Durante
todo o dia, Susan não disse uma palavra à Anne. Em parte, porque ainda se
sentia estonteada pelos acontecimentos daquela madrugada: o mergulho do
penhasco, a descoberta das sereias e da mansão submersa, e o quanto de tudo
isso pode ou não ter sido real; e em parte porque temia acabar delatando o
plano sórdido de seu tutor para trancá-la no sanatório.
Sua
consciência clamava para que contasse tudo à Anne, e lhe desse a oportunidade
de lutar, de bater o pé, ou mesmo de fugir antes que o Dr. Prynne viesse com os
enfermeiros para buscá-la. Mas a preocupação que ela viu nos olhos do Reverendo
Bichop naquela manhã calou fundo em sua alma.
Ele
estava devastado. Aquela não era uma decisão impensada, tomada por um tutor
relapso, que só queria se livrar de um aborrecimento. Não. Bichop estava
sofrendo tanto quanto ela própria com a situação de Anne. Quando a olhou nos
olhos naquela manhã, e disse que aquela era a única maneira de salvá-la, ele
estava sendo sincero. E embora não tivesse esclarecido exatamente de quê
precisava salvá-la, Susan vira nos olhos dele que não estava exagerando.
Desde
que os pais morreram, as irmãs Dawson só tinham o Reverendo Bichop e a Sra.
Garber para cuidar delas, e confiavam plenamente nos dois. Como a governanta
que as tinha criado desde pequenas, Bichop amava as duas como se fossem suas
filhas, e Susan não tinha porque duvidar de seus cuidados. E ver o tormento
legítimo nos olhos dele ao anunciar que talvez precisasse tomar medidas severas
para tratar da saúde de Anne, fez com que o coração de Susan se estilhaçasse no
peito.
Ele
tinha lhe negado algumas respostas. Obviamente havia algo grave por trás da
súbita perturbação de Anne; algo que nem ele nem a Sra. Garber pretendiam lhe
contar. E foi somente a certeza de que nenhum dos dois tomaria qualquer atitude
extrema, a menos que fosse estritamente necessário, o que a convenceu a se
calar.
Ainda
assim, Susan tinha a horrível sensação de estar traindo a irmã com seu
silêncio.
Logo
depois do almoço, quando o silêncio naquela casa se tornou insuportável, Susan
decidiu sair para tentar acalmar os nervos. Tinha muito em que pensar, e não
podia conversar com ninguém a respeito. Ao menos, com nenhuma alma viva.
A
Sra. Garber não disse nada ao vê-la saindo; sobretudo depois que ela parou no
jardim para colher algumas flores.
As
ruas de Salem, especialmente nos arredores da praia, eram sempre monotonamente
vazias. De vez em quando, algumas crianças passavam correndo, indo em direção à
praia, mas isso geralmente acontecia mais para o meio da tarde. Àquela hora,
somente uns poucos funcionários do cais circulavam por perto da casa
alfandegária.
Susan
tinha um nó bem preso na garganta, e a única coisa que a impedia de chorar no
meio da rua, era a necessidade de ver o caminho por onde andava.
–
Protejam suas filhas! – grasnava Norma Sofer, a louca, no meio da praça, quando
Susan passou. – O dia está chegando...
Os
cidadãos de Salem já estavam acostumados àquela cena. A Sra. Sofer perdeu sua
filha, Elizabeth, carinhosamente conhecida por todos como Lizbet, havia dez
anos. Ela morreu de madrugada, vítima
da peste que todos os anos ceifa a vida de uma moça em Salem. Tinha apenas
dezessete anos.
Depois
que ela morreu, a mãe descobriu algumas linhas que ela havia escrito no diário
em seus últimos dias, alertando sobre algum perigo que pairava sobre a cidade.
Aparentemente, antes de morrer, Lizbet conseguiu identificar a origem da peste,
e o seu legado foi um aviso de como evitar que se repetisse. No entanto, como
Lizbet tinha estado muito perturbada, ninguém deu crédito ao que ela escreveu,
exceto sua mãe. E desde então, Norma Sofer apregoava religiosamente as últimas
palavras escritas por sua filha, a quem quer que passasse pela praça, desde as
primeiras semanas de março. Este costume, somado ao fato de ter abandonado tudo
– sua casa, sua família, seus outros filhos –, lhe concederam a fama de louca.
Com
o tempo, as pessoas passaram a ignorá-la. Mas isso nunca a detivera. Todos os
anos ela se punha a gritar no meio da praça, ainda que ninguém escutasse. A
teoria da Sra. Garber era que, fazendo isso, Norma Sofer garantia que Lizbet
permanecesse viva de algum jeito.
Susan
lhe deu um olhar de relance, e o nó em sua garganta se tornou sufocante. Se
fosse trancada no sanatório, mesmo que só por uma noite, Anne poderia ter um
destino semelhante ao da Sra. Sofer: ser apontada na rua e chamada de louca
pelo resto da vida.
As
notícias corriam como o vento naquela cidade. Os casos mais graves que o
sanatório municipal atendia eram os pacientes vítimas de tuberculose – a
tísica, como diziam as pessoas mais humildes. Eles ficavam isolados numa
enfermaria separada exclusivamente para pacientes com alto risco de
contaminação. Os casos mais graves eram colocados em quarentena – um eufemismo
singelo para dizer que essas pessoas estavam à espera da morte. Pessoas com
transtornos mentais, consideradas loucas, eram raras em Salem – de fato, a Sra.
Sofer pode ter sido o primeiro caso de desordem mental registrado em anos –, de
modo que os setores a elas destinados no sanatório quase não eram utilizados.
Quando alguém era trancado numa das celas destinadas aos loucos, a notícia logo
se espalhava pela cidade. Foi assim com Norma Sofer; e seria assim com Anne
também, se tivessem realmente que interná-la naquele lugar.
–
A primavera já está aqui! Ele virá também... – prosseguiu a louca, enquanto
Susan se afastava da praça, e caminhava apressadamente em direção ao cemitério.
Não
havia reparado que o céu estava tão cinza até estar caminhando entre os
túmulos. A primavera não possuía nenhum vestígio do rigoroso frio do inverno,
mas o sol apenas aparecia timidamente pela manhã, e desaparecia no início da
tarde, dando lugar a um céu cinzento, que carregava o ar com um mormaço quente
e sufocante.
Na
verdade, aquela era uma situação recorrente em Salem. O frio desaparecia
subitamente no equinócio de primavera, e em seu lugar, uma brisa morna tornava
o clima ligeiramente abafado.
Susan
caminhou pela alameda tão conhecida, até chegar ao túmulo de Joseph e Harriet
Dawson. Seu coração se apertou ainda mais dentro do peito ao se dar conta de
que aquela era a primeira vez que visitava o túmulo dos avós sem a companhia da
irmã.
Há
quatro anos, quando seus pais morreram, Susan e Anne quiseram ter uma lápide
para chorar, mas eles estavam sepultados no oceano. Então, elas improvisaram,
pintando os nomes de seus pais na lápide, com tinta branca, embaixo dos nomes
de seus avós. Cada vez que chovia elas tinham que pintar outra vez. Agora, os
nomes de James e June Dawson estavam ligeiramente desbotados, logo acima do
epitáfio ambíguo gravado na pedra: “pais
amorosos”.
Susan
deixou escapar um soluço, e se ajoelhou para depositar as quatro rosas brancas
habituais sobre a campa. Queria poder deitar a cabeça no colo da mãe agora, e
ouvir que iria ficar tudo bem: que a perturbação de Anne iria passar; que tudo
o que acontecera desde que ela fugira do quarto na noite passada fora apenas um
sonho; e que ela não precisaria ficar nem um só minuto trancada no sanatório.
Uma
brisa morna envolveu o corpo de Susan, como um afago, e ela fechou os olhos
para absorver a sensação. Talvez ela estivesse dramatizando a situação em
demasia, mas somente pensar que algo ruim poderia acontecer a Anne, já lhe
deixava aflita. Elas tinham perdido tudo. Sua família inteira estava morta; só
tinham uma a outra. Susan não podia perdê-la também.
–
Anne não está morrendo! – Susan disse a si mesma, sibilando, furiosa.
Mas
Anne estava perturbada, ansiosa, e – Deus a ajude – sonâmbula. Todos os anos
ela ouvia uma lista completa destes sintomas ecoando aos murmúrios pela cidade.
Aqueles eram os sintomas da peste! E saber disso, deixava Susan ainda mais
desesperada.
De
repente ela sentiu uma mão quente pousar em seu ombro, e deu um pulo assustado,
levantando-se.
–
Perdão, não pretendia assustá-la – disse Roger Bellingham, um funcionário da
casa alfandegária, parado a poucos passos de Susan.
Ela
relaxou um pouco ao vê-lo através da umidade em seus olhos, e levou a mão ao
rosto para enxugar as lágrimas. Bellingham puxou um lenço de seu bolso e o
ofereceu a ela.
–
Obrigada – disse Susan, aceitando o lenço dele. – O que o senhor está fazendo
aqui?
Susan
mordeu o lábio, torcendo para que ele não achasse sua pergunta grosseira.
Apenas não imaginava o que aquele homem fazia tão longe do cais àquela hora do
dia. E no cemitério! Até onde ela sabia, Bellingham não tinha nenhum parente
enterrado lá.
Mas
é claro que ela não sabia muita coisa sobre ele. Nunca o tinha visto na cidade,
até o verão passado, e não fazia ideia de onde ou com quem ele morava. O mais
provável era que ele não tivesse família em Salem.
–
Eu... – ele hesitou. E em vez de responder, perguntou: – A senhorita está bem?
Ela
deu de ombros e lhe devolveu o lenço. Um brilho fugaz encheu os olhos de
Bellingham, enquanto esquadrinhava o rosto dela. Susan se sentiu ruborizar, e
baixou os olhos imediatamente. Desde que o conhecera, Susan tinha uma admiração
apaixonada por Roger Bellingham. É verdade que ela não o conhecia muito bem, e
certamente não saberia explicar a origem daquele sentimento, mas tê-lo ali,
olhando tão diretamente para ela, a deixava desconcertada.
Ele
nunca lhe deu atenção, e na verdade, quase sempre parecia evitá-la. Por
diversas vezes, Susan o flagrou lançando olhares cobiçosos para Anne, e às
vezes, nessas ocasiões, o olhar dele se desviava para ela com igual admiração.
Todavia, o Sr. Bellingham fazia questão de se manter distante de ambas, com uma
postura frustrantemente inatingível.
Bellingham
olhou para a lápide diante da qual ela esteve prostrada, e deu um suspiro
resignado.
–
É sua família? – indagou ele, tornando a olhar para ela.
Susan
aquiesceu.
–
Meus avós. E meus pais, tecnicamente.
Ele
franziu o cenho, e ela se sentiu embaraçada. Os olhos dele eram de um azul
profundo, e penetravam os dela com um magnetismo sedutor.
–
Meus pais morreram num naufrágio – explicou ela, tentando evitar os olhos dele.
– Não estão enterrados aqui, mas...
Não
queria completar. Não sabia sequer porque estava contando aquilo. Mas de
repente sentiu um calafrio. Na noite anterior, quando pularam do penhasco, ela
e Anne estiveram muito perto de ter também o oceano como túmulo.
Ele
assentiu, e fitou a lápide outra vez.
–
Minha família também foi sepultada no mar – disse Bellingham, quase num
murmúrio.
Susan
o olhou com surpresa; e em seguida, com resignação.
–
Isso já faz muito tempo – esclareceu ele.
–
Minha irmã está doente – disse Susan, de repente, sem conseguir se refrear. Queria
desesperadamente que alguém lhe dissesse que ela iria ficar bem; qualquer um
que não fosse o Reverendo ou a Sra. Garber. Se Bellingham lhe dissesse, talvez
ela conseguisse se convencer.
–
Sinto muito – disse ele, olhando novamente para ela. – É grave o que ela tem?
–
Eu não sei. – A voz de Susan falhou no finalzinho, e ela sentiu as lágrimas
retornando aos seus olhos. – Eu temo que sim.
Bellingham
se aproximou alguns passos. Seu olhar queimava, fitando diretamente dentro dos
olhos dela. Por um segundo, ela imaginou que ele estava prestes a envolvê-la em
seus braços, e permitir que chorasse em seu peito. Mas ele não fez.
Claro
que não fez. O que aconteceria se alguém os visse abraçados, sozinhos, no
cemitério? Era um pensamento muito inapropriado.
Ela
arfou involuntariamente, e desviou o olhar do rosto dele. Bellingham, por outro
lado, continuou a fitá-la com a mesma intensidade.
–
Eu preciso ir embora – disse Susan, virando-se, embaraçada, para a alameda por
onde viera.
–
Eu devo acompanhá-la, senhorita Dawson – disse Bellingham, caminhando ao lado
dela. Não era uma oferta, e sim um anúncio, e Susan não sabia o que pensar
sobre isso. Simplesmente não foi capaz de impedi-lo.
Enquanto
caminhavam para fora do cemitério, Susan esperou ansiosamente que ele lhe
oferecesse o braço, mas não fez. Certamente ele estava com pena dela, e, por
cavalheirismo, não quis deixá-la retornar sozinha à sua casa, com os nervos tão
frágeis. Porém, ela não devia esperar mais do que isso.
Se
deu conta, de repente, de que ele não havia respondido sua pergunta inicial: o
que fazia no cemitério àquela hora? Mas ela não achou prudente retornar ao
assunto.
–
A peste vai levar mais uma de suas filhas! – grasnou a louca, enquanto eles
atravessavam a praça, em silêncio. – Protejam-nas!
Um
calafrio percorreu o corpo de Susan, e seu coração se comprimiu ainda mais
dentro do peito. Ela percebeu, de relance, o olhar de Bellingham vaguear para
ela, mas preferiu não dizer nada.
–
Finalmente o frio se foi – comentou Bellingham, casualmente, como se quisesse
distraí-la.
–
Todos os anos são iguais – disse Susan, tentando não soar entediada. – O frio
vai embora no exato instante da chegada da primavera.
–
Parece que o clima desta cidade respeita rigorosamente as estações do ano –
acrescentou ele, sorrindo.
–
É o que parece – aquiesceu Susan.
–
As flores já estão começando a se abrir. – Bellingham apontou um canteiro de
rosas no jardim dos McCain.
–
Sim, é verdade.
Por
alguma razão, Susan não se sentia à vontade para conversar sobre essas
amenidades com ele. Sobretudo agora, que sua cabeça estava uma grande confusão.
–
Isso é bom – prosseguiu ele, ignorando seu desconforto. – Pensei que não teria
a chance de vê-las.
–
O senhor vai viajar? – indagou Susan, sem se conter, e sua voz soou um pouco
mais aflita do que ela gostaria.
–
Sim. Dentro de dois dias eu não estarei mais aqui.
Susan
parou de respirar, e por um momento, pensou que seus joelhos fossem ceder, e
ela fosse ao chão.
–
Mas não é uma mudança permanente, suponho...? – perguntou, lutando para manter
a voz tranquila.
Bellingham
deu de ombros.
–
Talvez... – ele disse, simplesmente.
Mas
então, eles já estavam diante da casa dela, e ele se virou para se despedir.
Susan queria lhe dizer alguma coisa – para ficar, muito provavelmente, mas é
claro que não se atreveria –, no entanto, só o que pôde fazer foi tentar
respirar naturalmente, quando ele tomou sua mão e beijou seus dedos, olhando
profundamente em seus olhos.
–
Espero vê-la outra vez, senhorita Dawson – disse Bellingham, antes de se
afastar e partir.
Susan
ficou ainda um instante na soleira, lutando para respirar. Seus nervos estavam
abatidos por causa da irmã, de modo que todo o seu julgamento poderia estar
comprometido, mas ela teve a impressão de que Bellingham segurara sua mão um
segundo além do necessário, ao beijar seus dedos em despedida.
Livro completo à
venda em e-book e edição física diretamente com a autora, Clube dos Autores, e nas principais livrarias e marketplaces online.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela visita!
E já que chegou até aqui, deixe um comentário ♥
Se tiver um blog, deixe o link para que eu possa retribuir a visita.