23 de março de 1646
O
crepúsculo manchava o céu de Salem com cores vibrantes, quando Robert terminou
a subida ao penhasco, onde costumava encontrar-se com sua amada Lucy. Tinha lhe
enviado uma mensagem mais cedo, por um moleque que ele sabia que era
analfabeto, pedindo que ela fosse encontrá-lo no fim da tarde. Não podia
realmente ter escolhido paisagem mais bela para emoldurar sua amada: de um lado
do céu, o laranja brilhante do sol baixando no horizonte; do outro, um violeta
profundo se aproximava mansamente, arrastando em sua calda o escuro véu da
noite.
Lucy
o aguardava, sentada numa pedra perto da beira do penhasco. Usava um vestido
azul celeste, com um xale de crochê extremamente delicado. Brincava com uma
mecha de seus cabelos negros quando Robert chegou, e sua postura e beleza lhe
fazia compará-la a uma sereia.
Como
ele gostaria de ter uma tela à mão neste momento, para pintá-la exatamente como
a encontrara: sua beleza de bronze emoldurada pelas cores exuberantes do
crepúsculo.
Lembrou-se,
desgraçadamente, de uma discussão que tivera com o pai naquele dia mais cedo –
a última, Robert havia decidido –, em que George jurara que o filho jamais
seria feliz ao lado de Lucy. Em qualquer outra família, um juramento dessa
natureza não passaria de um punhado de palavras amargas, proferidas com rancor;
mas o juramento de um Griplen jamais deve ser subestimado.
Lucy
olhou para ele e sorriu. E então o coração de Robert se perdeu completamente
sob o encanto dela.
–
Esta noite não haverá uma só estrela no céu de Salem – anunciou Robert,
sorrindo de volta.
Lucy
ficou de pé, ergueu os olhos para o lado escuro do horizonte, e franziu o
cenho.
–
Como pode saber disso? – ela perguntou, confusa, procurando no céu em quê ele
se baseava para dizer isso.
Lucy
baixou os olhos, sorrindo com timidez. Os cílios escuros projetaram uma sombra
graciosa sobre suas maçãs, e Robert não resistiu em beijá-la ali.
–
Você diz cada coisa... – sussurrou Lucy, pousando as mãozinhas delicadas nos
ombros de Robert, hesitando em passar os braços em volta de seu pescoço, sob o
olhar vigilante de sua dama de companhia. – Às vezes temo ser mais bela aos
seus olhos do que o sou de fato.
Robert
balançou a cabeça em negativa, com um sorriso jocoso brincando nos lábios,
enquanto segurava as mãos de Lucy entre as suas.
–
Neste caso, devo ser um tolo – afirmou ele. – Ou você, uma feiticeira.
Os
olhos de Lucy ficaram espantados, e ela deu uma espiada na governanta, que os
observava há cerca de dez ou quinze passos, talvez longe o bastante para não
escutá-los, visto que falavam muito baixo. Ao que Robert prosseguiu, sem se
incomodar com a presença dela:
–
Mas estou certo de que há duas mentiras nessas afirmações: você não é bela
somente aos meus olhos, e, sendo assim, não sou um tolo.
–
São três as mentiras – corrigiu Lucy. – Também não sou feiticeira.
–
Disto não estou tão certo. – Ele encostou a mão de Lucy em seu peito, e viu,
com satisfação, o rubor lhe subir à face. – Veja o que faz a este coração
amaldiçoado somente por me permitir admirá-la. – E curvando-se graciosamente,
sussurrou ao ouvido dela: – Você me enfeitiça!
O
sorriso de Lucy se ampliou ao sentir o coração acelerado do amado.
–
Eu seria capaz de desafiá-lo – propôs, timidamente. – Se procurar bem,
certamente encontrará duzentas mulheres mais belas que eu em Salem.
–
Ainda que eu vivesse duzentos anos, estou certo de que não as encontraria –
garantiu Robert.
–
Não diga isso... – Lucy começou a dizer, mas um vento gelado atravessou seu
corpo subitamente, fazendo-a puxar o xale para se aquecer melhor.
–
O que há, querida? – indagou Robert, preocupado.
–
Estou bem – respondeu ela, dando-lhe um sorriso breve. E mudou de assunto: –
Você parecia tenso quando chegou. Preocupado...
–
Não é nada...
–
Você não me engana – retrucou ela, pacientemente. – Aconteceu alguma coisa...?
Ele
deu um suspiro chateado.
–
É porque vamos nos casar amanhã? – supôs Lucy.
Robert
sorriu.
–
Acho que estou um pouco ansioso – admitiu.
–
Mas não é só isso... – percebeu ela.
E
como ele não respondesse, ela inquiriu:
–
É o seu pai?
O
olhar de Robert escureceu, e uma sombra de rancor atravessou toda a sua
expressão.
–
Ele vai tentar te convencer a me deixar, até o último minuto – deduziu Lucy,
mais resignada que ofendida.
–
Ele sabe que é inútil lutar – garantiu Robert.
Todavia
era precisamente esse o motivo de sua preocupação. E Lucy compreendeu isso, sem
que ele precisasse dizer algo mais.
–
Você teme que ele faça algo contra nós. – Não era uma pergunta. Embora não
admitisse, Lucy tinha os mesmos temores que Robert agora se recusava a
compartilhar com ela.
–
Quero acreditar que não – disse Robert, exalando um suspiro pesado. – Ele está
contrariado... Se sentindo traído, decepcionado... Mas eu sou o único filho que
ele tem; o único que pode passar adiante o seu sobrenome. E por mais que ele
esteja insatisfeito com a escolha do meu coração em cortejar o seu, não posso
acreditar que ele faria qualquer coisa contra mim...
Robert
praticamente se interrompeu quando proferia a última palavra. Seu coração
martelou mais forte e dolorosamente em seu peito ao ler no olhar dela que Lucy
havia compreendido bem o significado.
–
Contra você, não – aquiesceu ela. – Mas contra mim...
Robert
cobriu os lábios dela com um dedo para interrompê-la.
–
Não diga, por favor! – suplicou ele. Uma fúria selvagem irrompeu em seu olhar
apenas por imaginar a possibilidade. – Porque eu prefiro vê-lo morto antes de
permitir que ele a machuque!
–
Por Deus, não diga uma coisa dessas, Robert! – implorou ela, aflita.
Ele
fechou os olhos por um momento, recuperando o controle de seus nervos.
–
Desculpe – sibilou ele. – Eu fico doente só de pensar na possibilidade de...
–
Eu compreendo, querido – disse Lucy, afagando suavemente o rosto dele com uma
das mãos. – Mas ele é seu pai! E talvez seja como você disse: ele não seria
capaz de fazer algo que machucasse você... Incluindo ferir a mim.
–
Ele não precisaria necessariamente machucar um de nós dois para nos tornar
infelizes. Já lhe contei as coisas que esse poder das trevas que flui em minha
família nos permite fazer. Há muitas maneiras de ele nos arruinar.
–
Acha que temo a pobreza?
–
Não estou falando de miséria material. Para isso, ele só teria que me deserdar.
Mas então o nome dos Griplen se tornaria sinônimo de desonra. Estou falando de
outro tipo de ruína.
Lucy
tornou a acariciar o rosto dele.
–
Eu não tenho medo das pragas que seu pai pode lançar sobre nós – disse ela,
suavemente.
–
Mas deveria – alertou Robert, sua expressão escurecendo outra vez. – Algumas
delas podem ser piores do que a morte.
–
Contanto que estejamos juntos, meu querido, nada me fará infeliz – garantiu
Lucy.
Robert
acariciou o rosto dela. Embora já tivesse compartilhado aquela parte tenebrosa
de sua história com a amada, sentia-se estranhamente grato por ela não estar
assombrada.
Os
Griplen pertenciam a uma antiga comunidade de feiticeiros; uma das últimas
comunidades da Velha Ordem. Sua magia era algo sobrenatural e praticamente
inexplicável para quem não fazia parte de seu mundo, mas Lucy compreendia que
aquele poder era antes uma maldição que uma virtude. E o próprio fato de Lucy
compreender não era natural. Talvez seu coração a tivesse desejado tanto, que
ele acidentalmente a colocara sob algum tipo de encanto. Mas isso não fazia
diferença agora, porque se era isto que garantia o amor dela, Robert não era
capaz de desfazer. Mesmo sabendo que deixá-la livre era o melhor para ela.
Era
um sentimento repugnantemente egoísta: pois o amor dela por ele, talvez,
tivesse o poder de lhe trazer redenção; ao passo que o seu amor por ela, muito
provavelmente, seria a causa de sua perdição.
Robert
beijou as mãos de Lucy, decidido a deixar este assunto de lado. Sentiu a brisa
morna da noite de Salem envolvê-los como um abraço. As noites se tornavam cada
vez mais quentes desde a chegada da primavera; mais até que nos anos
anteriores. Robert havia prometido à Lucy o clima perfeito na noite de sábado,
e embora ela não acreditasse que seu poder fosse tão grande a ponto de garantir
isso, ela percebia que aquele calor não era natural.
Robert
conferiu rapidamente que a dama de companhia de Lucy não estava olhando em sua
direção, e concentrou o olhar na pedra onde ela estivera sentada quando ele
chegou, e em seguida sorriu, indicando-a com a cabeça. Quando Lucy se virou,
meia dúzia de jasmins havia crescido magicamente na base da pedra.
–
Que coisa linda, meu amor! – exclamou ela, maravilhada.
–
Eu farei crescer um jardim inteiro para você na nossa casa, minha querida –
prometeu Robert.
–
Nossos vizinhos irão estranhar um jardim que floresce da noite para o dia –
advertiu Lucy.
–
Então terei que fazer isso em duas noites – solucionou Robert.
Lucy
sorriu.
Tinham
construído uma casa em frente à praia. Não uma mansão, como a da ilha dos
Griplen, mas um bom sobrado com quatro quartos e uma bela entrada para o
jardim. O seu futuro palácio de amor.
Uma
ave grasnou ao longe, e então Lucy estremeceu outra vez, tornando a puxar o
xale.
–
Você está bem? – indagou Robert, preocupado.
–
Não sei – disse Lucy. – De repente senti um calafrio...
–
Não é a primeira vez que a vejo se encolher dessa maneira.
Lucy
deu de ombros.
–
É algo que herdei da minha avó – explicou ela. – Uma tolice, suponho. Vêm como
pressentimentos, ou algo assim... Não dê importância.
–
Eu sempre disse que havia algo mágico em você – disse Robert, afagando os
cabelos dela.
Mas
Lucy balançou a cabeça em negativa, e baixou os olhos, embaraçada.
–
Temo que essa magia que você vê em mim não seja uma virtude – sussurrou,
timidamente.
–
Não creio que a minha também seja. Mas abençoados, ou amaldiçoados, a partir de
amanhã, teremos a eternidade juntos para desfrutar o que quer que seja.
Lucy
deu um suspiro, concentrando-se em ignorar aquela estranha sensação agourenta.
E então alguma coisa despencou do céu bem ao lado deles, fazendo-a dar um grito
assustado. Robert a puxou para mais perto de si, e ela escondeu o rosto em seu
peito por um instante, horrorizada. Um amontoado de penas negras ensanguentadas
jazia no chão perto deles, como um mensageiro das trevas que veio confirmar os
temores de Lucy.
Ela
precisou de um segundo para criar coragem de abrir os olhos, e conferir a
imagem agourenta: era um corvo, que havia caído morto aos seus pés.
–
Está tudo bem, querida – disse Robert, interpondo-se entre sua noiva e a ave
morta. – Deve ter sido atingido por uma pedra que alguém jogou.
–
Não, Robert... – murmurou Lucy, assustada. – Veja... Há espinhos cravados nos
olhos dele.
Robert
baixou os olhos para o bicho morto. Os olhos vidrados do pássaro maldito
estavam raiados de sangue, com um espinho em cada um, fincado bem no centro das
pupilas, que refletiam agora o cinza azulado típico da cegueira.
Esse
rito grotesco somente era praticado com um objetivo: obscurecer a visão de uma
vítima em relação a algo ou alguém, fazendo que não visse, ou não desse
atenção; e desse modo, o próprio desejo deveria se tornar obsoleto.
–
É algum tipo de aviso? – perguntou Lucy, horrorizada.
Robert
não teve coragem de dizer a verdade. Seu pai estava trabalhando em sua promessa
de estragar a felicidade do futuro casal. E embora Robert não compreendesse
exatamente qual era o plano dele, o pássaro morto era um alerta de que algo
terrível poderia estar a caminho.
Um
rastro de ódio inflamou o olhar de Robert, que agora ficara de costas para
Lucy. A partir daquele momento, George Griplen não era mais seu pai. Ele era
seu inimigo. E como qualquer soldado numa guerra, Robert estava pronto para
morrer ou para matar.
–
Robert... – chamou Lucy, suavemente.
Ele
precisou respirar fundo algumas vezes antes de se voltar para ela. Não queria
que ela tivesse a visão do demônio assassino em seu olhar.
–
Isso quer dizer alguma coisa, não é? – ela perguntou, mais intensamente desta
vez.
–
Eu lhe fiz uma promessa – lembrou Robert –, de que nada irá machucá-la. E eu
vou manter a minha palavra.
–
Eu não estou preocupada comigo – garantiu Lucy; e Robert sabia o que ela queria
dizer. Um rastro de ódio ainda era visível em seu olhar, e ela tentaria fazê-lo
recordar que o homem que lhe despertara esse sentimento abominável era seu pai.
Essa inimizade ia contra todos os valores que ela prezava.
Robert
apertou a mandíbula. Detestava vê-la desapontada, e certamente não conseguiria
argumentar com ela, mas a guerra que George Griplen declarava estava acima de
seus valores. Ele não seria capaz de explicar, contudo, todo o horror que ela
envolvia.
Lucy
deu um suspiro, percebendo-se vencida pela amargura que ele sustentava no
olhar. Então ela se abaixou e arrancou duas penas da ave morta.
–
O que está fazendo? – indagou Robert, surpreso.
–
Você me disse uma vez que um pacto de sangue não pode ser violado, não importa
a força que esteja contra – lembrou Lucy. – Nem a natureza, nem a morte, e eu
me atrevo a supor: nem qualquer poder das trevas...
Robert
assentiu.
–
Eu não sei o que isso significa – disse Lucy, indicando com a cabeça o corvo
morto. – Mas eu sei que o nosso amor pode ser mais forte que qualquer maldição
do seu pai.
Ela
deu uma das penas para Robert, que a segurou, encarando a noiva com o olhar
semicerrado.
–
Façamos um pacto, então – propôs Lucy, completamente convicta de suas palavras.
Robert
fez menção de interrompê-la, mas ela não permitiu:
–
E não me diga que eu não devo me envolver com a magia obscura que você possui,
porque eu assumo toda e qualquer responsabilidade pelas consequências, contanto
que isso anule os tentos do seu pai, e acabe de uma vez com essa estúpida
guerra entre vocês dois.
Então,
ele aquiesceu novamente, estupefato com a segurança com que ela falava. Lucy
sempre fora muito cautelosa ao falar ou lidar com o poder dos Griplen.
Provavelmente, ela agora se sentia tão ultrajada quanto ele pelo mensageiro
torvo que seu pai enviara para arruinar aquele último encontro antes do
casamento.
–
Juremos pelo nosso sangue, que haja o que houver, minha vida e a sua estarão
unidas pela eternidade.
Robert
ponderou por um instante. O que ela pedia era exatamente o que ele gostaria de
lhe garantir; e talvez ela tivesse encontrado a solução que ele não
considerara. O juramento não deteria seu pai, ou o que quer que ele estivesse
preparando contra eles, mas garantiria que jamais fossem separados.
Lucy
olhou fixamente nos olhos de Robert, e usou a base da pena do corvo para furar
a ponta de seu dedo, fazendo brotar uma rubra e brilhante gota de sangue.
Robert viu a convicção nos olhos amendoados da amada, e fez o mesmo, unindo seu
sangue ao dela na ponta dos dedos, para selar seu pacto de amor.
–
Eu juro que nem minha família, nem o destino, nem mesmo a morte será capaz de
impedir que passemos a eternidade juntos, minha Lucy – declarou Robert, após
murmurar algumas palavras, provavelmente as mesmas, numa língua que Lucy não
compreendia. – Embaixo ou em cima da terra, sob as bênçãos dos céus ou as
maldições do inferno, ficaremos juntos para sempre.
A
segunda parte do juramento de Robert fez outro calafrio atravessar o frágil
corpo de Lucy. Porém, ela nada disse. Apenas o imitou, erguendo junto com ele
acima de suas cabeças as penas do corvo, com que colheram as preciosas gotas de
sangue, e as soltaram ao mesmo tempo, para que fossem carregadas pelo vento, enquanto
seus dedos furados permaneciam unidos, selando o pacto.
Ignorando
agora completamente a presença da dama de companhia de Lucy, Robert se inclinou
para beijá-la, sem que ela fizesse qualquer objeção. E enquanto eles selavam
com este beijo o pacto de amor, as penas banhadas em sangue mergulharam juntas
do penhasco e desapareceram para sempre na pequena piscina entre as pedras lá
embaixo.
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