nova rica simpática que passou o filme
inteiro sendo hostilizada pela mãe de Rose, embarcou. O marido dela tinha
encontrado ouro na América, mas ambos eram de origem bem mais humilde, por isso
ela ainda não havia conseguido conquistar a simpatia de pessoas de sangue mais
ou menos azul, como Ruth DeWitt Bukater. Embora tenha sido chamada de Molly o
filme inteiro, este foi um apelido póstumo; durante sua vida, ela era chamada
de Maggie.
Outras
personalidades reais e importantes que estavam a bordo eram Joseph Bruce Ismay,
presidente da White Star Line, e Thomas Andrews, um dos engenheiros
responsáveis pelo projeto do navio, que almoçaram juntos numa das primeiras
cenas a bordo. Nessa cena, Ismay explica que o nome Titanic – uma derivação de
Titã, seres gigantescos da mitologia grega – foi escolhido por causa do
magnífico tamanho da embarcação.
Foi
ainda na primeira noite a bordo do Titanic que Rose cogitou cometer suicídio.
Ela estava cansada do mundo em que vivia, cercada de pessoas vazias e conversas
sem conteúdo, sem que ninguém notasse ou se importasse com o quanto ela estava
infeliz. E é nesse momento que ela conhece Jack.
Ele
estava deitado num banco no convés superior, admirando as estrelas, quando ela
passou correndo em direção à popa do navio. Evidente que todos conhecemos bem a
cena: Rose pula as grades da amurada, e encara a água lá embaixo, preparando-se
para se atirar no mar; eis que nosso herói se aproxima, oferecendo-se para
pular atrás dela se ela fizer essa loucura, embora acredite que se ela quisesse
realmente se atirar do navio, teria feito sem hesitação. E embora a queda seja
muito alta, o que mais o preocupa é a temperatura congelante da água lá
embaixo, que fará parecer que tem mil facas entrando em seu corpo, e os
impedirá de respirar.
Calmamente
ele a convence a voltar para o navio, e são flagrados justamente quando a
situação é a mais comprometedora possível: quando ele a puxa para dentro, os
dois caem no convés, Jack cai por cima de Rose, e os marinheiros chegam a
pensar que ele a está atacando. Cal fica furioso ao encontrá-los juntos, mas
Rose explica que Jack salvou sua vida, e inventa uma história absurda sobre ter
se debruçado na amurada para ver a hélice, e escorregado, e que ela teria caído
para a morte se Jack não a tivesse segurado a tempo.
A
propósito, esse cara que aproveitou a situação para tirar sarro é o Coronel
Archibald Gracie IV, uma das mais importantes personalidades a bordo do
Titanic, e um dos mais ilustres sobreviventes – embora tenha morrido em
dezembro do mesmo ano, de diabetes.
Pelo
menos, o figurão – no filme – era uma pessoa consciente, e sugeriu ao Cal que
seria conveniente dar uma gratificação ao rapaz por ter salvo a vida de sua
noiva, ao que o milionário manda seu guarda-costas, Spicer Lovejoy, dar vinte
dólares a Jack.
Bem,
Cal pode ser um corno conformado, mas Lovejoy percebeu a incoerência na
história de Rose ter escorregado tão de repente, e Jack ter tido tempo de tirar
o casaco e desamarrar os sapatos para salvá-la, e decidiu ficar de olho nele.
Rose
continua melancólica com sua vida, afinal, ela continua presa à imposição do
noivado, ao Cal e tudo o que ela odeia. Mas seu noivo tem algo para alegrá-la:
um lindo colar de diamante azul, de 56 quilates, que pertenceu a Luís XVI de
França, conhecido como Coração do Oceano, bem apropriado para a realeza. Não
que eles sejam da realeza, exatamente...
É
claro que Rose tinha lá seus princípios, mas bem que ela ficou tentada diante
de uma joia tão fabulosa.
No
dia seguinte, durante o café, Ismay tenta convencer o Capitão Smith a acender
as últimas quatro caldeiras e aumentar a velocidade do navio, pois são
esperados em Nova York na quarta-feira pela manhã, mas se conseguirem
surpreendê-los chegando na terça-feira à noite, atrairão ótimas manchetes
publicitárias para o Titanic, impressionando o grande público não só pelo
tamanho e conforto da embarcação, mas também pela velocidade, e com isso, Smith
ganharia tanto dinheiro que poderia se aposentar, mas o Capitão preferia não
forçar os motores até que estivessem bem amaciados.
Eu
tinha dito que ao longo da resenha trataríamos das circunstâncias que levaram
ao naufrágio, e que Cameron teve o cuidado de incluir no filme. Pois bem,
durante os inquéritos que se seguiram ao naufrágio do Titanic, diversos
passageiros contaram que ouviram Ismay, presidente da White Star Line, fazer
essa proposta indecente ao Capitão, e pressionar os Oficiais para aumentarem a
velocidade, mas no final, a comissão americana de inquérito decidiu que não
havia provas de que Ismay tivesse tomado essa atitude. Sinal de que não é de
hoje que ricos e poderosos saem incólumes de suas acusações.
Outro
fato muito divulgado, mas nunca comprovado, é a versão de que o Capitão Smith
planejava se aposentar após a viagem inaugural do Titanic. Uma outra versão
conta que a White Star Line pretendia manter Smith no comando do Titanic até o
lançamento do HMHS Britannic – projetado para chamar-se Gigantic, mas o nome
foi alterado após o naufrágio de seu irmão do meio, para evitar superstições –,
agendado para 1914.
Prosseguindo
com o filme, naquele dia Rose encontrou-se com Jack para um passeio no convés
da primeira classe, para agradecer por seu salvamento e pela discrição diante
de seu noivo. E aproveitou para conhecer a obra daquele charmoso passageiro da
terceira classe. Jack era artista, e apesar de sua situação financeira modesta,
vivia de um lado para o outro, percorrendo o mundo em busca de inspiração para
seus desenhos. Aparentemente ele acabava de vir de uma longa temporada em
Paris, onde retratou diversas mulheres nuas, e onde produzia retratos a dez
centavos cada. Rose, que desde o princípio nos foi apresentada como amante das
artes, ficou fascinada com o trabalho do rapaz. E confessou que gostaria de ser
livre como ele.
Aliás,
essa é uma cena que deixa claro como Rose era – ou desejava ser – inadequada
para os padrões de uma moça da alta sociedade do início do século XX. Ela não
tem o menor pudor em se debruçar na amurada do convés de passeio coberto e
começar a treinar cuspe à distância com Jack bem diante dos narizes empinados
dos demais passageiros da primeira classe.
Pelo
menos, até serem interrompidos por sua mãe, que vinha passando com a Condessa
de Rothes e com a espirituosa e simpática Molly Brown, que, percebendo os
trajes modestos do rapaz, decidiu lhe emprestar um smoking comprado para o seu
filho, para que ele se mostrasse apresentável no jantar daquela noite com os
grã-finos. Afinal, ela sabia bem o que era não ser aceita por causa de suas
origens humildes.
Assim,
bem trajado, e imitando a pose pomposa dos cavalheiros, Jack é recebido como um
nobre na área social da primeira classe. Um tratamento muito diferente do que
ele receberá no dia seguinte, quando retornar àquele salão para procurar Rose,
vestido com suas roupas puídas, e será escorraçado pelos mesmos funcionários
que naquela noite lhe deram passe livre graças ao smoking do filho de Molly.
O
interessante é que Cal quase nem se importa que o rapaz desfile de braços dados
com Rose pelo salão de jantar. Afinal, se é para levar chifres, pelo menos, que
seja de um cavalheiro bem vestido.
Fazendo
as vezes de cicerone, e de quebra, nos apresentando as personalidades a bordo
do navio, Rose coloca Jack a par das fofocas a respeito das pessoas com quem
está prestes a jantar.
Conheço
um provérbio que diz que quanto mais alta a posição social de uma pessoa,
maiores os pecados escondidos debaixo de seu tapete, e menores os dedos que
apontam para eles.
Que
é? Vão me dizer que nunca viram esse provérbio? Mas se eu o inventei agorinha
mesmo! Admitam, faz todo sentido, não é?
Hein?
Ok...
Enquanto
entram no salão de jantar, Rose cuida em fazer as apresentações; naturalmente,
sem explicar que Jack é um visitante da terceira classe. Como ele está vestido
como um nobre, ninguém desconfia que ele é um artista pobretão.
Quando
Cal pega Rose de volta, Molly dá o braço a Jack e sugere que ele finja ser um
deles, porque se ele fizer tudo certo, ninguém será capaz de perceber que não
é. E os acontecimentos da noite mostram que ela tinha razão. Todas as pessoas à
mesa o aceitaram como um deles, julgando-o pelo modo como estava vestido;
presumiram que era um novo rico, talvez um herdeiro de ferrovias, mas um membro
do clube de qualquer modo.
Ao
menos, até a desagradável mãe de Rose abrir a boca...
Acho
que é desnecessário dizer que Jack não é o tipo de cara que tem vergonha de sua
posição, ou que se deixa abalar por um comentário hostil. E esse é um dos
motivos que fizeram tanta gente chorar por ele em 1997. Mas não vamos adiantar
os fatos.
Para
tentar diminuir o constrangimento de sua mãe da cena, e desviar a
atenção da situação financeira de seu convidado e salvador, Rose comenta que
Jack é artista, e que ele lhe mostrou seu fascinante trabalho esta tarde, ao
que Cal, tão esnobe e desagradável quanto a sogra, retruca que ele e sua noiva
divergem sobre o que consideram boa arte.
Molly
orienta Jack sobre a ordem de utilização dos talheres, e o garçom fica surpreso
quando o rapaz recusa o caviar. Sabe como é, ele prefere uma comida mais...
gostosa.
E
como Jack é a atração do jantar, a conversa toda é sobre ele – pois, ao que
parece, aquela gente não tem muito contato com espécimes de classe tão
inferior, e estão muito curiosos para saber como vivem os menos afortunados.
Fiz
questão de transcrever esse diálogo, porque é uma das maiores mostras dessa
personalidade adorável e cativante de Jack.
E
aqui aproveito para comentar que, embora levantem muita controvérsia a respeito
do talento de Leonardo DiCaprio, sobre ele ter ou não se aproveitado de seu
rostinho bonito – pero no mucho –
para fazer fama no cinema – o que eu discordo –, é impossível não simpatizar
com seu personagem nesse filme. Jack foi convidado àquela mesa por seu rival
para ser o macaco de circo dos grã-finos, e conseguiu não somente não ser
ridicularizado, como Cal esperava, como ainda os impressionou com a única coisa
que o dinheiro daquelas pessoas aparentemente não podia comprar: sua alegria de
viver. Eu tiro o chapéu para o Leo, e para o gênio James Cameron que escreveu
um personagem tão fascinante em seu roteiro.
Na
sequência do jantar, Jack já não é mais o centro das atenções. E temos a
oportunidade de ver Molly – tão gente como a gente, e indiscutivelmente uma das
personagens mais bacanas desse filme – contando uma história engraçada sobre um
dia em que seu marido chegou em casa bêbado
como um gambá – escolha de palavras jamais utilizada pelos ricaços naquela
mesa; não em público, pelo menos –, e totalmente esquecido de que tinha
guardado dinheiro dentro do forno.
Eis
que chega a hora de os cavalheiros se retirarem para um Brandy na sala de
fumar. E Jack aproveita para se despedir, pois conclui que já é hora de
retornar à área dos escravos. Mas não sem antes deixar um bilhete escondido na
mão de Rose, ao beijar seus dedos em despedida.
Agora
é a vez de Jack levar Rose para junto de seus companheiros de viagem e
apresentar seu mundo a ela: um mundo muito mais modesto, porém, em que as
pessoas não se escondem por trás de frescuras ridículas e gestos contidos,
fingindo tolerar umas às outras, e se permitem um pouco de diversão genuína. E
mesmo com Rose afirmando que não sabe dançar como aquelas pessoas, Jack a
arrasta pela pista de dança, girando e saltitando na maior alegria. A certa
altura, ela simplesmente tira os sapatos, manda os escrúpulos para o inferno, e
se deixa levar.
Que
fique registrado: aquilo não é refrigerante, é cerveja preta!
E
só vou colocar essa foto porque tenho certeza de que 99% das pessoas que estão
lendo essa review tentaram fazer isso depois de assistir ao filme. O restante
1% tentou fazer isso durante o filme. Digam aí, quantos conseguiram? Me: not.
Rs.
Enquanto
isso, no lustre do castelo, Cal está paradão feito bocó na sala de fumar,
deixando claro para todo mundo o quanto ele e seus amigos janotas são
enfadonhos, e como o pessoal da terceira classe sabia se divertir muito mais do
que os ricaços a bordo do Titanic.
Teria
sido um início de namorico perfeito, se Lovejoy não tivesse seguido a mocinha e
fofocado tudo ao noivo dela, para que lhe desse um esporro no dia seguinte
durante o café da manhã. E como se não bastasse o jeito dominador de Cal agredi-la
com a louça no café, sua mãe aproveitou enquanto a ajudava a apertar o
espartilho para lembrá-la de que a única coisa que as separava da ruína
financeira era o iminente casamento dela com Cal.
Rose,
sua mãe e seu noivo saem para passear naquela manhã com Thomas Andrews, e
aproveitam para conversar um momentinho com o Capitão Smith, e é quando ficam
sabendo de algumas coisinhas.
O
Titanic vinha recebendo avisos de gelo de outras embarcações desde o dia 12 de
abril. A primeira mensagem foi enviada pelo SS
La Touraine, alertando sobre uma névoa densa, uma espessa camada de gelo na
superfície da água e vários icebergs em diferentes pontos do oceano. As
mensagens eram imediatamente entregues ao Capitão Smith, e em seguida
registradas no diário de bordo por um dos Oficiais.
E
quais foram as providências tomadas?
Pois
é, Sr. Bodine. Como Lovett mesmo explicou ao ouvir essa parte da história de
Rose, os vinte e seis anos de experiência do Capitão não valeram de nada. Ele
achou que se tivesse algum problema, veriam a tempo. Só que o Titanic era um
navio muito grande com um leme muito pequeno; demoraria demais para virar, como
veremos mais à frente.
Pois
o aviso de gelo não foi a única informação inserida naquele passeio de Rose com
o engenheiro do navio. Enquanto passeavam pelo convés dos botes, Rose os
contou, e teve a impressão de que não havia botes suficientes para todos a
bordo.
A
afirmação do Sr. Andrews no filme na verdade, não é exata, mas está mais ou
menos correta. O Titanic estava equipado com vinte botes salva-vidas, sendo
catorze com capacidade para 65 pessoas, dois cúteres de emergência com
capacidade para quarenta pessoas, e quatro botes desmontáveis Engelhardt com
capacidade para 47 pessoas. De modo que, teoricamente, os vinte barcos poderiam
acomodar 1.178 pessoas, ou seja um terço da capacidade total do navio, que
seria de 2.435 passageiros e 892 tripulantes, que totalizariam 3.327 pessoas.
Entretanto, em sua única viagem, o Titanic transportou cerca de 1.316
passageiros – supostamente, a lista nunca foi oficialmente concluída, porque
ela incluía nomes de pessoas que cancelaram a viagem na última hora, e algumas
pessoas embarcaram com pseudônimos. Seja lá como for, e apesar do desembarque
de alguns passageiros durante as paradas na França e na Irlanda, o Titanic fez
a travessia com mais ou menos 2.208 pessoas a bordo, das quais mais ou menos
metade caberiam nos botes. Somente 710 pessoas conseguiram embarcar neles
durante o naufrágio, pouco mais da metade de sua capacidade total.
E
apesar de parecer estranho esse número tão insuficiente de barcos salva-vidas a
bordo do navio, o Titanic carregava mais botes do que as legislações marítimas
exigiam na época, pois acreditava-se que navios daquele tamanho demorariam para
afundar, de modo que os botes serviriam apenas para transportar os passageiros
para o navio de resgate. As leis marítimas foram alteradas em 1914, através da
Convenção Internacional Para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar, exigindo que
os navios sempre tivessem botes suficientes para todos a bordo.
Há
ainda uma lenda de que os navios da época estavam sendo projetados para servir
como seus próprios botes salva-vidas, e permanecer flutuando com os motores
desligados pelo tempo necessário até que o socorro chegasse e todos os
passageiros fossem transportados em segurança, o que poderia até ter acontecido
com o Titanic, não fosse por uma circunstância muito especial, de que falaremos
daqui a pouco.
Jack
vai ao encontro de Rose quando ela está retornando desse passeio, e ela,
sentindo-se pressionada pela conversa que teve com a mãe pela manhã, tenta
dispensá-lo, mas ele percebe que ela não está sendo sincera.
A
princípio, Rose volta para junto de sua mãe, deixando Jack arrasado com a
rejeição. Mais tarde, porém, depois de ter passado a maior parte do dia ouvindo
a mãe se gabando com a Condessa e com Molly sobre os preparativos para o
suntuoso casamento, e finalmente se dando conta da tortura que sua vida se
tornará se seguir em frente com este arranjo, Rose finalmente toma a decisão
que mudará sua vida para sempre: ela vai ao encontro de Jack na proa do Titanic
ao entardecer, e diz que mudou de ideia, e que quando o navio aportar, ela irá
desembarcar com ele, rumo ao desconhecido.
E
então, vemos outra das cenas mais icônicas desse filme, quando o casal se
equilibra na proa do Titanic, e Jack a faz voar de olhos fechados, cantarolando
em seu ouvido, antes de beijá-la pela primeira vez.
E
não me venham com isso de que a música é enjoativa...
Enfim,
somos então transportados para uma imagem da mesma proa naufragada, oitenta e quatro
anos depois, e a Sra. Rose nos diz que aquela foi a última vez que o Titanic
viu a luz do dia. Estamos rememorando o entardecer do dia do naufrágio.
Rose
leva Jack ao seu camarote, mostra a ele o colar que ganhou como presente de
casamento de Cal, e pede que Jack a desenhe como uma de suas francesas, usando
somente o diamante azul. E assim ele o faz. Porque ela está pagando – aqueles
dez centavos de praxe.
A
propósito, uma coisa interessante nesse roteiro que eu queria comentar, e não
vou ter outra oportunidade: já falei que Rose é amante das artes, e ela
aproveita também esta ocasião para mostrar a Jack algumas de suas aquisições –
pinturas de Munier, e, como disse ao noivo lá no começo do filme, quadros de “Alguma Coisa” Picasso. Não sei se
realmente Picasso não era um cara muito conhecido naquele tempo; sei que ele já
tinha feito exposições importantes, mas, segundo Cal, ele não chegaria longe
com um nome daqueles (se ele soubesse...),
mas pelo menos os quadros do Sr. Picasso foram baratos. É possível que Cameron tenha feito uma brincadeira com a
dificuldade de comunicação e divulgação daquela época, porque no começo do
filme, ele também fez Rose mencionar Freud, e o Sr. Ismay pensou que ela
estivesse falando de um passageiro.
Enfim,
depois de retratar a moça fantasiada de Eva, com o “Coração do Oceano” no
pescoço – com uma postura extremamente profissional, diga-se de passagem –,
Jack guarda o colar no cofre, a pedido de Rose, enquanto ela escreve um bilhete
para noivo, que será deixado com o
desenho ao lado da joia, assim ele poderá admirá-la apesar do pé na bunda.
Enquanto
isso, lá fora, um dos Oficiais começa a se preocupar porque o mar está calmo
demais, como se fosse um lago, sem nenhum sopro de vento. Assim fica mais
difícil ver icebergs, sem a água quebrando nas bases. Mas Smith não está preocupado,
e ordena que mantenham a velocidade e o curso.
Atualmente
sabe-se que uma água extremamente calma como aquela encontrada pelo Titanic na
fatídica noite de 14 de abril é um sinal da presença de icebergs por perto,
porém, isso não era de conhecimento dos marinheiros na época.
De
volta ao nosso casal favorito, Jack e Rose escutam passos, e fogem do camarote,
deixando a pasta e os desenhos de Jack para trás.
Os
dois correm pelo navio, descem até a sala das caldeiras, despistando Lovejoy, o
cão de guarda de Cal, e conseguem entrar no porão de carga, onde fazem amor no
banco de trás de um Renault novinho em folha.
Sentindo
aquela coceirinha incômoda e muito suspeita em sua testa, Cal retorna ao
camarote e dá uma espiada no cofre – será que ele pensou que encontraria Rose
lá dentro? Encontra o diamante exatamente onde o guardou, e o desenho numa
pasta de couro com o bilhete de Rose.
Claro
que o playboy não gosta nadinha de saber que foi trocado por um pé rapado, e já
começa a arquitetar um plano para separar o casalzinho.
Naturalmente,
quando os seguranças chegam ao porão de carga encontram somente a marca deixada
pela mão suada de Rose na janela do carro, mas os pombinhos já se escafederam.
Os dois já estão lá no convés superior, planejando o que farão depois que o
navio aportar em Nova York.
Eis
que...
Os
vigias tocam o sino de alarme, e telefonam para a cabine de comando para avisar
sobre a emergência aos berros. Aí começa o desespero: o Primeiro Oficial
William Murdoch manda virar à bombordo; os marinheiros correm para executar sua
ordem, a todo vapor; as luzes de emergência são acesas; os registros das
caldeiras são fechados; os motores são revertidos, mas a máquina demora para
responder. Estima-se que o navio tenha demorado cerca de quarenta segundos para
começar a virar. Quarenta segundos, a uma velocidade de 21,5 nós (41 km/h), com
um iceberg diretamente em frente, tendo sido avistado já muito perto,
significou a morte para o Titanic.
O
navio colidiu com o iceberg no lado estibordo, arranhando o casco abaixo da
linha d’água. Murdoch ordenou a virada para estibordo, a fim de mudar o curso
da popa e evitar que o gelo danificasse toda a extensão do navio, e também
ordenou o fechamento imediato das comportas estanques para tentar conter a
água. Ao ser informado do ocorrido, o Capitão Smith ordenou que todas as máquinas
fossem desligadas, e mandou chamar Thomas Andrews para investigar as avarias.
Lembram
que eu falei de uma circunstância especial que impedia que o Titanic flutuasse
até a chegada do socorro, como se fosse um bote salva-vidas gigante, conforme o
projeto da Companhia? Então, quando projetaram o navio, a ideia dos engenheiros
era que o Titanic pudesse continuar flutuando com quatro compartimentos
inundados na proa. Mas quando o iceberg rasgou o casco, inundou cinco compartimentos. Aconteceu apenas o que não poderia ter acontecido.
As bombas podiam retirar quatrocentas toneladas de água por hora, mas não era
suficiente para conter a inundação no navio; no máximo elas serviriam para lhes
dar algum tempo.
A
partir daquele momento, várias providências começaram a ser tomadas para a
evacuação do navio. Vemos no filme uma cena da sala das caldeiras, com as
comportas se fechando e os carvoeiros e os mecânicos tentando abandonar
rapidamente o local de trabalho e salvar suas vidas, mas na realidade pouquíssimos
membros desta parte da tripulação sobreviveram, pois era necessário evacuar
todo o vapor das caldeiras para evitar que entrassem em contato com água, o que
poderia ocasionar uma explosão. Além disso, os eletricistas tiveram que
permanecer em seus postos até o final, para garantir que as luzes se
mantivessem acesas e o rádio funcionando pelo máximo de tempo possível, para
que pedidos de socorro pudessem continuar a ser enviados.
Vemos
também o Capitão Smith mandar o operador de rádio transmitir CQD – a sigla de
socorro utilizada na época –, e avisar a quem responder que estão afundando
pela proa e precisam de ajuda imediata, dando-lhe um pedaço de papel informando
sua posição. Bem, no filme, foi Smith; na vida real, quem calculou a posição
foi o Quarto Oficial Joseph Boxhall, como já mencionei anteriormente.
Os
Oficiais da ponte começaram a preparar os botes, e a tripulação começou a
acordar os passageiros para que colocassem os coletes salva-vidas e fossem para
o convés superior. Ao menos coletes eles tinham de sobra, já que não havia
botes para todos. Os passageiros da terceira classe, a mais imediatamente
afetada pela colisão, começaram a seguir os ratos, imaginando que eles
conheceriam o caminho mais seguro por instinto.
Enquanto
isso, Jack e Rose voltaram para o camarote dela para avisar Ruth e Cal sobre o
ocorrido, e encontraram o mauricinho dando piti, gritando aos quatro ventos que
fora roubado, e exigindo que o camarote inteiro fosse fotografado.
Rose
não acredita que Jack tenha roubado o colar, pois esteve com ele o tempo todo,
mas Cal sugere que ele possa ter feito isso enquanto ela se vestia – sem o
menor pudor em difamá-la na frente de todos. O caso é que o casaco de Jack
tinha sido deixado num banco no convés superior por um passageiro da primeira
classe, e Jack o pegou emprestado sem pedir – mas ele garante que ia devolver!
–, e tinha o nome do dono bordado na parte de dentro, por isso Rose fica
desnorteada, sem saber em quê acreditar. Jack é então levado pelo chefe da
segurança, e um camareiro pede que, quando Cal terminar de esbofetear a moça e
chamá-la de vagabunda, coloquem casacos quentes e um colete salva-vidas e se
dirijam ao convés dos botes.
A
propósito: Lei Maria da Penha mandou lembrança, Sr. Hockley!
Rose
e Cal se juntam em seguida aos outros passageiros da primeira classe ao pé da
Grande Escadaria, e a mocinha pede que Andrews seja honesto sobre a situação do
navio. Ele confirma que o Titanic irá afundar em mais ou menos uma hora, e pede
que ela conte a quem tem que contar, pois ele não quer ser responsável por
pânico, e lembra a ela sobre a conversa que tiveram a respeito dos botes,
pedindo que ela se ponha em segurança o mais rápido possível.
Um
dos operadores de rádio avisa ao Capitão que o navio mais próximo a responder
foi o RMS Carpathia, que estava a 93
km do Titanic, navegando em sua velocidade máxima, que é de 17 nós, podendo
chegar em quatro horas. E será tarde demais.
Desolado,
e um tanto catatônico, o Capitão Smith concorda com a sugestão do Segundo
Oficial Charles Lightoller, de começar a embarcar as mulheres e as crianças nos
botes. Na vida real, foi realmente Lightoller quem assumiu o comando dessa
evacuação, pois ele já tinha passado por um naufrágio, e era talvez o Oficial
mais preparado para emergências a bordo. Mas houve uma pequena falha na
comunicação quanto a esta ordem, pois, enquanto o Primeiro Oficial Murdoch, que
se encarregou dos botes do lado bombordo, interpretou a ordem do Capitão como
sendo para embarcar mulheres e crianças primeiro,
Lightoller, responsável por organizar os botes do lado estibordo, interpretou
que era para embarcar mulheres e crianças apenas.
Pelas fontes que verifiquei, o filme pode ter invertido o lado do navio em que
cada Oficial atuou durante o naufrágio. O filme retratou Lightoller como
extremamente rigoroso, e talvez até muito frio, mas a verdade é que talvez ele
tenha sido um dos maiores heróis dessa história, uma vez que nenhum dos Oficiais
a bordo tinha recebido o treinamento adequado para lidar com uma emergência
desse porte, e que ele tomou a iniciativa de assumir as ações de evacuação e
salvamento, diante da inanição do Capitão Smith. Ele também foi o Oficial mais
sênior a sobreviver ao naufrágio, e muito sem querer querendo: o Segundo
Oficial foi varrido do convés por uma onda, e jogado para cima do bote
desmontável B, que estava emborcado; ele conseguiu subir em cima dele e depois
foi resgatado por outro bote.
Enquanto
os Oficiais vão preenchendo e baixando os botes, outros marinheiros começam a
soltar fogos de artifício, que eram usados como sinalizadores no mar, para o
caso de algum navio passar por perto, e perceber que precisavam de ajuda.
E
na verdade havia um navio próximo ao Titanic naquela noite. Aliás, próximo o
bastante para que suas luzes fossem vistas no horizonte. Cameron chegou a
filmar uma cena que mostraria essa parte da história, mas acabou sendo cortada
da edição final do filme. O SS Californian
era um cargueiro britânico, que iniciou a travessia do Atlântico no dia 5 de abril,
rumo a Boston, Massachusetts. Segundo relatos de Oficiais do Californian e de
sobreviventes do Titanic, o cargueiro navegava algumas horas à frente na tarde
de 14 de abril, e por volta das 19 horas, uma mensagem de rádio foi enviada do
Californian para o Titanic, informando sobre os campos de gelo à frente. Esta
mensagem foi entregue ao Capitão Smith. Com a noite já escura, o Californian
adentrou acidentalmente uma região onde havia vários icebergs em volta, por
isso se viram obrigados a desligar as máquinas e esperar amanhecer para
prosseguir em segurança, com maior visibilidade dos blocos de gelo. Às 23:20,
ao ver as luzes do Titanic se aproximando no horizonte, o Operador de Rádio do
Californian emitiu outro aviso de gelo, só que nesse momento, por causa da
proximidade com o Continente Americano, o Operador de Rádio do Titanic, Jack
Phillips estava trabalhando na transmissão de inúmeras mensagens pessoais dos
passageiros. Quando o aviso do Californian chegou, a proximidade entre os
navios fez com que a mensagem literalmente gritasse no ouvido de Phillips, que
mandou o Operador do Californian “calar a
boca, pois ele estava ocupado”. Às 23:30 o Operador do Californian desligou
o rádio e foi dormir – as regulamentações marítimas da época não exigiam que o
rádio ficasse ligado vinte e quatro horas por dia, ainda mais com o navio
parado. Dez minutos depois, o Titanic colidiu com o iceberg.
Vários
sobreviventes afirmaram ter visto as luzes de outro navio no horizonte – a uma
distância aproximada de dez a doze quilômetros –, mas desde que a tragédia
aconteceu, ninguém mais se entendeu com as versões dessa história. Segundo
depoimentos dos Oficiais do Californian, ao ver o outro navio disparar fogos de
artifício, o Capitão foi acordado, e pediu que tentassem a comunicação através
da Lâmpada Morse, para verificar o que estava acontecendo, mas não obtiveram
resposta. Também não tinham certeza de que se tratava do Titanic. Tampouco
explicaram porque não acordaram o Operador de Rádio para que tentasse descobrir
o motivo dos sinais luminosos. O rádio
só voltou a ser operado na manhã seguinte, depois que o Carpathia entrou no
horizonte, e foi quando descobriram que o Titanic havia colidido com um iceberg
durante à noite e ido a pique.
Embora
a tentação de responsabilizar o Californian pela omissão de socorro seja
grande, é preciso ter em mente que eles estavam cercados por um enorme campo de
gelo, e que a travessia para ir em socorro do Titanic, se tivesse sido feita,
precisaria ser lenta e cuidadosa, para desviar dos icebergs no caminho. Não se
sabe se eles seriam realmente capazes de se aproximar a tempo de salvar mais
pessoas.
De
qualquer modo, o Capitão Stanley Lord teve sua carreira e sua reputação
destruídas por conta desse incidente. E três anos mais tarde, durante a Primeira
Guerra Mundial, o Californian foi requisitado pela Marinha Real Britânica, para
o transporte das tropas no Mar Mediterrâneo, acabou sendo bombardeado por um submarino
alemão e afundou próximo à Grécia – curiosamente, ele afundou a menos de
duzentas milhas do local onde um ano mais tarde o HMHS Britannic, navio irmão do Titanic também afundou. Mas isso não
vem ao caso.
De
volta ao nosso filme, Rose apressa sua mãe a embarcar logo num bote, mas a
madame está preocupada se eles estão sendo preenchidos de acordo com as
classes. Mas será que até na hora de morrer essas peruas conseguem manter o rei
na barriga?
Falando
em gente desagradável...
E
com isso ele conseguiu ganhar mais um olhar feio, um elogio mental para sua
santa mãezinha, e uma cuspida na cara – porque Rose é uma aluna de primeira! –,
depois de tentar argumentar que se ficar com Jack, e se por algum milagre os
dois conseguirem se salvar, ela será só a vadia de um pé rapado que recusou a
vida de princesa que ele poderia lhe dar.
Então
ela corre em socorro de Jack, que está algemado a um cano no escritório do
mestre-de-armas, sendo ridicularizado pelo cão de guarda de Cal, Spicer
Lovejoy.
Depois
que o palhaço vai embora, Jack começa a gritar por socorro, pois a água já
começa a invadir aquele piso, mas não há ninguém naquela área do navio para
ouvi-lo. Rose pede instruções a Andrews para localizar o escritório do
mestre-de-armas, determinada a encontrar Jack com ou sem ajuda, mas sem ajuda
vai demorar mais. O ascensorista não está muito disposto a levar Rose para
baixo, mas a essa altura do campeonato ela não está com tempo para delicadezas ou
para continuar fingindo ser uma Lady.
Levá-la
para baixo, ele até leva – por livre e espontâneo medo de que ela saque um
alicate de cutícula do bolso –, agora esperar que ela resgate seu amado,
enquanto a água invade o elevador, é outra história...
Seguindo
as instruções de Andrews, Rose não demora a localizar Jack, mas a chave reserva
da algema aparentemente tomou chá de sumiço.
Falou,
Sr. Óbvio! Rose sobe um deck, e grita por ajuda. Um tripulante que vem
passando tenta arrastá-la para cima, pouco interessado em ouvir o problema do
homem que está algemado num cano, a minutos de morrer afogado, e ela somente
consegue se livrar dele lhe dando um soco no nariz, ao perceber que ele não
quer nem soltá-la, nem ajudá-la. Daí, claro que ele a manda para o inferno. E
para piorar, as luzes começam a oscilar, deixando-a momentaneamente no escuro.
Mas
quando a luz se restabelece, ela vê um machado lacrado num vidro, quebra-o com
a mangueira de incêndio, e retorna à sala de segurança para libertar Jack. E a
água está subindo bem depressa, porque quase não dá pé para ela perto das
escadas. Felizmente, a sala onde Jack está algemado fica mais próxima da popa,
então o nível da água ali ainda está na cintura de Rose.
Acho
que não existem muitas provas de confiança maiores do que essa: permitir que
uma pessoa claramente sem pontaria separe suas algemas, enquanto bate os dentes
por estar em contato com a água quase congelada. Mas como a outra opção era
morrer afogado, Jack não estava realmente em condições de negociar.
Claro
que tudo dá certo, e ela bate certinho na corrente das algemas, partindo-a e
libertando seu amado. Agora eles só precisam subir para o convés superior e
torcer para ainda ter vaga nos botes.
Agora
você vê... O navio afundando e o cara preocupado em comer o rabo dos vândalos...
Enquanto
o casal tenta salvar a própria pele, Andrews tenta salvar quantos puder. Ele repreende
Lightoller por estar baixando os botes sem a lotação completa, ao que o Oficial
responde que não tinha certeza sobre o peso que os barcos podiam suportar sem
afundar.
Essa
parte é verdade: nenhum dos Oficiais e marinheiros a bordo sabiam a capacidade
exata dos barcos; além disso, embora muito se fale a respeito da quantidade insuficiente
de botes no Titanic, a falta de preparo, conhecimento e organização da
tripulação sobre como preenchê-los e lançá-los adequadamente, poderia ter
tornado a presença de botes adicionais irrelevantes no naufrágio. Apesar da
bronca do engenheiro, os Oficiais não tinham muita culpa nesse caso.
Cal
juntou seus trocadinhos – o que neste caso significa alguns milhares de dólares
–, enquanto Lovejoy procurava Rose pelo navio.
Falou
a língua dele, né, querido! Enquanto Cal vai lá subornar o Primeiro Oficial
Murdoch em troca de uma passagem no bote mais próximo, o pessoal da terceira
classe está lutando contra as grades trancadas por membros da tripulação para
evitar que a gentalha faça tumulto no convés. Alguns até deixam mulheres e
crianças passarem, mas simplesmente batem o portão na cara dos homens que
tentam se salvar. Então Jack reúne a rapaziada, arrancam um banco de madeira no
corredor, e Rose abre espaço na multidão para que eles possam usar o banco como
aríete e arrombar o portão.
A
situação no convés principal é bem crítica nesse momento. Os barcos estão
acabando, e as pessoas começam a pular nos últimos botes que estão sendo
baixados, tentando se salvar a qualquer custo. Apesar disso, os músicos
permanecem tocando, para tentar confortar aqueles que claramente não
conseguirão embarcar nos botes.
E
alguém ainda se atreve a reclamar desse filme?! O cara prestes a morrer afogado
ou congelado – não sei o que é pior –, e ainda consegue encontrar espírito para
fazer piada!
Falando
em piadinha, Lovejoy vai lá fofocar pro Cal, que acaba de subornar Murdoch em
troca de um assento no bote que ele está preenchendo, que viu Rose correndo
pelo convés, e o playboy desiste de embarcar para ir lá tomá-la de volta; e
dane-se o resto. Quando ele vira as costas, o Sr. Ismay se enfia de fininho no
bote. E como o cara é o presidente da Companhia, e de mais a mais, Cal já pagou
por aquele assento, Murdoch faz vista grossa.
Num
momento de suposto estoicismo, Cal coloca seu casaco em Rose, e a convence a
embarcar num bote, garantindo que fez um trato com o Oficial do outro lado para
que ele e Jack embarquem no próximo. Mas Rose, que não é boba nem nada, e
conhece aquela raposa de outros carnavais – afinal, ela ia se casar com ele –,
percebe pelo olhar de despedida de Jack que seu ex-noivo mentiu, e que ele
jamais incluiria o artista no trato. O romance poderia ter terminado ali: ela
se salvando, e ele ficando para trás para morrer no naufrágio, mas isso não
seria romântico; tampouco serviria ao propósito do filme de mostrar a agonia
dos passageiros até os momentos finais, através do nosso simpático casal. Então,
em outra das cenas mais memoráveis do filme, Rose pula de volta para o navio,
disposta a permanecer com Jack até o fim.
Despeitado,
Cal rouba a arma de Lovejoy e atira na direção do casal, forçando-os a descer
alguns níveis, até o salão de jantar parcialmente inundado. E de repente ele se
dá conta de sua própria estupidez.
Essas
próximas cenas serviram mais para dar um pouco de ação e emoção aos momentos
finais do navio, do que de fato para o bom andamento do roteiro. Mas, de certo
modo, também serviram para mostrar o desespero de alguns passageiros que ainda
estavam nas entranhas parcialmente inundadas do Titanic, quando já quase não
restavam botes salva-vidas.
Jack
e Rose se esconderam numa das escadas que davam acesso ao piso inferior,
inundado, e encontraram um menino perdido no corredor. Jack o pegou e tentaram
salvá-lo, mas o pai do menino – ao que tudo indica, um estrangeiro – não
percebeu a intenção do casal, tomou-o de volta, e correu com ele para a saída
mais próxima, sem saber que era precisamente o lado por onde a água estava
entrando. O casal tenta escapar da fúria da água, mas acabam arrastados pela
correnteza até um portão trancado. Com esforço, eles conseguem se arrastar de
volta à escada, mas batem em outra barreira trancada.
Estão
se perguntando por que diabos alguém andou trancando os portões com o navio
afundando? Quando o mais lógico seria deixar todas as passagens abertas, para
que as pessoas pudessem sair sem obstáculo. Estão lembrados de que os homens da
terceira classe tiveram que arrombar um portão porque os tripulantes não
queriam deixá-los passar? Desde o naufrágio, há rumores de que certos
tripulantes do Titanic teriam trancado as barreiras que separavam a terceira classe
das acomodações da primeira e segunda classes, para impedir que essas pessoas
corressem para os botes. Felizmente para o nosso casal fictício, um comissário
que vinha passando não estava muito preocupado em saber a qual classe de
passageiros eles pertenciam, e, com as mãos trêmulas, tentou destrancar o
portão, mas desistiu quando as chaves caíram na água, decidindo salvar a
própria vida. Coube a Jack mergulhar, recuperar a chave, e destrancar o portão
às cegas, para que pudessem retornar ao convés superior.
No
convés o caos é total. Muitos homens se espremem, tentando embarcar num dos
últimos botes, inclusive Cal, mas agora Murdoch só está permitindo a passagem
de mulheres e crianças. Diante da confusão que se instaura ao redor, o Oficial
puxa um revólver para tentar conter os homens, e acaba baleando dois deles,
incluindo Tommy, o amigo irlandês que Jack conheceu no navio. Em seguida,
reconhecendo que passou dos limites, e que nem todo o dinheiro que alguns estão
oferecendo – leia-se Cal – poderá
salvar qualquer um deles, o Oficial Murdoch bate continência pela última vez
antes de atirar na própria cabeça, e despencar do navio.
Embora
exista a lenda de que um dos Oficiais – nome jamais mencionado – teria cometido
suicídio com o revólver que recebeu para conter a invasão dos passageiros em
seus botes, a maioria dos historiadores desmente a veracidade dessa história. Essa
cena também foi duramente criticada pelos familiares de Murdoch, pois a
liberdade artística de James Cameron danificava a reputação heroica do Primeiro
Oficial. O diretor se desculpou em seu comentário em áudio, porém afirmou que
muitos Oficiais dispararam armas para manter a política do “mulheres e crianças
primeiro”.
Sem
outro recurso para garantir sua salvação, e sem tempo para continuar curtindo
sua dor de cotovelo, Cal pega uma menina da terceira classe que encontrou
chorando próxima da área dos botes, e mente ao Oficial que ele é tudo o que ela
tem, conseguindo assim permissão para embarcar.
O
que não faz o desespero, não é mesmo? Em circunstâncias normais, um sujeito
arrogante como ele nunca tocaria numa criança tão mal vestida. Como acreditaram
que ela tinha qualquer parentesco ou ligação com um sujeito de smoking, é um
mistério...
Ao
menos ele fez uma boa ação em sua
vida. Ainda que tenha sido só para salvar o próprio rabo...
Enfim,
Andrews é visto pela última vez diante de um relógio sobre o console da lareira
da sala de fumar da primeira classe, quando pede perdão a Rose por não ter
construído um navio mais forte, e dá um colete salva-vidas para ela. O
engenheiro sequer tentou se salvar. Não se sabe como o verdadeiro Thomas
Andrews morreu.
Outro
que sequer tentou se salvar – pelo menos no filme – foi Benjamin Guggenheim,
que foi mostrado perto da Grande Escadaria da primeira classe, vestido com seus
melhores trajes e pronto para afundar como um cavalheiro.
Apesar
da pouca participação, ele foi um dos personagens mais carismáticos do filme.
A
essa altura, o Capitão Smith também não dá mais atenção a ninguém. Agora é cada
homem por si. Como todo bom capitão da velha guarda, que sempre afunda com seu
navio, Smith é visto entrando na cabine do leme, onde se afoga quando a água
estoura os vidros, nos momentos finais do naufrágio. Embora, na realidade, não
se saiba se ele morreu dessa forma, ou se ele congelou até a morte, pois
relatos dão conta de que ele foi visto próximo ao Bote Desmontável B.
Os
músicos, que até então tocavam ininterruptamente no convés superior, se
despedem, desejando boa sorte uns aos outros, mas quando o líder da orquestra,
o violinista Wallace Hartley decide permanecer no convés, e tocar sua última
canção, os outros também voltam para acompanhá-lo. O filme mostra a orquestra
tocando o hino evangélico da Harpa Cristã “Nearer, My God, to Thee” (em
português “Mais Perto Eu Quero Estar”), mas existem divergências sobre esta ter
sido realmente a última música executada pelo grupo, ou se foi a valsa “Autunn”.
Aparentemente eles tinham razão, e ninguém estava realmente escutando. Nenhum
deles sobreviveu ao naufrágio. E o maior de todos os desaforos: como eles eram
terceirizados, e seus uniformes eram fornecidos pela empresa de quem eram
contratados, mais tarde suas famílias ainda receberam uma conta da firma pelos
uniformes perdidos.
Ao
pressentir que o fim está próximo, Andrews para o pequeno relógio sobre o
console da lareira, para que se registre a hora do fim.
Nos
momentos finais, vemos uma sequência de flashes com os desfechos de diferentes
personagens: vemos um casal de idosos abraçados na cama, enquanto a água sobe –
eles são personagens reais, o ex-congressista de Nova York Isidor Straus e sua
esposa Ida; ela recebeu a oferta para embarcar num bote, mas recusou, decidindo
honrar seus votos de casamento e permanecer ao lado do marido. Vemos uma mãe da
terceira classe contando uma história de ninar aos dois filhos num beliche,
para que durmam antes de se afogar. Vemos também as obras de arte submersas nos
camarotes da primeira classe, insinuando que frente à morte, muitos foram
obrigados a deixar seus tesouros para trás para se salvar. E a cena mais
dolorosa: vemos Fabrízio, o simpático amigo italiano de Jack sendo esmagado
pela queda de uma chaminé.
Com
o navio já muito inclinado, os Oficiais encontram dificuldade para lançar os
últimos botes, sendo obrigados a cortar algumas amarras. As pessoas começam a
correr para a popa elevada, se segurando no que encontram pela frente, enquanto
outros pulam do navio.
Esse
Jack é uma figura...
Com
muita dificuldade, eles conseguem chegar à popa do Titanic, e Rose se dá conta
de que foi ali que eles se conheceram.
Sabem
o cara que está enchendo a cara de uísque na popa, pertinho de Jack e Rose,
enquanto o navio inclina até o limite?
O
nome dele é Charles Joughin, o padeiro chefe do Titanic. Ele foi um dos cinco
sobreviventes resgatados pelo bote do Quinto Oficial Harold Lowe, o único que
voltou para procurar sobreviventes depois que o Titanic afundou. Mais tarde,
Joughin afirmaria ter saído do navio quando a popa afundou sem molhar o cabelo,
e admitiu não ter sentido muito frio, provavelmente por causa do álcool que
estava bebendo. Então, meus amigos, se for dirigir não beba! Agora, se seu
navio estiver afundando num mar congelado, aí sim, pode enfiar o pé na jaca, e
beber o quanto aguentar. Só coloca o colete salva-vidas primeiro, tá?!
Nos
momentos finais do naufrágio, enquanto a popa se ergue como o traseiro de uma
periguete que foi apanhar um lápis no chão, Ruth DeWitt Bukater observa, com
lágrimas nos olhos, consciente de que sua filha ainda está a bordo, sem saber
sequer se ela ainda está viva. Aposto que agora ela se arrepende de ter
colocado seus interesses à frente da felicidade dela.
Várias
mulheres choram nos botes, antecipando a perda de seus entes queridos. Ismay
não suporta continuar assistindo ao destino de seu navio, e vira de costas,
claramente lamentando. O verdadeiro Ismay foi duramente criticado por ter salvo
sua vida quando tantas pessoas morreram. Para início de conversa, foi ele quem
rejeitou a sugestão dos engenheiros de colocar mais botes no Titanic, para não
diminuir o espaço naquele convés, nem pôr em dúvida a confiabilidade do público
na empresa. Mas é preciso também comentar que, no início da evacuação do navio,
quando as pessoas ainda resistiam a embarcar nos botes, por não acreditarem na
gravidade da situação, Ismay correu todo o convés do Titanic persuadindo tantos
quantos pudesse a embarcar nos botes sem perda de tempo. Não que isso diminua
sua responsabilidade no caso...
As
luzes do Titanic finalmente se apagam. Os eletricistas trabalharam até o final
para manter o navio iluminado pelo maior tempo possível, e nenhum deles
sobreviveu ao naufrágio. Agora, na mais completa escuridão, o navio range e se
parte ao meio. A popa desce, nivelando momentaneamente com a água. Mais duas
chaminés tombam, esmagando outras pessoas. Finalmente a proa afunda
completamente, levantando a popa uma vez mais, fazendo várias pessoas
escorregarem para a morte.
Percebendo
que sua posição não é favorável, Jack sobe na amurada e ajuda Rose a fazer o
mesmo. Os dois se apoiam na balaustrada do convés de popa, de onde Rose pensara
em se atirar algumas noites antes, mas agora lutando para sobreviver. O navio
inicia seu mergulho final, enquanto Jack orienta Rose a respirar fundo; o navio
os tragará para baixo, e eles devem nadar para cima, evitando a sucção.
Na
prática, foi mais fácil para Rose se manter perto da superfície, uma vez que
ela estava usando um colete salva-vidas, enquanto Jack foi tragado mais para o
fundo, e acabou se separando momentaneamente da moça.
Quando
ela emerge, as pessoas estão se debatendo desesperadas, tentando afogar umas às
outras por seus coletes. Jack precisa esmurrar um sujeito que está tentando
afogar Rose, e a puxa para longe dos outros náufragos, até uma placa de madeira
da decoração do navio que ficou flutuando depois que este afundou. Mas a placa
só suporta o peso de Rose, forçando Jack a permanecer na água geladíssima.
Apesar de estar tremendo de frio, Jack garante a Rose que os botes foram para
longe por causa da sucção, mas já virão resgatá-los.
Porém
uma discussão no bote número seis revela que eles não tinham intenção de
voltar, pois sabem que as pessoas desesperadas virarão os botes ao tentar
embarcar. Molly Brown instiga as mulheres em seu barco a remar para ajudar as
pessoas que estão morrendo congeladas, afinal, seus homens estão entre elas,
mas elas se acovardam, preferindo a própria sobrevivência.
Embora
no filme Cameron tenha escolhido não retratar suas ações da vida real, sabe-se
que Molly, com a ajuda de outras mulheres, conseguiram tomar o comando do bote
do Contramestre Robert Hichens.
Mas
pelo menos a confusão no bote de Molly serviu para incitar o Quinto Oficial
Lowe a transferir as mulheres de seu barco para os outros, para que ao menos um
bote pudesse voltar e procurar sobreviventes.
Enquanto
isso, Jack diz a Rose que pretende escrever uma carta bem mal-criada à White
Star Line para reclamar sobre o acidente. E quando ela tenta se despedir,
acreditando que não suportará o frio, ele garante que ela ainda vai viver
muitos anos, ter muitos filhos, e que só morrerá quando estiver bem velhinha, e
deitada numa cama quente; não ali, daquele jeito.
Porque
Jack prestou atenção no começo do filme, e sabe que, se Rose é quem está
narrando a história, é porque ela conseguiu sair dessa enrascada.
O
barco de Lowe finalmente retorna ao local do naufrágio, à procura de
sobreviventes, mas só encontra cadáveres congelados. O bote avança com cuidado,
para não bater nos mortos, mas Lowe percebe, resignado, que esperaram demais
para vir em socorro dos caíram no mar.
Rose
canta baixinho sua música de ninar favorita, fitando as estrelas no céu
enevoado. De repente ela vê a luz da lanterna e o bote se aproximando, e tenta
avisar Jack, mas ele já está morto. Por um instante, ela pensa em deixar o
barco ir embora, e se deixar morrer com seu amado, mas então ela se lembra da
promessa que fizera – afinal, Jack morreu para que ela pudesse ter uma chance
em cima daquela porta, fora da água congelante –, e decide honrar seu
sacrifício. O problema é que ela não tem voz para chamar o barco de volta.
Rose
se despede silenciosamente de seu amado, e desprende as mãos dele que
congelaram sobre a placa de madeira, deixando-o afundar. E por mais que a cena
seja linda e comovente, é de uma incoerência gritante: Jack morreu congelado; o
corpo humano é formado por 70% de água, ou seja, ele se transformou numa pedra
de gelo humana, e todo mundo sabe que gelo não afunda!
Seja
lá como for, Rose volta para a água, e começa a nadar, a fim de alcançar o
Oficial Chefe Henry Wilde, que congelou ali perto dela, e começa a soprar seu
apito com força, chamando a atenção do bote de resgate, que ilumina o rosto
dela e regressa para buscá-la.
A
propósito, não se sabe como foi que o verdadeiro Wilde morreu.
Mil
e quinhentas pessoas caíram no mar quando o Titanic afundou embaixo deles. Eram
vinte barcos por perto, e só um voltou. Seis pessoas foram salvas, inclusive
Rose – na vida real, como Rose não estava lá, foram apenas cinco. Depois disso,
as setecentas pessoas nos botes tiveram que esperar para viver ou para morrer,
e por uma absolvição que jamais viria.
Os
sobreviventes começaram a ser resgatados pelo Carpathia a partir das quatro
horas da manhã do dia 15 de abril. O navio tinha corrido a noite toda em máxima
velocidade, tendo que desviar de vários icebergs no caminho.
O
Carpathia retornou à Nova York para desembarcar os sobreviventes, onde eles receberiam
os devidos cuidados, atracando lá três dias depois. Durante esse retorno, vemos
Rose escondendo o rosto sob um cobertor, para evitar ser reconhecida por Cal,
que procura conhecidos no convés. Aquela foi a última vez que o viu. Pelo que
ela soube, ele se casou e herdou seus milhões, mas a queda da Bolsa de Valores
em 1929 afetou irremediavelmente sua fortuna, e ela soube pelos jornais que ele
deu um tiro na boca.
Na
chegada a Nova York, Rose mentiu seu nome ao Oficial que estava listando os
sobreviventes do Titanic antes do desembarque, passando a se chamar dali por
diante Rose Dawson. Até aquele momento, ela não havia falado sobre Jack com
ninguém, nem mesmo com seu marido, pois o artista fazia parte do oceano de
segredos que ela guardava no coração. Jack a salvou de todas as maneiras que
uma pessoa pode ser salva, e ela nem tem um retrato dele. Ele existe somente em
sua memória.
Depois
de ouvir o relato de Rose, Lovett confessa à Lizzy que pensou apenas no Titanic
nos últimos três anos, enquanto procurava o diamante naufragado, mas nunca
tinha entendido o que aquele naufrágio realmente significara, e nunca tinha se
emocionado com aquela tragédia. Até agora.
Eu
disse lá no começo da review que James Cameron se colocou dentro do filme na
pele desse caçador de tesouros, que nunca havia compreendido o lado humano do
naufrágio do Titanic, e essa cena deixa bem claro sua mudança de postura – para
Lovett, foi após ouvir o relato de uma sobrevivente; para Cameron, foi ao ter
contato com os destroços do navio no fundo do oceano, o luxuoso túmulo submerso
de centenas de pessoas.
O
naufrágio do Titanic foi tão devastador que, provavelmente, sobreviver a ele
pode ter sido tão trágico quanto morrer nele. Pensem só na quantidade de
mulheres que perderam seus maridos naquele episódio – lembre-se que estamos
falando de uma época em que o homem era o ÚNICO provedor da família. Essas
mulheres – não importa se eram pobres ou ricas –, ficaram sozinhas, talvez
tendo dois ou três filhos para criar. Talvez algumas delas tivesse família; e
talvez suas famílias tenham ficado do outro lado do oceano, na Europa. Você se
arriscaria a embarcar em outro navio logo em seguida?
Foi
o que pensei...
Havia
pelo menos dez casais em lua de mel a bordo do Titanic, e provavelmente os
maridos dessas mulheres não tiveram permissão para embarcar nos botes. Imagine
essas mulheres, recém-casadas, e já viúvas. E é possível que, dentre elas, ao
menos uma tenha acertado um gol de placa e ficado com o “pãozinho no forno”,
uma descoberta que deve tê-la deixado feliz, e, ao mesmo tempo, preocupada com
o futuro que poderia dar a essa criança, agora que estava sozinha. Mães que
perderam filhos; crianças que cresceram sem pai; crianças que podem ter sido
salvas por alguma alma caridosa da primeira ou segunda classe, sem que seus
pais tenham tido a mesma sorte. A alma caridosa que as colocou num bote não
necessariamente as adotou – isso não é novela mexicana. Elas provavelmente
foram deixadas na entidade equivalente ao Conselho Tutelar da época, até que
algum parente as reclamasse, o que pode nunca ter acontecido.
Como
terá sido a vida dessas pessoas? Tendo que superar os traumas daquela tragédia,
a perda de entes queridos, e o fato de terem visto tantas pessoas morrendo de
uma maneira terrível, sem poder fazer nada a respeito; as horas angustiantes
que passaram à deriva nos botes, em meio ao Atlântico Norte, à espera de
resgate... Setecentas e dez pessoas sobreviveram ao naufrágio, mas tiveram que
viver com as lembranças e os horrores dessa tragédia pelo resto de suas vidas.
Cameron
penetrou no coração da tragédia, e retratou isso com perfeição, mostrando em
sua Rose a figura de uma pessoa que sobreviveu à tragédia, que refez sua vida,
que viveu oitenta e quatro anos depois do naufrágio, mas que deixou o coração
sepultado no navio desde então, junto com o homem que ela amava, e que não
conseguiu sobreviver. Ninguém havia se preocupado em retratar essa parte da
tragédia – o lado humano – do Titanic até então.
Finalmente
vemos a idosa Rose caminhar até a popa do barco de pesquisa, e subir nas grades
amurada, como fizera mais de oitenta anos atrás na popa do Titanic, mas desta
vez, ela não pensa em se atirar para a morte. Rose olha para o mar e segura o
diamante azul que encontrara no bolso do casaco de Cal quando chegaram a Nova
York. Rose nunca foi apegada àquela pedra, mas vendê-lo significaria viver do
dinheiro de Cal, e foi exatamente disso que ela fugiu. Agora, mais de oitenta
anos depois, ela finalmente dá ao diamante o destino que deveria ter tido desde
o princípio: o fundo do oceano.
Então
temos uma nova imagem da cabine ocupada por Rose no barco de pesquisa, e as
fotos em sua cabeceira mostram que ela levou a vida que Jack a inspirou a ter:
andou de montanha-russa no princípio do século, montou a cavalo como um homem,
voou de avião quando isso ainda era privilégio dos ricos, famosos e pilotos de
caça da Segunda Guerra Mundial, foi uma atriz glamorosa...
E
vemos a profecia de Jack se cumprir, com Rose bem velhinha, deitada na cama
quentinha da cabine do barco de pesquisa. Cameron afirmou nos comentários em
áudio que deixou a cena aberta à interpretações: se Rose morreu enquanto
dormia, ou se ela está simplesmente sonhando, depois de reviver suas memórias
daquela inesquecível viagem.
Porque
a última cena do filme é para desidratar até os corações mais endurecidos:
vemos o Titanic restaurado no fundo do mar, voltando à antiga glória de quando
partiu em sua viagem inaugural. A jovem Rose corre pelos corredores até a
Grande Escadaria da primeira classe, onde é recebida com alegria por todos os
mortos no naufrágio, e reencontra Jack diante do relógio, onde o beija
apaixonadamente, sob os aplausos de todos, como se aquele fosse o seu
casamento.
Gosto
de pensar que nesse final o espírito de Rose se reuniu ao de Jack, exatamente
onde seu coração ficou em sua juventude, tantos anos atrás.
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