23 de março de 1846
A
Sra. Garber dormia profundamente quando Susan e Anne retornaram de sua excursão
à mansão submersa, e pela manhã, ela sequer suspeitaria que as duas irmãs
haviam saído de casa. Apesar de todo cuidado e dedicação que a governanta
demonstrava com as duas, especialmente nas últimas semanas, desde que Anne
começara a apresentar os sintomas da peste, ao contrário de Susan, ela não
havia perdido o sono uma noite sequer. E na verdade, Susan não a recriminava
por isso. Na primeira noite em que Susan havia encontrado a cama da irmã vazia,
ela tentara acordar a Sra. Garber, para que ajudasse a procurá-la, no entanto,
por mais que a chamasse e sacudisse, Susan não fora capaz de despertá-la. Se
não tivesse sentido sua respiração, ela poderia ter pensado que a governanta
estava morta.
Todavia
Susan não tinha sossego. Parecia sentir cada vez que a irmã despertava no meio
da noite, e saía no sereno para caminhar pela praia. Quando eram pequenas, sua
mãe costumava dizer que havia um cordão umbilical invisível unindo Susan e Anne
desde o ventre, e que nada no mundo seria capaz de parti-lo. No entanto, agora
Susan não conseguia ter tanta convicção nisto, pois desde que Anne adoecera –
se é que estava, de fato, doente –, ela sentia que esse cordão se equilibrava
fragilmente sobre uma navalha, e o coração de Susan se apertava e doía
simplesmente por pensar que a qualquer momento ele poderia se partir.
Como
na noite anterior, as duas irmãs trocaram de roupa e se enfiaram na cama de
Anne, exaustas. Susan se certificou de ter trancado a porta e a janela do
quarto da irmã, antes de se deitar ao seu lado na cama, e por algum tempo lutou
contra o cansaço para vigiar seu sono.
Anne
adormecera quase imediatamente após se deitar. Os delírios, e certamente, o
mergulho no mar, exauriram completamente suas forças. Seu sono desta vez
parecia muito tranquilo, ao contrário da sesta que tirara durante a tarde. E
logo, a própria Susan não resistiu e adormeceu também ao seu lado.
Como
na noite anterior, não se passou muito tempo até que a brisa invadiu o quarto,
carregada do sobrenatural odor de jasmim. Em seu sonho, Susan teve a súbita
lembrança das jardineiras que tinha visto nas janelas da mansão submersa,
carregadas com belos e vistosos jasmins. Mas ao mesmo tempo ela estava
consciente de estarem muito longe da mansão submersa naquele momento.
Então
ela sentiu as cobertas se moverem, e no minuto seguinte, estava novamente
aconchegada ao peito do mascarado. Embora não conseguisse abrir os olhos, a
presença dele era tão forte que ela quase podia vê-lo. A voz suave e aveludada
sussurrava em seu ouvido que ela seria sua para sempre, e mais uma vez ela não
foi capaz de contestá-lo.
Com
um sussurro melodioso ele embalou o sono de Susan, fazendo-a mergulhar num
absoluto e poderoso torpor. Talvez só tenha durado um minuto; ou talvez ela
tenha realmente dormido por horas, até ser novamente despertada pelo mascarado,
mas desta vez, além de sua presença, eram seus beijos que a tiravam dos braços
de Morfeu.
Susan
não conseguiu abrir os olhos, mas sentia os braços do mascarado ao seu redor, e
seus beijos eram tão inebriantes quanto os do pesadelo na noite anterior. Ao
seu lado, Anne ressonava baixinho, e Susan mal estava consciente da presença dela,
na verdade. Estava a uma só vez assustada e apaixonada. Se a presença deste
homem era real, então ela estava completamente perdida agora, pois era
inadmissível para qualquer moça solteira se permitir ser tocada tão intimamente
por um homem.
Despertou
subitamente algum tempo depois. Anne ainda dormia ao seu lado; a luz da manhã
brilhava através da janela aberta; e real ou não, o mascarado havia
desaparecido.
Susan
se levantou com cuidado para não acordar a irmã, vestiu-se e saiu do quarto. A
Sra. Garber estava preparando a mesa para o café da manhã, e como Susan
previra, nem sequer suspeitava que elas haviam saído de casa durante a noite.
–
Anne ainda está dormindo? – perguntou a governanta, depois de cumprimentá-la.
–
Sim – respondeu Susan. – Acho melhor deixá-la descansar mais um pouco.
–
É claro, querida.
Susan
se aproximou da janela da sala de estar, e espiou a praia. O mar estava calmo,
e o sol da manhã refletia um brilho dourado sobre o lençol de água no
horizonte. Ela imaginou, por um instante, como seria o interior da mansão
submersa iluminado pelo sol. Obviamente não se atreveria a mergulhar outra vez
para descobrir, mas a ideia de conferir os rostos daquela família tão bonita
nos retratos à luz do dia era verdadeiramente tentadora.
Repreendeu-se
imediatamente por estes pensamentos. Sabia que devia esquecer suas excursões
nas profundezas do mar de Salem, pelo seu bem, e principalmente pelo bem de
Anne, cuja sanidade já começara a ser questionada, mas alguma coisa na mansão a
fascinava, e fazia seu pensamento ir e voltar do quarto suntuoso que parecia
ainda ser ocupado por alguém, ao estranho símbolo gravado nas portas.
Uma
nau mercante estava ancorada no cais havia duas noites, e não muito distante
dali, quase desaparecendo de vista, Susan via o telhado da casa alfandegária,
brilhando sob o sol. Seu coração se apertou por lembrar o que dissera Roger
Bellingham ao acompanhá-la até sua casa na tarde anterior. E embora fosse uma
preocupação menor – ou ao menos deveria ser –, lhe doía pensar que talvez não
fosse vê-lo novamente.
Susan
deu um suspiro, e percebeu a presença da Sra. Garber perto dela. A expressão da
governanta era aflita, e ela parecia exausta. Susan não havia se dado conta
antes, mas ela podia ter envelhecido dez anos nas últimas semanas, tamanho seu
abatimento. A conversa que escutara entre ela e o Reverendo ainda martelava em
sua mente, acompanhada de todos os seus temores.
–
A senhora e o Reverendo ainda estão decididos sobre... aquele assunto? – Susan não se sentiu capaz de pronunciar as
palavras trancar Anne. Por um lado,
porque tinha medo de que Anne descesse sorrateiramente e escutasse; e por
outro, porque ainda tinha esperança de que não fosse necessário chegar a esse
extremo.
Mas
a governanta aquiesceu, desanimada.
–
O Dr. Prynne virá mais tarde para vê-la, e então ele fará a avaliação final.
Susan
se virou novamente para a janela, para que a governanta não visse as lágrimas
que escorriam em seu rosto.
–
Talvez seja o melhor para ela – sentenciou a Sra. Garber, com a voz embargada.
Com
estas palavras ecoando na mente, Susan ficou quieta e apreensiva quase até ao
fim da manhã, quando, para distrair a si mesma e à irmã, decidiu repassar com
ela as lições de francês – cujas aulas haviam abandonado desde o início de
março, quando Anne começou a apresentar os sintomas da peste. Isso as manteve
ocupadas por algum tempo, mas então se tornou inevitável conversarem sobre
outros assuntos. E na verdade, só havia um assunto sobre o qual ela gostaria –
e talvez precisasse – falar com Anne. Um assunto que já começava a perturbá-la
também.
–
Como acha que aquela mansão foi parar lá embaixo? – perguntou de repente, após
longo silêncio, como se já estivessem conversando a respeito.
Anne
olhou para o mar, seguindo o olhar da irmã através da janela, e deu de ombros.
–
Não foi construída lá embaixo... – insistiu Susan, percebendo que a irmã não
responderia.
–
Aconteceram tantas coisas estranhas nesta cidade... – comentou Anne, como se
isso explicasse tudo.
Susan
mordeu o lábio. Durante o silêncio naquela manhã, remoendo todos os
acontecimentos do dia anterior – desde a visita ao cemitério, até o segundo
mergulho do penhasco –, ela havia se lembrado de algo que poderia ajudá-las a
desvendar este mistério.
–
Lembra quando aquela moça, Lizbet Sofer desapareceu? – indagou Susan à irmã.
Anne
a encarou, confusa.
–
A filha da louca?
Susan
assentiu.
–
Faz muitos anos...
–
A mãe dela disse que a alma de Lizbet não encontraria descanso na velha casa do
mar – lembrou Susan.
Anne
sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Levou quase um minuto, mas as palavras
da irmã fizeram sentido.
–
Lizbet se matou! – disse Anne, reproduzindo as palavras ditas por seu pai na
época do funeral da garota de dezessete anos, no qual seu corpo não estava
presente, pois, segundo também dissera seu pai, jamais fora encontrado.
Isto
havia sido dito por seu pai às escondidas, numa conversa sussurrada com a mãe
delas, quando retornaram do funeral de Lizbet. Todavia o pai da morta, que
também cometeu suicídio poucos meses depois, desgostoso com sua tragédia
familiar – a morte da filha e os surtos delirantes da esposa –, afirmara que
Lizbet fora outra vítima da peste. Mas a esta altura, a explicação significava
pouco ou nada para Susan; sobretudo depois do que ela viu nas últimas duas
noites.
–
Não importa como ela morreu – disse Susan, evitando o assunto. – Não é esse o
ponto. Existe uma história sobre aquela mansão. Você viu os retratos nas
paredes; alguma família morou lá por gerações...
–
Os Griplen – murmurou Anne.
–
Como disse? – conferiu Susan.
–
Os Griplen... – Anne caminhou até a estante no fundo da biblioteca, e retirou
um livro de História.
Susan
observava, em silêncio, enquanto a irmã o folheava rapidamente, até encontrar
uma página que em algum momento já esteve marcada, pois possuía um vinco
amassado no papel amarelado.
–
Eles vieram da Inglaterra, junto com os primeiros colonos – explicou Anne,
apontando o nome deles no livro, relacionado ao lado de outras famílias
notórias da época –, e construíram aqui uma das primeiras fazendas de tabaco.
Mas eles não moraram aqui por gerações, na verdade. Os retratos devem ter sido
trazidos da Inglaterra, porque, aqui não conta exatamente o que aconteceu, mas
parece que a casa onde eles moravam foi destruída durante uma tempestade ou
algo assim, ainda nas primeiras décadas de Salem. Há uma vaga referência sobre
ter sido engolida pelo mar. Pode ser a casa que vimos lá embaixo.
–
Como foi que se lembrou disso? – indagou Susan, espantada. Anne nunca se
destacou por ser muito estudiosa.
–
Já tinha visto essa história no livro – disse Anne, dando de ombros, tentando
parecer casual, mas não foi muito convincente.
Susan
pensou por um instante. O nome Griplen não lhe dizia nada, mas a simples menção
lhe causara um arrepio gelado.
–
Quantas pessoas acha que realmente conhecem esta história? – perguntou Anne.
–
Não importa, pois não podemos simplesmente começar a fazer perguntas por aí –
disse Susan, dando um suspiro desanimado. – Se o destino dessa família não
consta nos nossos livros de História, e as pessoas não comentam um fato
possivelmente impactante da história desta cidade, deve existir um motivo. Se
nos mostrarmos interessadas...
–
Não há como alguém saber que estivemos lá! – interrompeu Anne.
–
Vão pensar que estamos loucas! – ressaltou Susan. – Como a Sra. Sofer.
Anne
se calou por um instante. Susan deu um suspiro frustrado, e voltou a se postar
diante da janela.
–
Mas deve haver algum outro modo de descobrirmos como aquela mansão foi parar lá
embaixo – murmurou. – Quem sabe se consultarmos outros livros de História...
–
Talvez o Reverendo Bichop saiba de alguma coisa – sugeriu Anne. – Ele parece
saber de tudo o que já aconteceu nesta cidade...
Susan
fitou o mar na direção do cais. Anne poderia ter razão. Bichop estava
escondendo coisas delas havia muito tempo. Era chegado o momento de romper o
cristal de proteção que ele e a governanta construíram ao redor das duas, e
lhes fornecer algumas respostas.
–
Acho que nós deveríamos ir até a igreja agradecer o milagre de você estar
curada – sugeriu Susan.
Anne
olhou para ela, confusa.
–
Eu nunca estive doente! – corrigiu. – Nós
duas fomos atingidas por alguma mágica existente naquelas águas...
–
Eu sei... – disse Susan. – Mas as outras pessoas não sabem.
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