O
Reverendo Arthur Bichop residia numa pequena casa a poucos metros da igreja, e
naquela mesma tarde elas bateram em sua porta. Ao ver as duas sozinhas, e não
achando prudente recebê-las em sua própria casa, mesmo sendo seu tutor, ele as
conduziu até a igreja.
Ao
entrarem no templo, as duas sentiram um arrepio desconfortável varrer seus
corpos. Parecia um sacrilégio entrarem naquele lugar santo depois de terem
estado sob o efeito de magia. Sobretudo, sendo a razão de estarem ali
justamente o desejo de desvendar o mistério sobre a magia das noites
anteriores.
O
Reverendo Bichop as conduziu por uma porta atrás do altar a uma pequena
secretaria, e se sentou atrás de uma mesa de cedro, apontando as cadeiras à sua
frente para as duas irmãs. Susan foi a primeira a se aproximar, receosa. Julgou
que seria menos constrangedor ser ela a dirigir as perguntas ao pastor, uma vez
que ele não sabia que ela também estivera acometida pelas mesmas perturbações
que Anne vinha apresentando desde o início de março.
–
Em primeiro lugar – começou Susan –, gostaria de lhe pedir encarecidamente que
esta conversa seja mantida em absoluto sigilo.
O
Reverendo analisou a expressão no rosto da garota, com alguma confusão no
olhar. Talvez estivesse se perguntando se ela havia revelado à irmã seus planos
de trancá-la no sanatório até que os sintomas da peste desaparecessem. Era
evidente na expressão de Bichop que ele já se sentia culpado por uma traição
que ainda sequer havia cometido. Mas como Susan se mostrou muito decidida no
que estava pedindo, ele aquiesceu brevemente.
Ela
fez uma pausa para organizar as palavras no pensamento, e então prosseguiu:
–
Eu queria lhe perguntar o que o senhor sabe a respeito da mansão que jaz nas
profundezas do mar que banha esta cidade?
O
Reverendo suspirou e estendeu o silêncio por um instante.
–
Por que está me perguntando isso, minha filha? – quis saber o religioso.
–
Minha irmã e eu estivemos na mansão noite passada, e também na anterior –
revelou Susan, hesitante, e com a voz trêmula.
Arthur
Bichop franziu o cenho e cobriu o rosto com uma das mãos, preocupado. Susan se
sentiu constrangida por continuar a encará-lo, temendo permitir que seu olhar
pousasse por muito tempo sobre a horrível queimadura que havia na mão do
Reverendo. Era uma marca estranha, que fazia lembrar um S ou um N, como se em
algum momento no passado, alguém tivesse tentado marcá-lo com um ferro em
brasa. Ela sabia que ele se envergonhava daquela marca, e normalmente tentava
mantê-la longe da vista das pessoas, mas a gravidade do assunto pareceu despi-lo
momentaneamente dessas reservas.
–
Como ela foi parar lá embaixo? – insistiu Susan, a respeito da mansão.
O
Reverendo hesitou um instante.
–
Como chegaram à mansão? – perguntou, em lugar de responder.
Susan
suspirou e buscou organizar suas lembranças de modo que não parecesse uma
grande loucura.
–
Anne e eu caímos do penhasco e afundamos. – Era praticamente verdade. Na
primeira noite, Anne se jogou e Susan caiu tentando salvá-la. – A lua brilhou
acima do telhado da mansão e nós nadamos até lá. Parece conservada demais para
uma casa submersa.
O
Reverendo ficou em silêncio ainda um tempo, digerindo as palavras dela.
Espreitou o rosto de Anne ao lado da irmã. A garota ficou o tempo todo calada e
com os olhos baixos, fitando as mãos quietas, apoiadas no colo.
–
Nós encontramos alguma referência histórica sobre a mansão ter pertencido à
família Griplen – arriscou Susan, quando o silêncio de Bichop pareceu extenso
demais. – Nunca tinha ouvido falar deles.
Bichop
pousou a mão sobre a Bíblia que estava à sua frente na mesa, com uma expressão
desconcertada, como se o nome daquela família fosse profano.
–
É verdade? – quis saber Susan.
–
Sim – disse o religioso, com a voz pesada. Era nítido que estava pouco
inclinado a falar sobre isso, o que somente aguçou a curiosidade das irmãs.
–
E como a mansão foi parar lá embaixo? – insistiu Susan, sem esmorecer.
O
Reverendo deu um suspiro ainda mais pesado, como se tentasse decidir o que
poderia ou não contar. E por fim, começou:
–
Foi na primavera de 1646, exatos duzentos anos atrás. Os Griplen se preparavam
para uma festa. O filho mais velho de Agnes e George Griplen, Robert se casaria
no primeiro sábado da primavera com uma moça de boa família chamada Lucy.
“No
entanto – prosseguiu o Reverendo –, na madrugada que antecedeu o grande dia,
caiu uma tempestade como nunca se havia visto nesta cidade. A mansão Griplen
havia sido construída numa ilhota, a poucos quilômetros da costa. Para entrar
ou sair da propriedade era necessário atravessar de barco um pequeno canal
marítimo.
“Quando
a tempestade veio, a ilha começou a se desfazer. Alguém, não sei exatamente
quando, começou a contar a história de que o cão dos Griplen tentara, na última
hora, salvar Emily, a filha mais nova do casal, mas o mar engoliu a mansão e a
ilha antes que ele pudesse colocar a menina em segurança no barco.
“Verdade
é, de acordo com relatos de testemunhas na época, que o cão foi encontrado
dentro de um dos barcos da família, navegando a esmo, com uma fita de cetim
vermelho na boca, com a qual a menina costumava amarrar os cabelos. E foi o
único sobrevivente da tragédia.”
Bichop
se calou assim que terminou de contar a história. Susan ficou alguns instantes
em silêncio, pensando sobre a tragédia daquela família. Tinha visto os retratos
nas paredes da mansão. Os Griplen pareciam uma família rica e feliz. Quem
poderia imaginar que teriam aquele fim?
Mas
havia ainda um mistério a ser resolvido.
–
Reverendo... – Susan hesitou um instante, buscando coragem para fazer a próxima
pergunta. – O senhor já ouviu falar em sereias vivendo nestas águas?
O
rosto de Bichop de repente mudou da preocupação para o horror. Anne lançou um
olhar de reprovação à irmã, que também foi percebido pelo Reverendo. Ele
encarou Susan e não encontrou a voz, de modo que sua pergunta não foi mais do
que um sussurro:
–
Você as viu?
Susan
assentiu brevemente.
O
Reverendo se moveu inquieto na cadeira.
–
É melhor vocês voltarem para casa – disse ele. – Já está ficando tarde.
E
fez menção de se levantar para sair, quando Susan o deteve, segurando com força
sua mão sobre a mesa.
–
Por favor, Reverendo, eu preciso saber... – insistiu Susan, com voz urgente.
O
religioso fechou os olhos, apertando-os com força. Realmente não era um assunto
sobre o qual ele gostaria de falar.
–
Minhas filhas – começou Bichop –, talvez seja melhor vocês esquecerem isso e
voltarem para casa...
–
Como podemos esquecer que estivemos nas profundezas do mar por quase meia hora,
respirando como se não existisse água à nossa volta? – A voz de Susan saiu
apressada e aflita.
Anne
se levantou e passou correndo pela porta, de volta ao átrio da igreja, como se
fugisse das acusações que provavelmente sucederiam o relato de Susan.
–
Havia pelo menos uma centena de sereias lá embaixo tentando nos dizer alguma
coisa – prosseguiu esta –, e depois...
Susan
parou, percebendo imediatamente o que estava prestes a dizer: aquela garotinha clamando que fôssemos
embora. Uma estranha e terrível revelação se apoderou de seus pensamentos: Emily Griplen. A garotinha que as
afugentara da mansão na noite anterior só podia ser Emily Griplen!
O
Reverendo esperou, mas como ela não dissesse mais nada, ele saiu da secretaria,
como se também estivesse fugindo. Susan ficou ainda alguns instantes com o
rosto prostrado sobre a mesa, milhares de pensamentos atormentando sua mente.
Quando
finalmente foi ao encontro da irmã, sentia-se tonta e pesada, como se estivesse
prestes a desmaiar.
Anne
estava com uma expressão confusa ao lado do altar, com os olhos pregados numa
lista afixada à parede, escrita em diferentes caligrafias. No alto do longo
papel havia a inscrição:
“Pela redenção das almas que
sucumbiram ao espírito profano das águas”.
Havia
muito mais de cem nomes, todos de mulheres. Ao lado de seus nomes, a idade e a
data do falecimento. Susan levou um susto ao constatar o padrão na lista: todas
elas morreram aos dezessete anos; todas no dia 24 de março; uma morta a cada
ano, sempre na mesma data, desde 1647, um ano depois da tragédia da mansão
Griplen.
Susan
sentiu um calafrio ao ver a data das mortes. Vinte e quatro de março foi o dia
em que ela e Anne nasceram. Era muito grotesco saber que quase duzentas moças
da idade delas morreram naquela data. Aquele dia era segunda-feira 23 de março.
No dia seguinte ela e Anne completariam dezessete anos, a idade exata de todas as
vítimas.
Anne
apontou um nome na lista, datado do ano 1836: Elizabeth Catherine Sofer.
–
Lizbet – disse Anne, e o mesmo calafrio atravessou as duas ao mesmo tempo.
Elas
recordaram, involuntariamente, o grotesco e estranho provérbio que Lizbet
escrevera em seu diário pouco antes de desaparecer, e que sua mãe, Norma Sofer,
a louca, gritava pela cidade todos os anos, durante o mês de março:
“Protejam suas filhas! Pois a
cada primavera, no aniversário de sua morte, ele precisa se casar”.
E
então, o pesadelo martelou outra vez na mente de Susan, ao confrontar a
profecia de Lizbet com os nomes na lista: o quarto na mansão submersa estava
preparado para as núpcias; ele estava à espera de uma noiva!
Susan
leu novamente a inscrição acima dos nomes. O que quer que aquilo significasse,
foi o que horrorizara o Reverendo Bichop, e era também o que as sereias estavam
protegendo.
O
rosto da pequena Emily Griplen continuava à frente em suas lembranças, e as
palavras dela agora ecoavam diante das palavras na lista. “Ele não está aqui”, dissera Emily, quando lhes apareceu na mansão.
Ele... O espírito profano das águas!
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