Ao
passarem pelas grandes portas da entrada da igreja, as irmãs Dawson ouviram uma
voz rouca e velha grasnar de longe:
–
Ela foi tocada! Ela foi tocada!
Susan
olhou na direção da voz, e viu Norma Sofer, a louca, caída sobre os quadris na
calçada do outro lado da praça, com a mão estendida, apontando para Anne.
Que destino horrível tivera a
Sra. Sofer, Susan pensou várias vezes ao longo dos anos.
Não tinha muitas lembranças de quando a filha dela era viva, mas lembrava
vagamente de que a beleza de Norma era invejável, como a de Lizbet também fora.
No entanto, agora, sua aparência era absolutamente repugnante: usava sempre as
mesmas vestes esgarçadas e sebosas, o cabelo grisalho e desgrenhado caía ao
redor de seus ombros como fios de palha, o rosto estava sempre coberto de
fuligem, e os dentes que lhe restavam estavam completamente podres. Era difícil
não sentir pena ao olhar para aquela mulher, outrora tão rica, vivendo pelas
ruas como uma mendiga.
Não
era incomum o aspecto daquela mulher causar medo. Susan imaginou algumas vezes
que aquela bem poderia ser a aparência exata das bruxas que a cidade inteira
caçou cento e cinquenta anos atrás.
Mas
além da aparência, a louca também era uma mulher hostil: sempre apontando o
dedo para alguém, fazendo acusações ou predições agourentas. E ela ficava
particularmente insuportável no mês de março, quando repetia exaustivamente as
palavras que Lizbet deixara de herança. Todavia agora, depois de tudo o que
havia presenciado e descoberto nos últimos dias, Susan começava a suspeitar
que, talvez, bem lá no fundo, a loucura da Sra. Sofer tivesse alguma sensatez.
Mesmo
assim, Susan escudou a irmã com o próprio corpo, e encarou a mulher, enquanto
tentava tirar Anne dali, para evitar que a louca a deixasse mais perturbada do
que já estava.
–
Ela foi tocada pelo demônio! – grasnou a mulher, ainda mais alto, chamando a
atenção das pessoas que passavam pela praça. – Ela é a próxima!
Susan
apertou a mão da irmã, que tinha ficado paralisada de medo, e a forçou a
correr, escapando da vista das pessoas por uma viela que dava diretamente no
cais.
–
Aquela mulher estava falando de mim... – murmurou Anne, assustada.
–
Não dê ouvidos... – tranquilizou Susan. – Ela não sabe o que diz; está louca!
–
Não! – gritou Anne. – Ela disse que eu sou a próxima...
–
Pare! – repreendeu Susan, interrompendo-a. – A Sra. Sofer está perturbada, e
está tentando nos perturbar também.
–
A filha dela morreu... – murmurou Anne, com o olhar perdido e a expressão
apavorada. – A filha dela morreu nessas águas, como todas aquelas moças
listadas na igreja. – E tornou a encarar a irmã, muito séria, e completamente
horrorizada. – Você não entende? Há uma maldição nesta cidade! Todos os anos
uma moça é levada a se jogar do penhasco e desaparecer para sempre. A peste... Se lembra? E o Dr. Prynne disse
que eu tenho os sintomas...
Susan
abriu a boca para protestar, mas Anne não lhe deixou falar:
–
Eu ouvi quando ele disse à Sra. Garber. É por isso que o Reverendo está tão
perturbado, e porque ele não queria nos contar a história da mansão. Porque ele
sabe que a escolhida desta vez sou eu! Porque quando o sol nascer amanhã, a
minha cama estará vazia, e vocês terão que fazer um funeral, como o de todas
aquelas garotas, e dizer às pessoas que precisaram queimar o meu corpo para que
a peste não se espalhasse...
–
Por Deus, não diga isso! – ralhou Susan.
–
Você sabe que é assim, Susan! – bradou Anne, com uma lágrima de pavor lhe
escapando dos olhos. E baixou novamente a voz para um sussurro. – Foi assim com
todas as outras, embora ninguém nunca tenha se atrevido a dizer; embora eles
tentem disfarçar a verdade. Foi assim com Lizbet também. Ela percebeu, pouco
antes de morrer, o que estava prestes a acontecer, e deixou o aviso, para que
ninguém mais fosse vítima da peste. Mas ninguém deu ouvidos... Claro... Porque
ela morreu... Porque a mãe dela ficou louca... E porque, no fundo, todos sabem
que é inútil lutar contra o inevitável.
Susan
ergueu uma das mãos, e acariciou o rosto da irmã, aproximando-se para abraçá-la
e conduzi-la calmamente para casa, mas Anne pôs um braço entre elas.
–
Pare! Eu não estou doente! – protestou, e sua voz era quase um sussurro. – Nem
estou louca!
–
Eu nunca pensei que estivesse... – garantiu Susan.
–
Você não o viu... – disse Anne, com o olhar novamente distante. – Eu o vi! É
impossível resisti-lo...
Susan franziu o cenho, encarando a irmã com desconfiança.
– Quando ele me chamar essa noite para acompanhá-lo até o penhasco – prosseguiu Anne –, eu provavelmente não poderei resistir.
– Do que você está falando...? – Susan começou a perguntar, mas foi interrompida por um grito da irmã, que agora encarava furiosamente alguma coisa atrás dela.
– Ei, você! Por que está nos espionando?
Susan se virou bruscamente, e também encarou a figura parada à porta da casa alfandegária, que as observava, parcialmente escondida nas sombras.
– Mostre seu rosto, covarde! – bradou Anne, enquanto Susan tentava detê-la e afastá-la dali.
Mas então o homem caminhou para fora, e o coração de Susan estremeceu, a um só tempo de felicidade e melancolia.
– Perdão... – disse Roger Bellingham, com a voz suave e destemida, caminhando na direção delas. – Apenas fiquei surpreso por ouvir os gritos de vocês e saí para ver o que estava acontecendo.
Um sorriso tímido apareceu involuntariamente nos lábios de Susan. Tinha imaginado mais cedo se teria a chance de vê-lo ainda mais uma vez antes que ele partisse – talvez para sempre, como lhe dissera –, mesmo sabendo que não deveria alimentar qualquer esperança em relação a ele.
– Ouvi que falavam sobre uma mulher louca...? – quis saber Bellingham, correndo os olhos azuis de uma para a outra.
A expressão de Anne se suavizou repentinamente, enquanto desviava o olhar daquele homem.
– O senhor me desculpe – disse Anne, embaraçada, olhando-o timidamente com a cabeça baixa. – Eu só estou um pouco nervosa.
Ele simplesmente sorriu.
– É bom ver que está bem hoje, senhorita Dawson – disse Bellingham, como que mudando de assunto, desviando o olhar para Susan, e prendendo-o nela com um magnetismo sedutor.
Ela se lembrava de ter contado a ele que sua irmã estava doente, mas não imaginou que ele fosse se lembrar. Havia qualquer coisa no olhar dele agora que fazia seu coração gelar. Talvez fosse porque ele a estava encarando havia alguns segundos, sem que nenhum dos dois dissesse mais nada. Ou talvez ela estivesse se iludindo. Mas havia alguma coisa estranha naquele olhar; ela podia sentir, mas não conseguia compreender o que era.
– É bom ver que ainda está aqui, Sr. Bellingham – disse Susan, torcendo para que ele não interpretasse de maneira inadequada suas palavras.
– Eu só vou partir esta noite – esclareceu ele. – Mas tenho ainda alguns assuntos para resolver primeiro.
O olhar dele se desviou então para Anne, queimando fundo dentro dos dela, quase com admiração apaixonada.
– Eu poderia lhe perguntar para onde o senhor vai? – A voz de Susan saiu trêmula. Tinha medo de que ele percebesse o interesse furtivo em suas palavras.
– O mar me chama – ele disse, simplesmente, sorrindo para as duas com adorável simpatia.
Um arrepio percorreu o corpo de Susan ao imaginar que Anne também poderia receber um chamado do mar naquela noite. Provavelmente, um chamado muito diferente daquele que forçava Bellingham a partir. Um navio mercante estava se preparando para zarpar naquela madrugada do cais de Salem, provavelmente para a Europa, portanto não era difícil adivinhar que Bellingham faria parte de sua tripulação.
– Não creio que esta seja uma boa noite para se lançar ao mar – murmurou Susan impulsivamente, e imediatamente se arrependeu disto, torcendo para que ele não a tivesse escutado.
Mas o sorriso no rosto dele desapontava esta esperança, ao mesmo tempo em que ele aquiescia com a cabeça.
– Muitos segredos se escondem nas águas de Salem – disse Bellingham, suavemente, lançando a ela um olhar misterioso. – Foi um prazer vê-las, senhoritas. – E ao acenar em despedida, lançou um olhar discreto de uma para a outra. – Até breve!
As duas ficaram paradas, observando enquanto ele retornava à casa alfandegária, e então, Susan conduziu a irmã em silêncio para casa.
Anne estava muito cansada. Era assim todos os dias desde que a perturbação começou. O mínimo esforço a enfraquecia, e exigia que dormisse por algumas horas para se recompor.
Susan a acompanhou até seu quarto, e ajeitou ternamente as cobertas sobre ela para que descansasse.
– Você acha que isso acontece com todas? – indagou Anne, baixinho, meio sonolenta.
– O que exatamente?
– Que todas as moças percebem, pouco antes de desaparecer, o que o destino lhes reserva?
Susan não queria acreditar nisso. Tinha de haver um meio de livrar Anne da peste, e ela não descansaria naquele dia antes de descobrir como.
– Não sei – respondeu, tentando parecer casual. – Mas isso não vai acontecer com você. Você não é uma das garotas da lista. E amanhã de manhã, quando você acordar, nós vamos olhar para o oceano através da janela da sala, e respirar aliviadas por tudo ter finalmente acabado. E vamos comemorar o nosso aniversário com um delicioso bolo de nozes que a Sra. Garber vai preparar, como em todos os anos.
Anne sorriu com serenidade, fechando os olhos.
– Você é uma péssima mentirosa, Susan – murmurou, pouco antes de adormecer.
Uma lágrima escapou dos olhos de Susan antes que ela pudesse evitar. Anne era toda a família que lhe restava, e ela simplesmente não suportaria perdê-la também.
Seu olhar vagueou distraidamente para a mesinha de cabeceira, enquanto ela enxugava as lágrimas com as pontas dos dedos, e percebeu uma mudança naquele móvel: a Bíblia que antes ficava ali havia sido retirada, e um livro com capa de couro marrom ocupava seu lugar.
Susan estremeceu ao notar certa familiaridade naquele livro. Apanhou-o cuidadosamente, e afastou-se um pouco da cama da irmã, para evitar que o som monótono das páginas sendo viradas a despertasse. Aproximou-se da janela, e certificou-se de estar trancada, aproveitando para dar uma espiada no mar tranquilo, antes de abrir o livro.
Já na primeira página Susan pôde confirmar sua suspeita: aquele era o diário que Anne havia roubado na mansão submersa, e pelo qual lutara com a sereia loura. Centralizada na primeira página, numa caligrafia elegante, estava a assinatura do dono do diário: Robert Thomas Griplen.
Um calafrio percorreu o corpo de Susan ao ter contato pela primeira vez com o nome e o sobrenome juntos, como se aquele nome, por si só, infringisse todas as leis sagradas.
As primeiras páginas pareciam ter sido escritas por um jovem comum, na flor de seus vinte anos. Escreveu várias vezes sobre a sorte de ter o amor de sua bela Lucy Croft, cujo rosto desenhara com carvão em várias páginas do diário. Ela era lindíssima, e ele parecia muito apaixonado e feliz.
As últimas anotações, porém, eram mais sombrias.
A família Griplen aparentemente não estava satisfeita com a mulher escolhida pelo filho, por isso Robert escrevera algumas vezes que não permitiria que nada no mundo se interpusesse à sua felicidade ao lado da noiva. Chegou a declarar, com um fervor apaixonado, que seu espírito não descansaria em paz se algo o impedisse de se casar com Lucy. Parecia que ele estava prevendo a tragédia que destruiria sua família.
A última anotação datava de 23 de março de 1646, véspera da tragédia:
“Amanhã é o grande dia. A consumação do meu amor absoluto pela divina Lucy! – escrevera Robert. – Eu não poderia estar mais feliz, ou mais ansioso... Não importa o que aconteça, nada me impedirá de unir minha vida à dela por toda a eternidade!”
De repente Susan se lembrou novamente das palavras que Lizbet Sofer escrevera antes de morrer: “a cada primavera, no aniversário de sua morte, ele precisa se casar...”.
Então sua mente girou; um emaranhado de palavras e conclusões se ajustando e começando a fazer sentido:
Ele precisa se casar...
Ele...
O espírito profano das águas...
Robert Griplen!
Susan jogou o diário no chão, assustada, como se ele tivesse se transformado numa serpente. Num canto da página aberta havia o mesmo símbolo que ela vira em quase todas as portas da mansão submersa, que lembrava uma forquilha. Àquela altura ela tinha certeza de que não era um brasão de família, mas um símbolo pagão.
Talvez Anne tivesse razão: havia uma maldição em Salem. Susan não conhecia muito sobre rituais e religiões profanas, nem sobre eventos sobrenaturais, mas tinha certeza de que a determinação de Robert Griplen em desposar Lucy poderia ter mantido seu espírito vivo nos últimos duzentos anos, a fim de procurá-la. E como, por alguma razão, ele não conseguiu encontrar sua noiva, ele seduzia as mulheres da cidade para o seu palácio submerso.
E também sobre isso Anne tinha razão: talvez não fosse possível resisti-lo. Ela também o tinha visto. E nas últimas duas noites ela também estivera sob seu encanto. Agora não era mais possível ela acreditar que fora apenas um sonho. Quando ele se esgueirava mansamente até a cama, e se deitava entre elas; quando as aconchegava em seu peito, e as fazia dormir em seus braços; quando lhe acordava no meio da noite deleitando-a com seus beijos; quando a olhava hipnoticamente através da máscara veneziana, não era um sonho. Era Robert Griplen, o espírito profano que habitava as águas de Salem, seduzindo suas noivas.
A constatação fez o coração de Susan se apertar e seu estômago revolver. Um sentimento desolador de impotência se abateu sobre ela. Se ela própria, não sendo a vítima escolhida por ele para esta primavera não fora capaz de resisti-lo, então talvez não houvesse realmente esperança para sua irmãzinha. Talvez o Reverendo tivesse razão: trancar Anne no sanatório, ainda que manchasse sua reputação para sempre, seria o menor dos prejuízos, se com isso pudessem salvá-la desse demônio do mar.
Outra lágrima escorreu no rosto de Susan, agora que ela sabia que Anne não poderia escapar completamente incólume desta situação. Naquela noite só haveria dois destinos possíveis para ela: ser estigmatizada como louca, por ter que passar uma noite trancada no sanatório municipal, e com isso, talvez, ser condenada a uma vida de solidão e pena – ao menos enquanto vivesse em Salem –, ou tornar-se para sempre amante de um fantasma amaldiçoado.
O coração de Susan se apertou mais uma vez ao pensar em qual desses destinos terríveis a irmã escolheria, caso alguém lhe perguntasse; uma escolha que provavelmente ela mesma não seria capaz de fazer diferente. Robert Griplen representava uma abominação terrível, sim; contudo, mesmo sem conhecê-lo tão bem quanto sua irmã provavelmente conhecia, já que estava sendo visitada por ele há semanas, Susan se reconhecia incapaz de resistir ao seu encanto.
E isto era o mais terrível de tudo. Pois mesmo que escapasse das garras de Robert, Anne não podia mudar o que já tinha acontecido. E Susan também não. Mesmo que uma delas, ou as duas sobrevivessem àquela noite, Susan tinha consciência de que as duas estavam completamente perdidas. Havia muito mais em jogo do que simplesmente a sanidade de Anne, ou a dela própria. A honra de ambas havia sido manchada pelas mãos profanas de Robert Griplen.
Susan encarou o diário jogado no chão. Na página aberta, a forquilha apontava para ela ameaçadoramente, como uma sentença de morte. Com um nó apertando sua garganta, Susan atirou uma almofada da poltrona sobre o diário, para tirá-lo de seu campo de visão, e se virou para apanhar uma vela no castiçal sobre a cômoda, atrás da poltrona, decidida a atear fogo naquele livro das trevas, desejando que isso pudesse destruir também o poder de seu autor e mandá-lo definitivamente para o inferno. Mas quando se voltou com a vela na mão, Anne estava de pé junto à parede à sua frente, apertando o livro protetoramente em seu peito.
– Anne, me dá o livro! – exigiu Susan, encarando severamente a irmã, como uma mãe que repreende a filha.
Mas Anne o apertou com mais força em seu peito.
– Anne! – bradou Susan. – Me dá o livro!
A garota agitou a cabeça para ambos os lados, abraçando-o mais firme.
– Eu estou falando sério, Anne... – disse Susan, friamente, estudando a expressão da irmã.
– O que vai fazer com essa vela? – indagou Anne, encarando a chama com horror.
– Essa coisa precisa ser destruída, você entende?
Mas Anne permaneceu imóvel, agarrada ao livro como quem protege a um filho.
– Me dá esse livro, Anne! – exigiu Susan, com um brado forte.
– Não! – berrou Anne, correndo para a porta, com o livro apertado em seu peito.
Susan avançou sobre ela, e agarrou seus cabelos, puxando-a de volta com um tranco violento. O corpo de Anne bateu com força na cama, e Susan montou em suas costas, usando a mão livre para tentar arrancar o livro de seu abraço.
– Saia de cima de mim! – berrou Anne.
– Me dá o livro, e eu saio!
– Nunca! Não vou deixar que o destrua!
– Anne!
– Para tirá-lo de mim, vai ter que matar!
Dominada por uma fúria sobrenatural e inexplicável, Susan golpeou com força o braço de Anne com seu cotovelo, ofegando ao ouvi-la gritar de dor. E enterrando a mão debaixo de seu corpo, tentou puxar o livro, mas Anne o prendia completamente com seu peso.
– O que está acontecendo aí dentro? – perguntou a Sra. Garber, mexendo na maçaneta para tentar abrir a porta, mas estava trancada à chave.
Ignorando completamente a interferência da governanta, Susan usou o outro cotovelo para golpear as costas da irmã, tentando forçá-la a largar o livro, se não voluntariamente, que se rendesse pela dor.
– Abram a porta! – berrou a Sra. Garber, esmurrando-a pelo lado de fora.
– Largue-o! – gritou Susan para Anne, mal consciente dos apelos da governanta.
– Não! – choramingou Anne, sob o peso de seu corpo.
A governanta começou a forçar a porta, gritando por ajuda, enquanto Anne se debatia, tentando se libertar do peso da irmã.
Susan usou o cotovelo novamente para golpear o braço da irmã, tentando puxar o livro pelo outro lado, enquanto a governanta continuava a gritar do lado de fora. Num ímpeto de fúria, Anne impulsionou o corpo para cima, empurrando a irmã para o chão. A vela escapou da mão de Susan e o fogo rapidamente se espalhou pelo tapete do quarto.
Como se nem ao menos estivesse consciente do fogo, Susan se lançou sobre a irmã, e agarrou o diário de Robert Griplen bem firme com as duas mãos, lutando para arrancá-lo de Anne. Sem se importar em feri-la gravemente, Anne acertou o joelho com toda a força no ventre de Susan, fazendo-a rolar de lado, ofegando de dor, e se ergueu depressa, tentando correr em direção à porta, mas Susan, lutando contra a dor, agarrou o tornozelo da irmã e a puxou para o chão, arrastando-a de volta para si.
Susan avançou selvagemente sobre Anne outra vez, usando o livro que ela protegia para bater em seu corpo, tentando forçar que o soltasse, mas as mãos de Anne pareciam petrificadas em torno do diário, prendendo-o num aperto de aço.
– Sra. Garber? – A voz do jardineiro soou distante, provavelmente vinda das escadas.
– Me ajude a abrir esta porta – aturdiu a governanta, chacoalhando a maçaneta.
O jardineiro se apressou e experimentou a fechadura, e como ela não cedeu, ele mandou que a Sra. Garber se afastasse, e se lançou contra a porta para arrombá-la.
Anne agitou o livro com força, arremessando-o contra o rosto da irmã para afastá-la, sem se importar em machucá-la, ao mesmo tempo em que os golpes pesados do corpo do jardineiro começaram a estremecer violentamente a porta, até que a fechadura finalmente cedeu, fazendo-a bater com estrondo na parede do fundo.
Como duas feras selvagens se agredindo mutuamente, as duas irmãs continuaram a lutar, enquanto o jardineiro entrava correndo no quarto, e agarrava Susan pela cintura, puxando-a para longe de Anne, que correu imediatamente para fora.
– Santo Deus! – exclamou a Sra. Garber, invadindo o quarto atrás dele, ao ver o fogo subindo pela parede.
O jardineiro largou Susan, puxou a colcha da cama e tentou usá-la para abafar as chamas, mas o fogo havia crescido demais. E enquanto ele e a Sra. Garber lutavam para apagar o incêndio, Susan correu atrás da irmã, mas ela já havia se trancado com o diário de Robert Griplen no quarto que fora de seus pais.
– Anne! Abra esta porta! – gritou Susan, esmurrando a madeira com força.
Mas nada aconteceu.
– Anne, essa coisa vai matar você! – alertou Susan, ameaçadoramente.
– Vá embora! – bradou Anne de dentro do quarto.
– Por favor, Anne... – insistiu Susan, agora com a voz embargada. – Eu só quero proteger você!
A Sra. Garber veio do quarto de Anne, furiosa, pronta para exigir explicações sobre a cena horrível que ela o jardineiro tiveram que apartar, mas ao perceber o desespero na voz e principalmente no rosto de Susan, apenas tocou ternamente seu ombro, e tentou confortá-la.
– Vai ficar tudo bem, minha querida – sibilou a governanta, em um tom amoroso.
Mas Susan negou com a cabeça.
– Ele está vindo... – disse Susan, entre lágrimas, e sua voz não era mais do que um sussurro.
A Sra. Garber franziu o cenho, sem compreender o que ela estava dizendo.
– Ele virá esta noite para buscá-la – completou Susan, colocando sua mão sobre a da governanta em seu ombro, e baixando a cabeça, os olhos nublados de lágrimas.
– Querida... – começou a Sra. Garber, mas Susan não lhe deixou concluir.
– Ele vem todos os anos, como um espectro mortal.
Susan ergueu os olhos e encarou a Sra. Garber.
– Você sabe o que ele é... não sabe? – disse Susan, quase acusadoramente, como se a culpasse por mantê-las alheias a todas as abominações que maculam a história da cidade. – A... peste! – Ela frisou bem a palavra, com desdém, e com evidente repulsa. – Ele habita essas águas...
A Sra. Garber deu um suspiro pesado, e assentiu devagar.
E então, subitamente, uma lembrança martelou na cabeça de Susan, deixando-a tonta.
“Muitos segredos se escondem nas águas de Salem...”.
A voz de Roger Bellingham ecoou em sua mente, e as palavras a deixaram sem ar.
– Não são apenas as águas de Salem que guardam segredos... – murmurou Susan, com os olhos baixos.
– O que quer dizer? – indagou a Sra. Garber.
Havia um traço de mágoa em sua voz. Susan ergueu os olhos para ela novamente, e percebeu em sua expressão que a tinha ofendido. Mas não se desculpou. Embora a acusação não fosse exclusivamente contra ela, parte da culpa certamente lhe cabia.
Susan se afastou das mãos da governanta, e começou a descer lentamente as escadas enquanto enxugava as lágrimas. Talvez não estivesse em suas mãos salvar Anne daquele destino abominável, mas enquanto houvesse uma mínima esperança, ela lutaria. E para isso, precisava conhecer o resto da história que a cidade inteira, e especialmente seus tutores, insistiam em manter escondida sob um manto de mentiras.
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