A
lua cheia ascendia no céu quando o barco de Robert ancorou na ilha Griplen.
Como para cumprir o que ele havia dito à Lucy, não se via uma única estrela no
céu naquela noite. Mas a lua estava manchada de sangue, o que somado ao corvo
que caiu morto aos seus pés, só podia significar que algo terrível estava a
caminho.
Levado
pelo instinto, Robert deu a volta por trás da mansão, e se esgueirou
silenciosamente até a porta do galpão. As janelas daquela construção ficavam
altas demais para que qualquer pessoa pudesse espiar através delas, mas
deixavam escapar uma luz baixa e fraca que certamente vinha das velas acesas.
Deduzindo que o pai ainda podia estar lá dentro, Robert caminhou até a porta, e
muito calmamente, abriu uma fresta para espiar lá dentro, cuidando não fazer
nenhum ruído.
Como
havia percebido antes mesmo de se aproximar, as velas simetricamente espalhadas
pelo galpão estavam acesas. Havia um círculo de cal desenhado bem no meio do
salão, e dentro dele, desenhados com terra, os vinte e quatro símbolos rúnicos:
uma das últimas conexões com seus ancestrais. Acompanhando o contorno do
círculo, também pelo lado de dentro, jaziam doze carcaças sanguinolentas de
doze corvos mortos. O corvo, em sua comunidade mística era reconhecido como o
espectro da morte, um arauto que vinha à sua frente para escolher a alma a ser
levada por ela. Quando um corvo era usado em um ritual, a intenção não podia
ser outra, senão invocar a morte.
Robert
estava horrorizado. George Griplen ainda estava no centro do círculo, vestido
com o manto negro. Tinha numa das mãos uma agulha longa, embebida em sangue – o
sangue dos doze corvos mortos –, e na outra, uma boneca de vodu, vestida com o
lenço de cetim branco de Lucy; um lenço que ele não podia ter surrupiado de
outro lugar, senão do quarto de Robert.
George,
sem perceber a presença do filho na porta, começou a murmurar palavras de
maldição numa língua que Robert fora obrigado a aprender desde menino – a
língua de seus ancestrais da Velha Ordem; uma língua que para o resto do mundo
está morta há séculos, mas que sua família e os poucos remanescentes de sua
comunidade mantinham viva somente para a prática de seus rituais.
Robert
ouviu muito superficialmente as palavras que seu pai murmurava, mas o bastante
para compreender o que ele fazia. Infelizmente, não conseguiu invadir o galpão
a tempo de impedir que ele atravessasse o ventre da boneca com a agulha
amaldiçoada.
George
ainda murmurava a maldição quando Robert empurrou a porta, correu para dentro
do salão e lhe arrancou das mãos a boneca mutilada, para retirar a agulha de
seu ventre. O sangue pingava no chão, na beira do círculo, e Robert começou a
murmurar um contrafeitiço, para tentar anular a maldição de seu pai; no
entanto, antes que terminasse, as velas ao redor do altar profano foram
apagadas por um sopro espectral.
–
Está feito! – declarou George Griplen, com um sorriso sádico e satisfeito,
enquanto despia o capuz do manto negro. – Aquela infeliz nunca conceberá um
filho seu, ou de qualquer outro. Ventre seco! Esta será a punição por sua
teimosia, Robert.
O
coração de Robert encheu-se de ódio naquele instante, a ponto de o veneno lhe
escapar pelos poros como suor. Seus olhos se cobriram de sangue, conforme
permitia que o ódio crescesse em seu interior, e corresse como fogo por suas
veias.
–
E a sua punição será arder no inferno! – amaldiçoou Robert, antes de virar as
costas e sair pisando duro do templo pagão.
Por
todo o caminho enquanto contornava a casa, dirigindo-se de volta ao pequeno
cais na margem da ilha, Robert murmurava na língua de seus ancestrais. O fogo
em suas veias agora superaquecia o ar ao seu redor, e deixava uma trilha de
areia queimada demarcando seus passos. Agnes Griplen correu para a soleira ao
sentir o ar pesado e sufocante que agora envolvia a mansão, e viu, horrorizada,
a intensidade do sangue que inflamava os olhos de seu filho, enquanto ele
invocava, enfurecidamente, uma maldição para vingar-se do pai.
–
Robert, pare! – gritou Agnes, tentando detê-lo; mas foi inútil.
A
voz de Robert se elevava gradualmente, acompanhada pelos uivos sombrios do
vento que começava a agitar as árvores ao redor da ilha. Uma nuvem negra
começou a se formar rapidamente no céu, encobrindo a lua, que naquele momento
estava completamente velada de sangue. Os trovões logo se uniram ao vento e à
voz escura de Robert, orquestrando uma melodia infernal.
Agnes
Griplen continuava gritando, da soleira, tentando conseguir a atenção do filho.
O ar pesado e a força do vento não permitiam que ela se deslocasse para muito
além da porta, e Robert obviamente não a ouvia. O cachorro também latia
desenfreadamente ao lado dela na soleira, como se suplicasse, assim como sua
dona, que Robert parasse o que estava fazendo.
Ele,
porém, prosseguiu invocando o caos, canalizando toda a sua fúria, indignação,
asco e desonra contra seu genitor, enquanto andava com passos firmes, decididos
e mortais por todo o caminho.
Subitamente,
ele parou, muitos metros à frente das portas da mansão, e num impulso de ódio
final, cravou na areia a agulha embebida no sangue mortal dos doze corvos que o
pai utilizara para esterilizar sua futura esposa, sem se dar conta de que
aquele era precisamente o coração da ilha.
Então
ele retornou ao barco. Guardou o lenço de Lucy em seu bolso e jogou a boneca de
vodu de qualquer jeito sobre a coberta, fazendo-a desaparecer de sua vista. Em
seguida, remou vigorosamente para o continente, deixando para trás a tempestade
rugindo em torno da casa de sua família, sem ao menos pensar nas consequências
de seu ato.
Com
sangue ainda nos olhos, e uma fúria mortal no coração, Robert atravessou as
ruas de Salem sem olhar para qualquer pessoa no caminho, até chegar à fazenda
dos Croft. Tendo a escuridão como esconderijo, ele subiu pelas trepadeiras, até
a janela de Lucy. Ela já estava deitada, aninhada num cobertor de zibelina
prateada. Ver a amada ali, tão serena, fez a fúria no coração de Robert ser
imediatamente acalentada.
A
exemplo dos amantes venezianos, que visavam proteger sua identidade em noites
promíscuas, ele tinha coberto o rosto com uma máscara antes de escalar a janela
de sua noiva. Não era a primeira vez que Robert aparecia para ela usando aquele
acessório. Também não era a primeira vez que entrava por sua janela no meio da
noite. Provavelmente era um risco desnecessário, sobretudo à véspera de seu
casamento, que se descoberto poderia comprometer seriamente a honra de sua
amada, mas naquela noite principalmente, Robert não conseguia pensar em mais
nada. Apenas precisava estar com Lucy; sem se importar com as consequências.
Lucy
ergueu a cabeça, e suspirou sonolenta, ao ouvir o ruído do noivo entrando por
sua janela.
–
O que está fazendo aqui? – perguntou ela, num sussurro carinhoso, quando ele se
aproximava da cama.
Robert
apenas sibilou para que ela se calasse, e sussurrou em seu ouvido:
–
Eu te amo!
O
sopro de seu hálito quente fez a pele de Lucy se arrepiar. Ele despiu a
máscara, e então ela permitiu que ele a tomasse em seus braços, acomodando-se
com ela embaixo das cobertas.
–
Se alguém perceber que você está aqui, estou perdida – sibilou Lucy.
Mas
Robert não parecia escutá-la. Estendendo seu corpo sobre o dela, sibilou
novamente para que se calasse, e encontrou os lábios dela com os seus.
–
Você é minha para sempre – sussurrou ele em seu ouvido, após um minuto, com a
voz suave e aveludada. – Não importa o que aconteça...
E
tornou a beijá-la, mantendo-a ternamente em seus braços. Agora a fúria que o
impulsionara a invocar o caos sobre a ilha de sua família se convertera em um
desejo irresistível e indomável, tão poderoso e avassalador quanto o sentimento
anterior. Lucy o recebeu sem hesitar, o desejo dela ardendo quase tão
intensamente quanto o dele. Talvez porque naquele momento ele a colocava sob
seu feitiço, manipulando-a para que não resistisse às suas carícias; ou talvez
o encanto viesse justamente do amor dela, esse amor que ela lhe entregava
voluntariamente, e que transformava todo ódio que havia nele em ternura e
paixão.
Naturalmente,
ela não sabia quanta fúria ele havia invocado naquela noite, antes de entrar
sorrateiramente em seu quarto, e amá-la tão apaixonadamente. Mas estar nos
braços dele fazia com que Lucy ansiasse mais desesperadamente pelo dia
seguinte, quando esse amor deixaria de ser uma transgressão moral, que
precisava ser desfrutado furtivamente na calada da noite, e seria finalmente
sacramentado e abençoado para sempre; o momento sublime em que ele a tomaria em
seus braços como sua esposa.
Robert
a manteve aninhada em seu peito por um longo tempo, cantarolando suavemente em
seu ouvido, até que ela voltou a adormecer. Então ele se arrastou para fora da
cama, sem perturbá-la. Um estranho pressentimento lhe assombrava, misturado à
lembrança inconveniente do ritual que o pai realizara naquela noite. Como por
instinto, Robert puxou um canivete do bolso, e riscou um símbolo rúnico na
porta do quarto de Lucy, enquanto murmurava muito baixinho um encantamento para
mantê-la protegida.
E
então, como um amante satisfeito, tornou a cobrir o rosto com a máscara
veneziana, e desceu pela janela do quarto.
Como
a lua permanecia encoberta pelas nuvens, ele não era mais do que um fantasma
vagando pela noite escura de Salem, ao afastar-se da casa de sua noiva e
retornar ao cais.
A
tempestade rugia ainda mais furiosamente ao redor da ilha quando ele entrou
pelas portas da mansão Griplen, pouco antes da meia-noite. Teve o impulso de
gravar o mesmo símbolo na porta da frente, e também na de seu quarto, e do
quarto de Emily. Talvez ele estivesse ficando paranoico, tentando proteger a si
mesmo e às pessoas que amava do homem que lhe deu a vida, mas ele sabia que a
obstinação de George Griplen era mortal. E como um inconsequente, Robert usara
a mesma morte que o pai invocara contra ele e sua noiva para feri-lo, onde quer
que lhe doesse, sem ao menos se perguntar aonde isso os levaria.
A
maldição que ele invocara, usando os restos do ritual de seu pai no sangue dos
corvos mortos, se consumaria naquela mesma noite, para libertá-lo, ou para
arruiná-lo.
A
runa gravada nas portas impediria que a morte entrasse. Mas seu destino estava
muito além disso...
À
meia-noite a tempestade começou a cair; à meia noite a ilha Griplen começou a
morrer.
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