Pela
primeira vez em muitos dias, Anne parecia serena ao repousar sobre a cama.
Susan se deitou ao seu lado, após trocarem as camisolas molhadas, não querendo
deixar a irmã sozinha, e quando despertou, todas as lembranças da noite anterior
dançaram em sua mente, deixando-a ligeiramente tonta. Anne ainda dormia
profundamente, e Susan achou melhor não perturbá-la.
A
janela do quarto de Anne amanheceu aberta novamente, embora a própria Susan a
tivesse trancado quando retornaram da praia.
Aquela
foi uma noite estranha. Adormecera depressa ao lado da irmã, e não muito tempo
depois, sentiu o sopro do vento em seu rosto, e um forte e inexplicável perfume
de jasmim preencher o quarto. Queria saber de onde ele vinha, o que era, e
principalmente, por onde ele entrara, porém, não teve forças para abrir os
olhos. Era como se um torpor tivesse dominado sua mente, tornando-a incapaz de
despertar, apesar de sua vontade.
Talvez
tenha sido apenas um sonho, mas Susan teve a sensação nítida de que alguém levantara
as cobertas e se deitara silenciosamente entre as duas irmãs no meio da noite.
Tremia só de pensar na possibilidade. Tinha que ser um sonho, para o seu
próprio bem e de sua reputação; pois de outro modo, ela teria que aceitar a
hipótese perturbadora de ter dormido a noite toda aconchegada com a irmã no
peito de um homem.
Sentiu
um calafrio mortal, e espantou rapidamente o pensamento. “Foi só um sonho”, ela disse a si mesma, tentando se convencer a
não pensar mais nisso. Mas a verdade é que ela não estava certa sequer de ter
realmente adormecido naquela noite.
Sabia
que havia tido dois ou três sonhos, dos quais despertara com o coração
acelerado em diferentes momentos da madrugada, sem jamais conseguir abrir os
olhos. E todas as vezes que isso acontecera, o perfume de jasmim invadira suas
narinas e a embriagara de maneira a uma só vez perturbadora e reconfortante. O
perfume a fazia sentir que adormecera na relva do paraíso; mas os sonhos que
tivera naquela noite, e principalmente o peito que ela sentia subir e descer
tranquilamente sob seu braço, e o braço que a mantinha aninhada tão
protetoramente, a faziam sentir-se imunda.
Que
espécie de pesadelo era aquele? Tão doce quanto apavorante. Ela se perguntava
se seria possível que aquela presença fosse real. Queria crer que não; mas
então ela teria que supor que as sereias que ela vira nadando nas águas de
Salem também não eram reais; e a mansão onde ela entrara com a irmã, pouco
antes de Anne começar a se afogar, também não poderia ser real. Era deveras a
conclusão mais sensata a se chegar. Mas então ela teria que admitir que também
estava alucinando, como vinha acontecendo com a irmã desde o início de março.
Talvez ambas agora fossem escravas da mesma loucura.
E
os sonhos que tivera foram igualmente perturbadores.
O
primeiro deles se parecia com os sonhos que Anne mencionara no princípio do
mês: Susan se viu exatamente onde estava, dormindo na cama da irmã. Anne estava
ao seu lado, respirando muito superficialmente, mergulhada no mais profundo dos
sonos. Uma brisa morna entrava pela janela aberta, carregando um suave odor de
jasmim para dentro do quarto. Foi então que ele apareceu. Era alto e charmoso;
seu rosto estava coberto por uma elegante máscara veneziana, mas através dela,
Susan podia ver nitidamente os brilhantes olhos azuis.
Ele
se aproximou da cama, e suavemente puxou as cobertas para se deitar entre elas.
Seu corpo era grande e quente, e ele estava vestindo um fraque muito elegante.
Susan
não se recordava do gesto, mas percebeu, quando ele envolveu seu corpo para
aninhá-la em seu peito, que ele havia despido o fraque. A camisa branca estava
entreaberta, e os dedos dela repousaram sobre uma sutil capa de pelos.
Um
gemido escapara pelos lábios de Susan ao se dar conta do desatino. Sonhando ou
não, era muito imprudente permitir-se aninhar no peito de um homem que não era
seu marido. E o pior é que ela nem sabia como era o rosto dele.
Seus
dedos esbarraram ligeiramente na mão de Anne, e então Susan compreendeu que
ambas estavam aconchegadas àquele homem estranho.
A
mão dele riscava círculos em suas costas, e uma voz suave e aveludada
cantarolava baixinho para embalar o sono de ambas.
O
torpor lentamente a envolvia outra vez; tão suave e ao mesmo tempo tão
poderoso, que ela sequer reagiu quando os lábios daquele estranho roçaram os
seus, no que pareceu um carinhoso e breve beijo de boa noite.
Despertara
daquele sonho algum tempo depois, ouvindo a mesma voz suave e aveludada
sussurrando seu nome ao ouvido. Susan sentiu um arrepio. Agora ela não tinha
mais certeza da presença de Anne. Sentia a mão do estranho em suas costas,
perdida entre seus cabelos, e os lábios dele deixando uma trilha de beijos da
mandíbula até o seu queixo. Ela ainda estava aninhada no peito dele, como no
princípio, e podia senti-lo do alto de sua cabeça até os dedos dos pés. Não se
lembrava de alguma vez ter estado tão perto de um homem antes; nem mesmo do
pai.
O
estranho a puxou para ainda mais perto, e beijou delicadamente sua testa.
–
Você é minha... – ele sussurrou, muito suavemente, completando com seu nome.
Mas
ela não estava certa de ter ouvido direito. Talvez ele não tivesse realmente
dito Susan. Poderia ter dito Lisa... ou Lucy... Ela não compreendera, mas sabia
que falava com ela; e naquele momento, envolvida no calor de seus braços, ele
podia realmente tê-la chamado de qualquer coisa; não importava. Havia algo
verdadeiro em suas palavras: ela era dele; não importava quem ele fosse, no
fundo de sua mente e de sua alma ela não tinha dúvida de que lhe pertencia.
Acordou
ofegante, afogando-se com a própria respiração, misturada àquele misterioso e
inebriante odor de jasmim. Seus olhos estavam pesadíssimos. Ao seu lado alguém
respirava muito tranquilamente; Anne, ela concluiu, embora uma parte dela ainda
se sentisse mergulhada naquele sonho, abraçando o peito do estranho, sem
conseguir organizar o pensamento o suficiente para questionar-se sobre quem era
ele.
Tão
subitamente quanto havia despertado desta vez, adormeceu novamente, sem
conseguir abrir os olhos nem mesmo por um instante. Através das pálpebras
veladas, percebia que a escuridão havia diminuído. Se conseguisse abrir os
olhos, uma fresta que fosse, e olhasse na direção da janela, provavelmente
veria o céu cinza pálido despindo-se da escuridão.
O
último sonho daquela madrugada a deixara tão perturbada que se recusara a
pensar nele. Mas quando despertou desta vez não encontrou dificuldade em abrir
os olhos. Anne ainda dormia tranquilamente ao seu lado, e o estranho, quem quer
que fosse, real ou não, havia desaparecido.
A
janela estava aberta, e as cortinas esvoaçavam com a brisa da manhã. Susan se
levantou cuidadosamente, sem perturbar o sono de Anne, e tornou a fechar a
janela. O cheiro de jasmim estava impregnado no quarto, e por um minuto ela
devaneou sobre os sonhos daquela noite, debatendo consigo mesma se poderia ter
sido real.
Decidindo,
por fim, que era loucura pensar nisso, vestiu o robe, e saiu silenciosamente do
quarto.
Ao
cruzar o corredor para chegar ao seu próprio quarto, Susan ouviu um murmúrio de
vozes vindo de algum lugar no andar de baixo, e percebendo que era o Reverendo
Bichop, seu tutor, quem conversava com a Sra. Garber, desceu silenciosamente as
escadas, para ouvir o que diziam.
–
... não terá mais volta. – As palavras soltas do Reverendo chegaram aos ouvidos
de Susan, vindo da biblioteca. – Temos que agir enquanto há tempo.
–
Estamos falando de uma criança! – protestou a Sra. Garber. – Ela não tem nem
dezessete anos, não podem tratá-la como louca...
Susan
parou antes de chegar à porta entreaberta, e ficou escondida, apenas escutando.
–
Ninguém disse que ela está, Sra. Garber – garantiu Bichop. – É apenas uma
medida preventiva. Ela ficará só alguns dias... dois, três, no máximo. Espere
passar esse maldito dia, e então, talvez, tudo esteja terminado, e ela fique
bem novamente.
–
Eu compreendo o que quer fazer, Reverendo, mas uma coisa dessas pode
comprometer a reputação de Anne para sempre.
–
Receio que não haja outra solução, no entanto.
A
Sra. Garber parecia estar chorando.
–
O Dr. Prynne está de acordo? – indagou a governanta, com a voz embargada.
–
Sim – disse Bichop. – Ele também pensa que a melhor solução é trancá-la por
alguns dias, até que o tormento passe.
O
coração de Susan congelou no peito. Apenas a ideia de ver sua irmã trancada no
sanatório a enfurecia dolorosamente.
–
Se acredita que será suficiente... – considerou a Sra. Garber, entre soluços. –
E se não há outra saída...
–
Temo que seja a única coisa que podemos fazer – aquiesceu o Reverendo. – Isto,
e rezar...
Era
demais. Susan não podia permitir que fizessem uma coisa dessas à sua irmãzinha.
–
Vocês não vão trancá-la no sanatório! – bradou Susan, irrompendo furiosamente
pela porta da biblioteca.
–
Por Deus, Susan! – interveio a Sra. Garber, correndo para ela, enquanto o
Reverendo se virava, escondendo o rosto entre as mãos. – Não está vestida!
Susan
puxou as extremidades do robe para cobrir a camisola, desvencilhando-se da
governanta, e indo direto ao Reverendo.
–
Não importa o que aquele médico lunático diga – prosseguiu Susan, sem deixar a
raiva esfriar. – Anne não está louca! Eu mesma posso garantir isso...
Embora,
na realidade, ela não pudesse afirmar com certeza nem sobre si mesma.
–
Reverendo... – suplicou Susan, lutando com ele, enquanto ele insistia em se
virar. – Se trancá-la, as pessoas vão apontá-la na rua, como fizeram com a Sra.
Sofer. Não podem fazer isso com ela...
–
Isso não está em discussão, Susan! – disse Bichop, virando o rosto para longe
dela.
A
Sra. Garber parecia desesperada para tirá-la da biblioteca, mas Susan se
livrava de suas mãos, sem se importar com seus trajes, com os pudores, nem com
nada.
–
Vai destruir a vida dela... – argumentou Susan, tomando o braço de Bichop com
veemência. – Não me negue o olhar!
Ele
relutou, mas se virou brevemente em sua direção.
–
Trancá-la será o mesmo que condená-la à morte nesta cidade! – insistiu Susan,
suplicante, sustentando o olhar dele com o seu. – À morte ou à solidão. O
senhor sabe como essas pessoas são intolerantes; Anne será rotulada como louca
para sempre.
Bichop
se esforçou para não se virar outra vez, e olhou profundamente nos olhos de
Susan.
–
Acredite quando eu digo que será o melhor para ela – implorou o Reverendo.
–
Como isso poderia ser o melhor...? – começou Susan, intensamente.
Mas
ele a interrompeu:
–
Por favor, não me peça respostas que eu não posso dar. Apenas confie em mim.
Agora,
talvez, a indumentária de Susan tivesse perdido completamente a importância,
quando ele tomou a mão dela ternamente, e acariciou seu rosto com um gesto
paternal.
–
Você sabe que eu não faria nada que prejudicasse qualquer de vocês duas –
assegurou ele. – Então, acredite que se chegarmos a esse extremo, é porque
realmente não há nenhuma outra maneira de salvá-la.
–
Salvá-la de quê? – exigiu saber Susan.
Mas
em vez de responder, o Reverendo apertou um beijo na testa de Susan, e suplicou
com a voz chorosa:
–
Por favor, não me pergunte mais nada.
E
antes que ela pudesse dizer qualquer outra coisa, ele virou as costas e foi
embora apressadamente, como se estivesse fugindo.
Então
Susan se virou para a Sra. Garber, exigindo saber exatamente o que estava
acontecendo, todavia a governanta apenas insistiu que ela fosse se vestir
adequadamente, e implorou que não contasse sobre aquela decisão à Anne.
–
Pede-me que traia minha própria irmã? – sibilou Susan, horrorizada. – Que tipo
de infâmia é essa?
–
Não estou pedindo para traí-la, Susan... – afirmou a Sra. Garber, sem na
verdade se demonstrar ofendida. – Estou pedindo para salvá-la!
–
Salvá-la de quê? – indagou Susan, aflita. – Ou de quem?
–
Dela mesma, minha querida.
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