[As Noivas de Robert Griplen] Capítulo 4 - Coração Apertado

em sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Durante todo o dia, Susan não disse uma palavra à Anne. Em parte, porque ainda se sentia estonteada pelos acontecimentos daquela madrugada: o mergulho do penhasco, a descoberta das sereias e da mansão submersa, e o quanto de tudo isso pode ou não ter sido real; e em parte porque temia acabar delatando o plano sórdido de seu tutor para trancá-la no sanatório.
Sua consciência clamava para que contasse tudo à Anne, e lhe desse a oportunidade de lutar, de bater o pé, ou mesmo de fugir antes que o Dr. Prynne viesse com os enfermeiros para buscá-la. Mas a preocupação que ela viu nos olhos do Reverendo Bichop naquela manhã calou fundo em sua alma.
Ele estava devastado. Aquela não era uma decisão impensada, tomada por um tutor relapso, que só queria se livrar de um aborrecimento. Não. Bichop estava sofrendo tanto quanto ela própria com a situação de Anne. Quando a olhou nos olhos naquela manhã, e disse que aquela era a única maneira de salvá-la, ele estava sendo sincero. E embora não tivesse esclarecido exatamente de quê precisava salvá-la, Susan vira nos olhos dele que não estava exagerando.
Desde que os pais morreram, as irmãs Dawson só tinham o Reverendo Bichop e a Sra. Garber para cuidar delas, e confiavam plenamente nos dois. Como a governanta que as tinha criado desde pequenas, Bichop amava as duas como se fossem suas filhas, e Susan não tinha porque duvidar de seus cuidados. E ver o tormento legítimo nos olhos dele ao anunciar que talvez precisasse tomar medidas severas para tratar da saúde de Anne, fez com que o coração de Susan se estilhaçasse no peito.
Ele tinha lhe negado algumas respostas. Obviamente havia algo grave por trás da súbita perturbação de Anne; algo que nem ele nem a Sra. Garber pretendiam lhe contar. E foi somente a certeza de que nenhum dos dois tomaria qualquer atitude extrema, a menos que fosse estritamente necessário, o que a convenceu a se calar.
Ainda assim, Susan tinha a horrível sensação de estar traindo a irmã com seu silêncio.
Logo depois do almoço, quando o silêncio naquela casa se tornou insuportável, Susan decidiu sair para tentar acalmar os nervos. Tinha muito em que pensar, e não podia conversar com ninguém a respeito. Ao menos, com nenhuma alma viva.
A Sra. Garber não disse nada ao vê-la saindo; sobretudo depois que ela parou no jardim para colher algumas flores.
As ruas de Salem, especialmente nos arredores da praia, eram sempre monotonamente vazias. De vez em quando, algumas crianças passavam correndo, indo em direção à praia, mas isso geralmente acontecia mais para o meio da tarde. Àquela hora, somente uns poucos funcionários do cais circulavam por perto da casa alfandegária.
Susan tinha um nó bem preso na garganta, e a única coisa que a impedia de chorar no meio da rua, era a necessidade de ver o caminho por onde andava.
– Protejam suas filhas! – grasnava Norma Sofer, a louca, no meio da praça, quando Susan passou. – O dia está chegando...
Os cidadãos de Salem já estavam acostumados àquela cena. A Sra. Sofer perdeu sua filha, Elizabeth, carinhosamente conhecida por todos como Lizbet, havia dez anos. Ela morreu de madrugada, vítima da peste que todos os anos ceifa a vida de uma moça em Salem. Tinha apenas dezessete anos.
Depois que ela morreu, a mãe descobriu algumas linhas que ela havia escrito no diário em seus últimos dias, alertando sobre algum perigo que pairava sobre a cidade. Aparentemente, antes de morrer, Lizbet conseguiu identificar a origem da peste, e o seu legado foi um aviso de como evitar que se repetisse. No entanto, como Lizbet tinha estado muito perturbada, ninguém deu crédito ao que ela escreveu, exceto sua mãe. E desde então, Norma Sofer apregoava religiosamente as últimas palavras escritas por sua filha, a quem quer que passasse pela praça, desde as primeiras semanas de março. Este costume, somado ao fato de ter abandonado tudo – sua casa, sua família, seus outros filhos –, lhe concederam a fama de louca.
Com o tempo, as pessoas passaram a ignorá-la. Mas isso nunca a detivera. Todos os anos ela se punha a gritar no meio da praça, ainda que ninguém escutasse. A teoria da Sra. Garber era que, fazendo isso, Norma Sofer garantia que Lizbet permanecesse viva de algum jeito.
Susan lhe deu um olhar de relance, e o nó em sua garganta se tornou sufocante. Se fosse trancada no sanatório, mesmo que só por uma noite, Anne poderia ter um destino semelhante ao da Sra. Sofer: ser apontada na rua e chamada de louca pelo resto da vida.
As notícias corriam como o vento naquela cidade. Os casos mais graves que o sanatório municipal atendia eram os pacientes vítimas de tuberculose – a tísica, como diziam as pessoas mais humildes. Eles ficavam isolados numa enfermaria separada exclusivamente para pacientes com alto risco de contaminação. Os casos mais graves eram colocados em quarentena – um eufemismo singelo para dizer que essas pessoas estavam à espera da morte. Pessoas com transtornos mentais, consideradas loucas, eram raras em Salem – de fato, a Sra. Sofer pode ter sido o primeiro caso de desordem mental registrado em anos –, de modo que os setores a elas destinados no sanatório quase não eram utilizados. Quando alguém era trancado numa das celas destinadas aos loucos, a notícia logo se espalhava pela cidade. Foi assim com Norma Sofer; e seria assim com Anne também, se tivessem realmente que interná-la naquele lugar.
– A primavera já está aqui! Ele virá também... – prosseguiu a louca, enquanto Susan se afastava da praça, e caminhava apressadamente em direção ao cemitério.
Não havia reparado que o céu estava tão cinza até estar caminhando entre os túmulos. A primavera não possuía nenhum vestígio do rigoroso frio do inverno, mas o sol apenas aparecia timidamente pela manhã, e desaparecia no início da tarde, dando lugar a um céu cinzento, que carregava o ar com um mormaço quente e sufocante.
Na verdade, aquela era uma situação recorrente em Salem. O frio desaparecia subitamente no equinócio de primavera, e em seu lugar, uma brisa morna tornava o clima ligeiramente abafado.
Susan caminhou pela alameda tão conhecida, até chegar ao túmulo de Joseph e Harriet Dawson. Seu coração se apertou ainda mais dentro do peito ao se dar conta de que aquela era a primeira vez que visitava o túmulo dos avós sem a companhia da irmã.
Há quatro anos, quando seus pais morreram, Susan e Anne quiseram ter uma lápide para chorar, mas eles estavam sepultados no oceano. Então, elas improvisaram, pintando os nomes de seus pais na lápide, com tinta branca, embaixo dos nomes de seus avós. Cada vez que chovia elas tinham que pintar outra vez. Agora, os nomes de James e June Dawson estavam ligeiramente desbotados, logo acima do epitáfio ambíguo gravado na pedra: “pais amorosos”.
Susan deixou escapar um soluço, e se ajoelhou para depositar as quatro rosas brancas habituais sobre a campa. Queria poder deitar a cabeça no colo da mãe agora, e ouvir que iria ficar tudo bem: que a perturbação de Anne iria passar; que tudo o que acontecera desde que ela fugira do quarto na noite passada fora apenas um sonho; e que ela não precisaria ficar nem um só minuto trancada no sanatório.
Uma brisa morna envolveu o corpo de Susan, como um afago, e ela fechou os olhos para absorver a sensação. Talvez ela estivesse dramatizando a situação em demasia, mas somente pensar que algo ruim poderia acontecer a Anne, já lhe deixava aflita. Elas tinham perdido tudo. Sua família inteira estava morta; só tinham uma a outra. Susan não podia perdê-la também.
– Anne não está morrendo! – Susan disse a si mesma, sibilando, furiosa.
Mas Anne estava perturbada, ansiosa, e – Deus a ajude – sonâmbula. Todos os anos ela ouvia uma lista completa destes sintomas ecoando aos murmúrios pela cidade. Aqueles eram os sintomas da peste! E saber disso, deixava Susan ainda mais desesperada.
De repente ela sentiu uma mão quente pousar em seu ombro, e deu um pulo assustado, levantando-se.
– Perdão, não pretendia assustá-la – disse Roger Bellingham, um funcionário da casa alfandegária, parado a poucos passos de Susan.
Ela relaxou um pouco ao vê-lo através da umidade em seus olhos, e levou a mão ao rosto para enxugar as lágrimas. Bellingham puxou um lenço de seu bolso e o ofereceu a ela.
– Obrigada – disse Susan, aceitando o lenço dele. – O que o senhor está fazendo aqui?
Susan mordeu o lábio, torcendo para que ele não achasse sua pergunta grosseira. Apenas não imaginava o que aquele homem fazia tão longe do cais àquela hora do dia. E no cemitério! Até onde ela sabia, Bellingham não tinha nenhum parente enterrado lá.
Mas é claro que ela não sabia muita coisa sobre ele. Nunca o tinha visto na cidade, até o verão passado, e não fazia ideia de onde ou com quem ele morava. O mais provável era que ele não tivesse família em Salem.
– Eu... – ele hesitou. E em vez de responder, perguntou: – A senhorita está bem?
Ela deu de ombros e lhe devolveu o lenço. Um brilho fugaz encheu os olhos de Bellingham, enquanto esquadrinhava o rosto dela. Susan se sentiu ruborizar, e baixou os olhos imediatamente. Desde que o conhecera, Susan tinha uma admiração apaixonada por Roger Bellingham. É verdade que ela não o conhecia muito bem, e certamente não saberia explicar a origem daquele sentimento, mas tê-lo ali, olhando tão diretamente para ela, a deixava desconcertada.
Ele nunca lhe deu atenção, e na verdade, quase sempre parecia evitá-la. Por diversas vezes, Susan o flagrou lançando olhares cobiçosos para Anne, e às vezes, nessas ocasiões, o olhar dele se desviava para ela com igual admiração. Todavia, o Sr. Bellingham fazia questão de se manter distante de ambas, com uma postura frustrantemente inatingível.
Bellingham olhou para a lápide diante da qual ela esteve prostrada, e deu um suspiro resignado.
– É sua família? – indagou ele, tornando a olhar para ela.
Susan aquiesceu.
– Meus avós. E meus pais, tecnicamente.
Ele franziu o cenho, e ela se sentiu embaraçada. Os olhos dele eram de um azul profundo, e penetravam os dela com um magnetismo sedutor.
– Meus pais morreram num naufrágio – explicou ela, tentando evitar os olhos dele. – Não estão enterrados aqui, mas...
Não queria completar. Não sabia sequer porque estava contando aquilo. Mas de repente sentiu um calafrio. Na noite anterior, quando pularam do penhasco, ela e Anne estiveram muito perto de ter também o oceano como túmulo.
Ele assentiu, e fitou a lápide outra vez.
– Minha família também foi sepultada no mar – disse Bellingham, quase num murmúrio.
Susan o olhou com surpresa; e em seguida, com resignação.
– Isso já faz muito tempo – esclareceu ele.
– Minha irmã está doente – disse Susan, de repente, sem conseguir se refrear. Queria desesperadamente que alguém lhe dissesse que ela iria ficar bem; qualquer um que não fosse o Reverendo ou a Sra. Garber. Se Bellingham lhe dissesse, talvez ela conseguisse se convencer.
– Sinto muito – disse ele, olhando novamente para ela. – É grave o que ela tem?
– Eu não sei. – A voz de Susan falhou no finalzinho, e ela sentiu as lágrimas retornando aos seus olhos. – Eu temo que sim.
Bellingham se aproximou alguns passos. Seu olhar queimava, fitando diretamente dentro dos olhos dela. Por um segundo, ela imaginou que ele estava prestes a envolvê-la em seus braços, e permitir que chorasse em seu peito. Mas ele não fez.
Claro que não fez. O que aconteceria se alguém os visse abraçados, sozinhos, no cemitério? Era um pensamento muito inapropriado.
Ela arfou involuntariamente, e desviou o olhar do rosto dele. Bellingham, por outro lado, continuou a fitá-la com a mesma intensidade.
– Eu preciso ir embora – disse Susan, virando-se, embaraçada, para a alameda por onde viera.
– Eu devo acompanhá-la, senhorita Dawson – disse Bellingham, caminhando ao lado dela. Não era uma oferta, e sim um anúncio, e Susan não sabia o que pensar sobre isso. Simplesmente não foi capaz de impedi-lo.
Enquanto caminhavam para fora do cemitério, Susan esperou ansiosamente que ele lhe oferecesse o braço, mas não fez. Certamente ele estava com pena dela, e, por cavalheirismo, não quis deixá-la retornar sozinha à sua casa, com os nervos tão frágeis. Porém, ela não devia esperar mais do que isso.
Se deu conta, de repente, de que ele não havia respondido sua pergunta inicial: o que fazia no cemitério àquela hora? Mas ela não achou prudente retornar ao assunto.
– A peste vai levar mais uma de suas filhas! – grasnou a louca, enquanto eles atravessavam a praça, em silêncio. – Protejam-nas!
Um calafrio percorreu o corpo de Susan, e seu coração se comprimiu ainda mais dentro do peito. Ela percebeu, de relance, o olhar de Bellingham vaguear para ela, mas preferiu não dizer nada.
– Finalmente o frio se foi – comentou Bellingham, casualmente, como se quisesse distraí-la.
– Todos os anos são iguais – disse Susan, tentando não soar entediada. – O frio vai embora no exato instante da chegada da primavera.
– Parece que o clima desta cidade respeita rigorosamente as estações do ano – acrescentou ele, sorrindo.
– É o que parece – aquiesceu Susan.
– As flores já estão começando a se abrir. – Bellingham apontou um canteiro de rosas no jardim dos McCain.
– Sim, é verdade.
Por alguma razão, Susan não se sentia à vontade para conversar sobre essas amenidades com ele. Sobretudo agora, que sua cabeça estava uma grande confusão.
– Isso é bom – prosseguiu ele, ignorando seu desconforto. – Pensei que não teria a chance de vê-las.
– O senhor vai viajar? – indagou Susan, sem se conter, e sua voz soou um pouco mais aflita do que ela gostaria.
– Sim. Dentro de dois dias eu não estarei mais aqui.
Susan parou de respirar, e por um momento, pensou que seus joelhos fossem ceder, e ela fosse ao chão.
– Mas não é uma mudança permanente, suponho...? – perguntou, lutando para manter a voz tranquila.
Bellingham deu de ombros.
– Talvez... – ele disse, simplesmente.
Mas então, eles já estavam diante da casa dela, e ele se virou para se despedir. Susan queria lhe dizer alguma coisa – para ficar, muito provavelmente, mas é claro que não se atreveria –, no entanto, só o que pôde fazer foi tentar respirar naturalmente, quando ele tomou sua mão e beijou seus dedos, olhando profundamente em seus olhos.
– Espero vê-la outra vez, senhorita Dawson – disse Bellingham, antes de se afastar e partir.
Susan ficou ainda um instante na soleira, lutando para respirar. Seus nervos estavam abatidos por causa da irmã, de modo que todo o seu julgamento poderia estar comprometido, mas ela teve a impressão de que Bellingham segurara sua mão um segundo além do necessário, ao beijar seus dedos em despedida.

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