[As Noivas de Robert Griplen] Capítulo 3 - Sua Para Sempre

em sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Salem, Massachusetts, 22 de março de 1646
Robert Griplen se apressou pela escada ao ouvir os passos do criado no vestíbulo. Se havia algo desagradável em sua propriedade era a impossibilidade de ouvir uma carruagem se aproximando do jardim, uma vez que as carruagens não tinham como rodar até o seu jardim.
A mansão de sua família havia sido construída numa espécie de ilha particular, a alguns quilômetros da baía de Salem. Isso lhes concedia um jardim imenso, e os poupava de vizinhos inconvenientes.
Sua família chegou à Nova Inglaterra junto com os primeiros colonos, em 1620. A princípio, eles se alojaram numa casa pequena e precária, de tábuas estreitas, que não cumpriam seu papel em protegê-los do frio. Robert ainda se lembrava com horror do primeiro inverno que passaram na região de Plymouth, no extremo oriente do estado. O abrigo precário e o rigoroso inverno foram os principais incentivadores para que George Griplen, pai de Robert, apressasse a construção de uma boa casa para a família. Com a mão de obra dos escravos que trouxera desde a Inglaterra, a mansão ficou pronta antes do inverno seguinte.
A ilha, em si, não era muito grande. Uma ilhota, muito menor, talvez, que a menor ilha do Caribe, mas era inteiramente de sua família. A mansão possuía seis quartos no primeiro andar, cada um deles com tamanho suficiente para acomodar o Rei James com todos os seus privilégios. Três deles, na verdade, não eram ocupados por ninguém, pois seus pais lamentavelmente só tiveram dois filhos; e Emily, a caçula, foi praticamente um milagre: quase morreu e matou sua mãe ao nascer.
A residência dos criados foi construída separada da mansão por vários metros de terreno; e mais ao norte, foi erguido um galpão reservado a práticas religiosas, como o pai de Robert costumava dizer, o que era deveras um comentário jocoso, considerando que os Griplen não eram religiosos. Mas embora não convivessem verdadeiramente com o resto das pessoas da cidade, nem tivessem amigos particularmente próximos, era bom manter uma construção qualquer com uma cruz no telhado em sua propriedade, ainda que fosse somente para afastar os curiosos.
O fato de serem reservados, na verdade, contribuía inversamente para inibir o interesse das pessoas. Sobretudo porque a sociedade da Nova Inglaterra era quase completamente constituída por famílias pouco abastadas que imigraram do velho continente, ao contrário dos Griplen, que desde muito antes da mudança ostentavam imensa fortuna. Era natural que tivessem interesse em integrá-los o mais breve possível à comunidade. Os Griplen, no entanto, não tinham qualquer intenção de estreitar relações com aqueles puritanos.
Mas aquela noite era uma exceção. Os Griplen esperavam convidados para o jantar, mas não era uma recepção social. Os Croft não eram a parte da comunidade que eles preferiam evitar; ao menos, não mais. Dali a dois dias Robert se casaria com a única filha deles, Lucy, de modo que este jantar era o último encontro protocolar entre as famílias dos noivos.
Ouvir os passos do criado no vestíbulo deixara Robert inadvertidamente ansioso. Tinha espiado pela janela enquanto escrevia algo em sua mesa de estudos – uma carta para Lucy, uma das muitas que ele não conseguia entregar por achá-las singelas demais –, e viu quando o barco atravessava o canal em direção à ilha.
Robert ainda descia as escadas quando viu, pelos vitrais que emolduravam a porta da frente, sua noiva e os pais dela atravessando o caminho de pedras que se estendia desde o pequeno cais, e levava diretamente à entrada da mansão.
Os olhos de Robert encheram-se de brilho ao pôr os olhos em sua noiva. Lucy usava um lindo vestido de cashmere verde esmeralda, que exaltava sua pele cor de bronze; a pele ligeiramente enegrecida que o pai dele insistia em hostilizar; e que Robert idolatrava acima de qualquer coisa neste mundo.
Lucy herdara esta pele maravilhosa de seu pai e de sua avó, que quando jovem, era escrava de uma tradicional família produtora de lã em Hampshire, Inglaterra, até ser desposada por um dos filhos do patrão. Foi um escândalo para a sociedade da época, mas a mistura resultou na linda pele que Lucy ostentava, e que enfeitiçara Robert tão logo pôs os olhos nela.
Ele se recusava a compreender a hostilidade de seu pai; a mesma hostilidade demonstrada por diversas outras pessoas da comunidade local. Como se fosse um crime ter a pele um pouco mais escura que a das outras pessoas. Além de ser incompreensível, Robert achava este preconceito repugnante. E no caso de Lucy, especificamente, era absurdo.
Como pode alguém vê-la e não adorá-la? Era o que Robert se perguntava o tempo todo. Se a cor de sua pele constituía algum pecado, era aquele desejo insano que ela evocava, e que ele estava certo de que ainda seria sua perdição.
Como anfitriões, George e Agnes Griplen seguiram corretamente o protocolo, recebendo seus convidados com um cumprimento amistoso e requintado. Robert percebia a sinceridade por parte de sua mãe, mas era notório que seu pai fazia grande esforço para demonstrar cortesia.
O jantar foi servido pontualmente às sete horas. E a princípio tudo discorria muito agradavelmente. George Griplen e Jonathan Croft, pai de Lucy, estabeleceram uma conversa amistosa a respeito de seus negócios. Desde que se mudaram para a Nova Inglaterra, os Croft se dedicavam ao cultivo de soja e milho, e sua fazenda prosperava a olhos vistos. Os Griplen, porém, visando o futuro, dedicaram apenas parte de suas terras ao cultivo de alimentos para consumo próprio, e a maior parte ao cultivo de tabaco, que, de acordo com George, logo se tornaria um excelente produto de exportação para a Europa.
Houve breve discordância entre os chefes de família, quanto à mão de obra em suas fazendas: por sua etnia, Jonathan Croft era abolicionista, e somente utilizava mão de obra remunerada em sua plantação; os Griplen, porém, ainda utilizavam trabalho escravo em sua fazenda, embora George se orgulhasse em dizer que seus escravos não tinham do que se queixar: eram bem alimentados, e jamais sofriam castigos bárbaros, fato que Robert podia atestar pessoalmente.
A conversa sobre os escravos, no entanto, era uma estratégia para que George Griplen manifestasse seu desagrado em relação à escolha do filho.
– Não nego que Lucy seja realmente uma linda moça – esclareceu George, a certa altura do jantar. – Temo, no entanto, que seus filhos sofram certos preconceitos em relação a sua origem.
– Isto certamente será doloroso – aquiesceu Jonathan Croft. – Sobretudo se ele partir do avô.
George parou com a taça de vinho a meio caminho dos lábios.
Perdão? – Seu tom possuía mais desconcerto que ultraje.
– Além do mais, os filhos de Robert e Lucy sofreriam preconceitos mesmo que minha filha tivesse pele de porcelana – prosseguiu Jonathan, sem se intimidar com o tom do anfitrião. – Realmente não imagino o que será de uma criança negra, saída de uma família de misteriosos hábitos religiosos.
– Não há nada de misterioso em nossos hábitos – protestou George, sem nenhum tipo de hesitação. – Como todos nessa comunidade, seguimos a fé que nos foi negada na Inglaterra.
Certamente! – Uma pontada de ironia acentuou a voz de Jonathan. – Apenas optaram por seguir a fé sozinhos, discretamente, em seu templo particular.
– Tem alguma objeção a isso? – indagou George, mais como um desafio, ou uma provocação, do que, de fato, uma pergunta.
– Absolutamente – disse Jonathan.
Mas obviamente não estava sendo sincero. Em todos os encontros, George e Jonathan trocaram insinuações hostis disfarçadas com enganosas cortesias. Nenhum dos dois estava satisfeito com a união entre seus filhos, e provavelmente só haviam concordado para evitar um conflito entre duas das famílias de maior poder na colônia de Salem.
Quando Robert anunciou em casa que pretendia desposar a filha de Jonathan Croft, George tentou de todas as formas dissuadi-lo da decisão, e Robert sabia que ele continuaria tentando até o último instante; talvez até depois do casamento.
Robert, porém, era tão imperioso e obstinado quanto o pai, e Lucy era a coisa mais importante em sua vida. Ainda que tivesse que renunciar ao nome dos Griplen, e acabasse na miséria, ele a desposaria dali a dois dias.
Com um brinde completamente fora de contexto, Robert pôs fim à discussão, e logo depois da sobremesa, Emily, com toda a sua inocência, conduziu Lucy ao jardim para ver o pequeno canteiro de jasmins que ela havia plantado com a ajuda da mãe. Enquanto isso, os cavalheiros se dirigiram à biblioteca para acertarem os últimos detalhes referentes ao dote, mas àquela altura, Robert não estava nem um pouco interessado nestes assuntos.
E tão logo pôde se livrar deles, Robert Griplen saiu para o jardim. Sua mãe estava conversando com Lucy perto das madressilvas, enquanto Emily colocava uma rosa branca no cabelo e agitava o vestido, dançando ao luar. Luke, o cão pastor da família, corria e saltitava ao seu redor, como se a menina o tivesse tirado para dançar.
Agnes Griplen segurava afetuosamente a mão da nora enquanto conversavam. Estava, como de costume, desculpando-se pelas insinuações de George. Lucy assentia timidamente, mas Robert percebia que estava chateada.
Com sua mãe ele não tinha aborrecimentos. Agnes amava Lucy; ressaltava, sempre que tinha oportunidade, como Robert se tornara menos genioso desde que a conhecera. Lucy o amava, e o fazia portar-se com mais tranquilidade e prudência, e isso era tudo o que sua mãe poderia desejar.
Quanto à Lucy, ele deveria se envergonhar por trazer uma alma tão boa ao inferno que sua família representava. Por isso ele não se permitiu esconder nada dela. Tinha desnudado toda a sua vida para Lucy antes mesmo de estarem oficialmente comprometidos. Aceitar Robert em sua vida, implicava na aceitação de tudo o que ele representava: a fortuna de sua família, seu sobrenome, e toda a maldição que ele carregava. Lucy estava consciente disso; e a condescendência dela, muitas vezes, fazia Robert se perguntar se acidentalmente não a colocara sob seu feitiço.
Agora isso não fazia diferença. Robert nunca ambicionou nada tão intensamente quanto o amor de Lucy; e desde que o tinha, ele não seria capaz de abrir mão dela. Não importava a que preço. Para ter o amor de Lucy, valia a pena enfrentar qualquer coisa, inclusive a maldição de seu pai. E sobre isso, seu destino já estava decidido.
Dali a dois dias ele desposaria Lucy. E conforme garantira ao pai, quando este apelara mais uma vez antes do jantar, nada poderia impedir o seu casamento. Ainda que a morte atravessasse seu caminho, Lucy seria sua esposa. Ela seria sua para sempre.

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