Sem
pensar muito bem no que estava fazendo, Susan correu de volta à casa
alfandegária, e bateu à porta, gritando o nome de Roger Bellingham. Outro
sujeito a atendeu e ela disse, muito apressadamente, com quem queria falar.
O
sujeito pareceu confuso.
–
Roger Bellingham! – insistiu ela, pensando que o homem não lhe havia entendido.
Sua expressão estava aflita, e sua voz saía atropelada, mas ela tinha certeza
de que ele podia entendê-la agora. – Ele trabalha aqui.
Antes,
porém, que ele pudesse responder, ela teve o vislumbre de um homem de cabelos
negros passando por uma porta dentro da alfândega, então ela se desviou do
homem que a atendia e entrou sem pedir licença, indo na direção onde viu
Bellingham entrar.
Susan
o encontrou sentado a uma mesa de marfim numa sala pequena. Quando a viu chegar
ofegante e com a expressão assombrada, ele franziu a testa, preocupado.
–
O que houve com a senhorita? – indagou Bellingham.
–
Você sabe o que há lá embaixo... – A voz de Susan era quase um sibilar, e ela
não quis passar a entonação de uma pergunta. – Na mansão...
Roger
Bellingham assentiu brevemente, sem esboçar qualquer emoção.
–
Diga-me o que sabe! – exigiu ela, percebendo de repente, com certo
constrangimento, a intimidade com que se dirigira a ele, mas ignorou em
seguida. – Por favor, eu preciso saber...
Bellingham
se dirigiu à porta e fez sinal para que ela o seguisse. Susan caminhou ao lado
dele pelas ruas e vielas que se emaranhavam ao redor do cais, tentando imaginar
porque ele a estava conduzindo à praça. E como na tarde anterior, quando se
encontraram no cemitério, ela esperou ansiosamente que ele lhe oferecesse o
braço, mas naturalmente não aconteceu. Afinal, não estavam passeando juntos;
apenas se dirigiam ao mesmo lugar.
Susan
ficou ainda mais confusa quando chegaram à praça e Bellingham a conduziu até a
igreja. Tinha pensado que ele a levaria até a casa onde morava – onde quer que
fosse –, ou até algum amigo ou parente que tivesse informações sobre o que ela
precisava saber. A igreja era o último lugar que ela teria pensado, e de
repente percebeu o motivo de estar surpresa: ela nunca tinha visto Roger
Bellingham na igreja. Talvez ele fosse a única pessoa em Salem que jamais tinha
ouvido um sermão pregado pelo Reverendo Bichop. O que era, no mínimo, estranho
naquela comunidade tão puritana. Mas também era estranha a existência de um
espírito atormentado como Robert Griplen assombrando Salem há duzentos anos,
sem que ninguém jamais tivesse se disposto a combatê-lo, ou quem sabe, tentar
exorcizá-lo.
Susan
seguiu Bellingham, sem questionar, pelo interior do templo. Aparentemente o
Reverendo tinha se esquecido de trancar a porta da secretaria ao sair; ou
talvez ele ainda estivesse em algum lugar na igreja; Susan não se preocupou em verificar.
Bellingham
passou sem cerimônia pela porta atrás do altar, e sem nenhum tipo de hesitação,
abriu uma pequena porta na parte inferior da estante da secretaria, onde estava
guardada uma comprida caixa de madeira. Colocou-a sobre a mesa de cedro e abriu
a tampa.
Dentro
da caixa havia uma porção de documentos datados desde 1646, e estavam
organizados na ordem cronológica inversa: o mais recente por cima dos mais
antigos. E sobre estes documentos havia um livro muito simples, com capa de
couro marrom e páginas ligeiramente amareladas.
Roger
Bellingham colocou o livro de lado e virou a pilha de documentos ao contrário
sobre a mesa, permitindo que Susan apanhasse o primeiro. Relatava a tragédia da
mansão Griplen: a tempestade, o afundamento da ilha, a descoberta do cachorro
vivo no barco... Tudo o que o Reverendo Bichop já havia lhe contado.
O
segundo documento datava de abril de 1646, um mês depois da tragédia, e
relatava o suicídio de Lucy Croft, a noiva de Robert Griplen. Tinha dezessete
anos na época, e estava muito abatida desde a morte do noivo. Comia pouco,
dormia mal, e não queria sair de casa. Naquele breve período de viuvez, Lucy
agiu como se tivesse morrido com ele na tragédia. Sua carta de suicídio estava
junto com o documento, escrita numa caligrafia apressada e inclinada, como se
ela estivesse com as mãos trêmulas, possivelmente chorando aos soluços. Mas a
morte do noivo não foi a única responsável por ela ter perdido a vontade de
viver:
“Eu tentei conviver com esta
dor desumana que me dilacera a alma desde que o meu amado foi arrancado de mim,
mas esta noite ela se tornou insuportável. Eu vinha resistindo, em nome de algo
que eu esperava que pudesse anestesiar ao menos um pouco a minha dor. Mas hoje
minha esperança se foi, e com ela, a última parte de mim também morreu.
Robert tinha deixado um
pedacinho dele comigo, sem que eu soubesse. E quando me dei conta, transformei
essa semente numa pequena esperança, um refúgio onde o nosso amor poderia
continuar vivo, apesar de toda a dor que o rodeia. Mas esta noite ela também se
foi. Meu coração foi partido mais uma vez quando acordei e vi o sangue em meus
lençóis, e logo em seguida, quando meu corpo o expulsou. Quase sem dor. Ao
menos não em minha carne, pois minha alma dói como a morte!
Não posso continuar vivendo sem
ele. Já que a vida não permitiu nossa união, então, que seja a morte a ministra
do nosso casamento, e nos ajude a cumprir o juramento que fizemos: haja o que
houver, ficaremos juntos pela eternidade.
Se não foi possível vivermos
juntos na casa que tínhamos construído para ser o nosso lar, então que seja o
mar de Salem, túmulo do meu amado, o nosso eterno ninho de amor”.
Naquela
mesma noite, Lucy foi vista por um funcionário da casa alfandegária, caminhando
em direção ao penhasco, de onde possivelmente se atirou. Seu corpo nunca foi
encontrado.
Um
calafrio varreu o corpo de Susan ao concluir esta leitura. Teria o suicídio de
Lucy alguma relação com a magia que envolve o local de sua queda?
O
documento seguinte datava de 24 de março de 1647, um ano após a tragédia.
Relatava o desaparecimento de Anatole Margareth Winston. Na última vez que foi
vista, Anatole estava muito perturbada: não dormia direito havia vários dias,
ficava sonâmbula quase todas as noites, e tinha frequentes pesadelos. Tinha
completado dezessete anos em dezembro.
Os
demais documentos contavam essencialmente a mesma história: uma moça de
dezessete anos, desaparecida na madrugada de 24 de março de cada um dos anos
seguintes, cujos corpos nunca foram encontrados. Alguns registros contavam com
relatos de testemunhas que afirmavam tê-las visto perto do penhasco na noite do
desaparecimento. A partir de 1678, a palavra desaparecida foi substituída pela palavra morta.
Susan
desistiu de retirar os documentos da pilha depois de ter passado os olhos por
cerca de cinquenta relatos semelhantes. Estava tonta. Parecia que, de repente,
sua vida havia mergulhado numa história assombrada. Havia, sem dúvida, algum
feitiço nublando a percepção das pessoas naquela cidade, pois não era possível
que, em circunstâncias normais, com tantas vítimas e por tanto tempo, as
pessoas assistissem à morte de suas filhas com tamanha condescendência.
Se
existia, de fato, alguma bruxa na cidade, era a que protegia o espírito de
Robert Griplen de ser definitivamente sepultado. O mais assustador era que,
provavelmente, o feitiço vinha de seu próprio espírito atormentado.
Bellingham
reorganizou os documentos na pilha. Susan esperou que ele os virasse e apanhou
os últimos dez. Lá estava o nome: Elizabeth Catherine Sofer, morta em 24 de
março de 1836. Tentou se lembrar do rosto de Lizbet, mas dez anos é tempo
demais; ela era só uma criança quando a garota morreu, de modo que a única
imagem em suas lembranças era de seu cabelo loiro e comprido, sempre com duas
mechas enroladas como uma coroa em volta da cabeça.
A
última vítima ela estava certa de ter conhecido: Abigail Laura Smith.
Lembrava-se perfeitamente do rosto dela. Tinha cabelos negros e olhos
azuis-safiras lindíssimos. Susan chegou a invejá-la, ao vê-la num vestido de
cetim verde oliva no baile dos dezesseis anos de Abigail. Dançara com todos os
homens solteiros e ricos da cidade, dando a todos um irritante olhar de
desprezo. Parecia perfeita demais para se interessar por qualquer um deles.
Quem poderia imaginar que um ano depois ela estaria morta?
Susan
ficara surpresa quando soube. De acordo com a família, Abigail foi vítima da
peste que todos os anos ceifa a vida de uma jovem na cidade. O funeral, sem a
presença do corpo, foi feito em casa, onde os parentes e amigos realizaram uma
cerimônia simples e tradicional, como se fazia todos os anos a cada uma das
vítimas.
Agora
Susan sabia qual era a peste que estava matando as moças de Salem.
Depois
de colocar os documentos de volta na caixa, Susan teve a atenção furtada para o
livro que havia sido posto de lado. Como havia pensado, era um diário, e logo
na primeira página, a assinatura lhe provocou um calafrio: Lizbet Sofer.
Depois
de dez anos ouvindo a louca Norma Sofer bradar pela cidade o provérbio escrito
pela filha, Susan finalmente teve contato com as palavras completas; os últimos
pensamentos transcritos pelas mãos agora geladas de uma das vítimas de Robert
Griplen.
Sentia
a alma arrepiada ao passar os olhos pelas páginas do diário de Lizbet. Sua
caligrafia elegante estava preservada como se ela tivesse escrito há poucos
minutos.
Susan
não se permitiu seduzir pelas primeiras páginas, que revelavam uma Lizbet
sonhadora e feliz. Provavelmente, os primeiros pensamentos, escritos em sua
mais tenra juventude, pertenciam a uma garota muito diferente daquela que
desapareceu na primavera de 1836.
Desde
que começou a sofrer a perturbação provocada pelo espírito de Robert Griplen,
Lizbet escrevera somente cinco páginas em seu diário. E eram estes pensamentos
que Susan precisava conhecer.
A
primeira menção sombria foi a um sonho, que segundo escrevera a morta,
repetia-se todas as noites desde o início de março:
“Nunca me lembro de como
começou, mas vejo sempre a mesma imagem repetir-se noite após noite: quando o
mascarado abre a janela do meu quarto e vem se deitar comigo em minha cama.
Sei que é imprudente
transcrever sonhos como este, mas a insistência com que se repetem me perturba
a tal ponto que sinto que vou enlouquecer.
Aquele homem tem um cheiro
diferente, como se usasse um perfume de jasmim no corpo todo. Sua voz é suave e
aveludada, e fala comigo tão amorosamente que faz meu coração tremer. Queria
ver o rosto dele, pois, através da máscara veneziana, dois lindos olhos azuis
me entontecem e hipnotizam. Simplesmente não consigo resistir.
Se essas noites forem mais do
que sonhos, então estou completamente perdida, pois este homem que invade meu
quarto me seduz irresistivelmente, inebria meus sentidos e manipula totalmente
minhas vontades.
Tenho temores horríveis por
pensar que tudo pode ser real! Sobretudo porque minha janela tem amanhecido
aberta todos os dias, embora eu me lembre perfeitamente de tê-la fechado antes
de me deitar.
Temo por não reconhecer as mais
comuns características fantasmais dos sonhos quando ele vem ao meu quarto. Temo
por sentir cada toque de suas mãos em minha pele, como se ele, de fato,
estivesse ali comigo. E temo, principalmente, por não saber quem ele é.
Assusta-me pensar que tenho dormido todas as noites aconchegada ao peito de um
homem estranho”.
O
coração de Susan congelou no peito ao terminar de ler estas palavras no diário
de Lizbet. Anne havia relatado muito superficialmente um sonho semelhante na
primeira vez que sua janela amanheceu aberta, e ela própria tinha estado
completamente dominada, sob o encanto de um estranho mascarado nas últimas duas
noites, se perdendo em desejos que sequer desconfiava possuir. O cheiro de
jasmim ficara impregnado no quarto todo, mas especialmente nos lençóis de Anne.
Não tinha lhe ocorrido antes, de maneira nenhuma, nem se atrevia a pensar
nisso, mas após ler o relato de Lizbet, Susan se deu conta de que talvez o
cheiro viesse precisamente do corpo daquele homem.
Talvez
fossem apenas sonhos realmente, mas ainda que fosse este o caso, não havia mais
dúvidas de que ela e a irmã tinham sido seduzidas pelo mesmo espírito
atormentado que levara Lizbet Sofer e outras dezenas de moças a se atirarem do
penhasco nos aniversários de sua morte.
Roger
Bellingham estava inclinado sobre a mesa, ao seu lado, espiando o diário por
sobre o ombro de Susan. E como ela estivesse há muito tempo pensativa, depois
de haver desviado os olhos da página, lançou a ela um olhar avaliativo que a
fez ruborizar.
Então
Susan virou a página. Todavia as palavras do primeiro relato ainda ecoavam em
sua mente, fazendo-a recordar os próprios sonhos com horror, de modo que ela
não deu muita atenção ao que Lizbet escrevera logo na sequência. Sabia apenas
que ela mencionara sonhos anteriores com o mesmo homem mascarado; sonhos
superficiais que vinha tendo desde o fim da primavera anterior; nada com que se
pudesse preocupar.
A
vontade de Lizbet parecia resistir, ainda que muito debilmente, ao poder
sedutor do espírito profano de Robert Griplen. Nas quatro páginas seguintes, a
moça relatou os momentos de maior perturbação como uma experiência
assustadoramente sobrenatural.
Assim
como Anne e Susan, Lizbet também foi levada a mergulhar do penhasco duas noites
antes de desaparecer para sempre. Ela transcreveu com detalhes a descoberta da
mansão submersa, e a aparição das sereias. A única coisa que ela talvez não
tivesse visto, ou se esquecera de mencionar, foi o fantasma da pequena Emily
Griplen.
Levada
por alguma vontade superior ao poder do mascarado, Lizbet pôde conhecer, nas
últimas horas de sua vida, a trágica história da família Griplen, e perceber
para onde aquele espírito atormentado a estava levando. E em seus últimos
momentos de lucidez, ela escreveu a mensagem que sua mãe apregoava
religiosamente desde sua morte há dez anos, alertando as pessoas sobre o mal
que se escondia nas águas de Salem:
“Se alguém está lendo estas
palavras, significa que estou perdida num limbo do qual é impossível escapar.
Ele me pegou! E talvez seja tarde demais para mim, mas pode não ser tarde
demais para suas filhas, netas, irmãs e amigas...
Talvez você não acredite em
mim, mas aceite um conselho sincero: na primavera, afaste todas as moças de
dezessete anos da cidade. Quem sabe, assim, possam salvá-las. Pois a cada
primavera, no aniversário de sua morte, ele precisa se casar.
Então, mesmo que você não
acredite em mim, proteja as moças. Não deixe que se tornem suas noivas...”.
Susan
deu um suspiro exausto ao ler a última palavra, e repousou o diário sobre a
mesa, encarando-o através de uma cortina de lágrimas. Tinha muita coisa para
digerir, mas sentia que o tempo escorria entre seus dedos inexoravelmente.
Bellingham
apoiou as mãos ternamente nos ombros dela, fazendo seu corpo tremer. Ela
afundou o rosto entre as mãos por um momento, parecendo perplexa demais para
ter qualquer outra reação.
–
O que houve com os Croft? – perguntou, com a voz abafada pelas mãos, emergindo
de um vendaval de pensamentos. Nunca tinha ouvido falar naquela família, nem
mesmo no livro de História que Anne consultara naquela manhã.
–
Partiram – respondeu Bellingham –, pouco tempo depois da morte de Lucy. Ninguém
sabe exatamente para onde eles foram, mas nunca mais foram vistos em nenhum
lugar da Nova Inglaterra. O mais provável é que tenham ido para o Canadá.
Susan
deu um suspiro pesado. Agora tudo fazia sentido. Ela sabia exatamente onde
estavam as moças que desapareceram da cidade nos últimos duzentos anos. Ela as
tinha visto nas duas últimas noites. Viviam – por assim dizer – nas profundezas
do oceano, nadando perto da costa de Salem, ao redor da mansão Griplen, com
suas longas caudas douradas. Cada uma delas estava naquele exato momento no
fundo do mar, disputando seu espaço num mundo onde agora o conceito de vida e
morte parecia completamente perdido.
– Elas estão lá embaixo... – murmurou Susan.
Bellingham baixou a cabeça, sem tirar as mãos dos ombros dela, como se a confortasse.
– São atraídas para o penhasco e pulam – completou.
As palavras de Lizbet ainda ecoavam em sua mente.
– E você sabe por que... – sugeriu Bellingham.
Ela inspirou bem forte, com os olhos molhados, sufocando um soluço.
– Ele está lá embaixo – sussurrou Susan, sem conseguir encontrar a voz –, chamando suas noivas para se juntarem a ele.
A palavra noiva fez o coração de Susan dar um pulo assustado. A promessa que Robert Griplen escrevera em seu diário voltou à mente dela: nada o impediria de se casar com Lucy. Nada o impediria de ter a sua noiva...
A morte o havia impedido. E ele estava há duzentos anos profanando a morte, atraindo para si as suas noivas: as sereias que ela vira no fundo do mar de Salem; suas noivas eternas.
E, a menos que ela conseguisse impedir, naquela noite, Anne se tornaria uma delas.
– Um momento... – disse Susan, colocando-se em pé, de frente para Bellingham, dando-se conta de algo que não havia lhe ocorrido antes. – Como você sabe de tudo isso?
Ele hesitou um instante, mas não pareceu embaraçado com a pergunta dela.
– Como sabia onde encontrar estes documentos? – insistiu Susan. – Aliás, como sabia da existência deles?
Bellingham estava a menos de um passo dela na secretaria minúscula, e seus olhos penetravam os dela de um jeito desconcertante.
– Olhe nos meus olhos! – pediu ele, quando ela desviou o olhar, ruborizando.
Então ela o encarou atentamente. Seus olhos mergulharam nos dele por um longo momento, e de repente ela reconheceu o tom de azul: o mesmo presente em todos os quadros que ornavam as paredes da mansão submersa, e também os olhos de Emily.
– Meu Deus! – sibilou Susan; e foi tudo o que conseguiu dizer.
– Eu sou o último descendente dos Griplen – confessou Roger. – O último a carregar a maldição dessa família.
– Maldição? – indagou Susan, assustada.
– Os Griplen nunca foram socialmente conhecidos nesta cidade – disse Roger –, mas sempre exercemos certo fascínio nas pessoas. Não só por construir uma mansão numa ilha particular; isso é trivial. Mas nossos gestos sempre pareceram atraentes; nossa aparência, sedutora; nossos passos despertam curiosidade... Por mais discretos que nos comportemos, nós jamais passamos despercebidos. Essa fascinação natural que despertamos nas pessoas vem do poder profano que flui em nossa família. Um poder que ao mesmo tempo em que encanta, nos amaldiçoa. É através desse encanto que as moças são seduzidas para o penhasco. É por isso que nós provocamos tantas mortes nesta cidade...
– Mas como isso começou? – indagou Susan, mal encontrando a voz. – Por quê?...
– É evidente que você nunca teve contato com os murmúrios sombrios a nosso respeito. Claro, vivendo naquela casa, protegida pelo Reverendo... É natural que ninguém se atrevesse a contar essa história a você.
Roger deu um suspiro profundo antes de começar a contar:
– Os Griplen pertenciam a uma antiga comunidade de feiticeiros, cujos rituais não são vulgarmente conhecidos, mas envolvem uma magia poderosa. Magia das trevas!
– Por isso há forquilhas desenhadas nas portas da mansão... – concluiu Susan.
– É uma runa! – explicou Roger. – Símbolo de proteção. Uma tolice que pode ou não estar mantendo o espírito preso àquela casa... E ao nosso mundo.
Roger se aproximou mais um passo, fazendo seu corpo pairar perturbadoramente sobre o de Susan, que involuntariamente deixou escapar um suspiro baixinho. Sem deixar transparecer nenhuma reação sobre isso, ele molhou uma pena que havia sobre a mesa no frasco de tinta, e começou a riscar, num canto da página do diário de Lizbet, a marca que Susan tinha visto nas portas da mansão Griplen.
– Nossos ancestrais diziam que, quando um portal é marcado com essa runa, ele se torna território proibido para a morte – contou Roger. – Era costume gravá-lo nas portas dos quartos, recitando um feitiço, para proteger as pessoas amadas, sobretudo quando havia uma morte anunciada. Não impedia que sucumbissem a alguma doença, ou qualquer tipo de morte natural; mas se a morte era enviada por alguém, por meios não naturais – Susan interpretou essa expressão como um eufemismo para magia –, ela via a marca na porta, e era obrigada a recuar. Com a runa gravada na porta, a morte não tinha permissão para entrar. Mas, como todo feitiço, há um revés: pois a pessoa que ocupa esse quarto fica impedida de morrer. Para o bem... ou para o mal.
– A menos que seja uma morte natural...? – conferiu Susan, após pesar o que ele disse.
– Exato.
– A tragédia que lançou a mansão Griplen no fundo do mar não parece uma coisa natural...
Ela analisou a expressão dele. Parecia ter tocado num assunto delicado. E como ele nada disse a respeito, ela deduziu que estava certa.
– Não havia runa na porta do quarto dos pais... – lembrou Susan, sem se preocupar com um possível questionamento sobre como ela sabia disso. – Apenas nas portas de Robert e de Emily...
Roger aquiesceu timidamente.
– Por isso o fantasma dela também ficou preso no nosso mundo – concluiu, por fim.
A mente de Susan girou por causa da intensidade e gravidade das informações, e talvez, principalmente, pela proximidade perigosa de Roger Bellingham – ou Roger Griplen, como acabara de descobrir. Ela sentia, agora mais irresistível do que nunca, o fascínio que ele descrevera.
– Você também tem esse poder? – sussurrou ela, olhando profundamente nos olhos dele.
– Infelizmente... – aquiesceu ele, prendendo ainda mais os olhos dela nos seus. – Sim.
– E o usa? – insistiu Susan, sentindo-se cada vez mais hipnotizada.
– Não de propósito... – admitiu Bellingham, devagar. – Simplesmente não tenho como evitar.
Susan engoliu seco, percebendo que ele encurtava milimetricamente a distância entre eles.
– E está fazendo isso agora?
Os olhos dela involuntariamente desceram aos lábios dele, sem que se desse conta, e então ela deu um suspiro leve ao vê-los se mover quando ele sussurrou:
– Eu espero que não.
A cabeça de Roger começou a se curvar para ela. A boca de Susan se rendeu ao mínimo toque dele. Todavia o momento e o beijo não duraram mais do que um segundo, e eles se afastaram depressa, ao ouvirem os passos do Reverendo Bichop se aproximando.
– O que faz aqui, Susan? – indagou Bichop.
Ela lançou um olhar preocupado para Roger, temendo que o tutor os tivesse visto juntos, todavia ele nada comentou; nem sequer olhou para o rapaz. Em vez disso, o Reverendo lançou um olhar indignado sobre a caixa de madeira aberta em cima da mesa.
– Por que está mexendo nisso? – indagou ele à sua protegida.
– Devia ter me mostrado esses registros quando perguntei sobre a mansão – queixou-se Susan.
Mas a única reação do Reverendo foi guardar o diário de Lizbet de volta na caixa junto com os documentos, e tornar a escondê-los na estante.
– Isso acontece há duzentos anos! – observou Susan. – Por que ninguém faz nada para impedir que as moças sejam levadas?
– Acha que ninguém tentou trancar as moças em casa? – questionou o Reverendo, voltando-se para ela. – Tirá-las da cidade para evitar que chegassem perto do penhasco...? De alguma maneira elas sempre escapam, num transe que as leva ao seu destino final no fundo do mar.
Bichop fez uma pausa breve para tomar fôlego.
– Abigail Smith foi acorrentada no quarto, e vigiada a noite toda pelos pais. Por volta da meia-noite, porém, eles caíram involuntariamente no sono e ficaram presos num forte torpor, como eles mesmos descreveram. Quando despertaram, ela havia desaparecido. Encontraram apenas as correntes perto do penhasco na manhã seguinte.
Susan se lembrou com horror das visitas do mascarado nas últimas duas noites, e de como ela não conseguiu abrir os olhos enquanto ele estava no quarto, vendo-o somente através de seu sonho. Os pais de Abigail não haviam exagerado no termo: sua mente também havia sido nublada por um intransponível torpor.
– Aparentemente é impossível escapar a esse destino quando a moça é escolhida – finalizou o Reverendo, parecendo física e moralmente exausto.
– Mas tem que haver alguma maneira... – suplicou Susan, agarrando a mão dele, e empregando toda urgência na voz. – Reverendo... Anne foi escolhida! Ela será a próxima a desaparecer naquelas águas, a menos que façamos alguma coisa...
– Eu sei... – disse Bichop, sem esconder o próprio sofrimento. – Não paro de pensar nisso um único segundo desde que os sintomas começaram, tentando encontrar uma maneira de salvá-la; qualquer coisa que não tenham tentado antes, e que possa funcionar.
– E descobriu alguma maneira? – indagou Susan, ansiosa.
– Estou cuidando disso – respondeu Bichop, simplesmente. – Por hora, quero que você volte para casa, e fique lá!
Roger pôs a mão sobre o ombro de Susan, confortando-a.
– Eu a acompanho – sibilou ele, às suas costas.
Susan encarou o Reverendo com os olhos angustiados. Queria que ele lhe dissesse uma palavra qualquer para lhe dar esperança de que Anne sobreviveria àquela noite, de que ela seria a exceção: a primeira noiva a escapar do feitiço de Robert Griplen.
Bichop pôs a mão ternamente em seu rosto, e disse num tom paternal:
– Susan, você e Anne são como minhas filhas. Eu farei o que estiver ao meu alcance para impedir que sua irmã seja levada esta noite. Eu prometo!
Susan assentiu, permitindo que uma lágrima escorresse em seu rosto. O Reverendo beijou delicadamente suas mãos, e então ela caminhou para fora da igreja, decidida a cooperar com qualquer plano, por pior que fosse, contanto que pudesse salvar a vida de Anne; ou a morrer com ela naquela noite.
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