Salem,
Massachusetts, 22 de março de 1646
Robert Griplen se apressou pela escada ao ouvir
os passos do criado no vestíbulo. Se havia algo desagradável em sua propriedade
era a impossibilidade de ouvir uma carruagem se aproximando do jardim, uma vez
que as carruagens não tinham como rodar até o seu jardim.
A mansão de sua família havia sido construída
numa espécie de ilha particular, a alguns quilômetros da baía de Salem. Isso
lhes concedia um jardim imenso, e os poupava de vizinhos inconvenientes.
Sua família chegou à Nova Inglaterra junto com
os primeiros colonos, em 1620. A princípio, eles se alojaram numa casa pequena
e precária, de tábuas estreitas, que não cumpriam seu papel em protegê-los do
frio. Robert ainda se lembrava com horror do primeiro inverno que passaram na
região de Plymouth, no extremo oriente do estado. O abrigo precário e o
rigoroso inverno foram os principais incentivadores para que George Griplen,
pai de Robert, apressasse a construção de uma boa casa para a família. Com a
mão de obra dos escravos que trouxera desde a Inglaterra, a mansão ficou pronta
antes do inverno seguinte.
A ilha, em si, não era muito grande. Uma ilhota,
muito menor, talvez, que a menor ilha do Caribe, mas era inteiramente de sua
família. A mansão possuía seis quartos no primeiro andar, cada um deles com
tamanho suficiente para acomodar o Rei James com todos os seus privilégios.
Três deles, na verdade, não eram ocupados por ninguém, pois seus pais
lamentavelmente só tiveram dois filhos; e Emily, a caçula, foi praticamente um
milagre: quase morreu e matou sua mãe ao nascer.
A residência dos criados foi construída separada
da mansão por vários metros de terreno; e mais ao norte, foi erguido um galpão
reservado a práticas religiosas, como
o pai de Robert costumava dizer, o que era deveras um comentário jocoso,
considerando que os Griplen não eram religiosos. Mas embora não convivessem
verdadeiramente com o resto das pessoas da cidade, nem tivessem amigos
particularmente próximos, era bom manter uma construção qualquer com uma cruz
no telhado em sua propriedade, ainda que fosse somente para afastar os
curiosos.
O fato de serem reservados, na verdade,
contribuía inversamente para inibir o interesse das pessoas. Sobretudo porque a
sociedade da Nova Inglaterra era quase completamente constituída por famílias
pouco abastadas que imigraram do velho continente, ao contrário dos Griplen,
que desde muito antes da mudança ostentavam imensa fortuna. Era natural que
tivessem interesse em integrá-los o mais breve possível à comunidade. Os
Griplen, no entanto, não tinham qualquer intenção de estreitar relações com
aqueles puritanos.
Mas aquela noite era uma exceção. Os Griplen
esperavam convidados para o jantar, mas não era uma recepção social. Os Croft
não eram a parte da comunidade que eles preferiam evitar; ao menos, não mais.
Dali a dois dias Robert se casaria com a única filha deles, Lucy, de modo que
este jantar era o último encontro protocolar entre as famílias dos noivos.
Ouvir os passos do criado no vestíbulo deixara
Robert inadvertidamente ansioso. Tinha espiado pela janela enquanto escrevia
algo em sua mesa de estudos – uma carta para Lucy, uma das muitas que ele não
conseguia entregar por achá-las singelas demais –, e viu quando o barco
atravessava o canal em direção à ilha.
Robert ainda descia as escadas quando viu, pelos
vitrais que emolduravam a porta da frente, sua noiva e os pais dela
atravessando o caminho de pedras que se estendia desde o pequeno cais, e levava
diretamente à entrada da mansão.
Os olhos de Robert encheram-se de brilho ao pôr
os olhos em sua noiva. Lucy usava um lindo vestido de cashmere verde esmeralda,
que exaltava sua pele cor de bronze; a pele ligeiramente enegrecida que o pai
dele insistia em hostilizar; e que Robert idolatrava acima de qualquer coisa
neste mundo.
Lucy herdara esta pele maravilhosa de seu pai e
de sua avó, que quando jovem, era escrava de uma tradicional família produtora
de lã em Hampshire, Inglaterra, até ser desposada por um dos filhos do patrão.
Foi um escândalo para a sociedade da época, mas a mistura resultou na linda
pele que Lucy ostentava, e que enfeitiçara Robert tão logo pôs os olhos nela.
Ele se recusava a compreender a hostilidade de
seu pai; a mesma hostilidade demonstrada por diversas outras pessoas da
comunidade local. Como se fosse um crime ter a pele um pouco mais escura que a
das outras pessoas. Além de ser incompreensível, Robert achava este preconceito
repugnante. E no caso de Lucy, especificamente, era absurdo.
Como pode
alguém vê-la e não adorá-la?
Era o que Robert se perguntava o tempo todo. Se a cor de sua pele constituía
algum pecado, era aquele desejo insano que ela evocava, e que ele estava certo
de que ainda seria sua perdição.
Como anfitriões, George e Agnes Griplen seguiram
corretamente o protocolo, recebendo seus convidados com um cumprimento amistoso
e requintado. Robert percebia a sinceridade por parte de sua mãe, mas era
notório que seu pai fazia grande esforço para demonstrar cortesia.
O jantar foi servido pontualmente às sete horas.
E a princípio tudo discorria muito agradavelmente. George Griplen e Jonathan
Croft, pai de Lucy, estabeleceram uma conversa amistosa a respeito de seus
negócios. Desde que se mudaram para a Nova Inglaterra, os Croft se dedicavam ao
cultivo de soja e milho, e sua fazenda prosperava a olhos vistos. Os Griplen,
porém, visando o futuro, dedicaram apenas parte de suas terras ao cultivo de alimentos
para consumo próprio, e a maior parte ao cultivo de tabaco, que, de acordo com
George, logo se tornaria um excelente produto de exportação para a Europa.
Houve breve discordância entre os chefes de
família, quanto à mão de obra em suas fazendas: por sua etnia, Jonathan Croft
era abolicionista, e somente utilizava mão de obra remunerada em sua plantação;
os Griplen, porém, ainda utilizavam trabalho escravo em sua fazenda, embora
George se orgulhasse em dizer que seus escravos não tinham do que se queixar:
eram bem alimentados, e jamais sofriam castigos bárbaros, fato que Robert podia
atestar pessoalmente.
A conversa sobre os escravos, no entanto, era
uma estratégia para que George Griplen manifestasse seu desagrado em relação à
escolha do filho.
– Não nego que Lucy seja realmente uma linda
moça – esclareceu George, a certa altura do jantar. – Temo, no entanto, que
seus filhos sofram certos preconceitos em relação a sua origem.
– Isto certamente será doloroso – aquiesceu
Jonathan Croft. – Sobretudo se ele partir do avô.
George parou com a taça de vinho a meio caminho
dos lábios.
– Perdão?
– Seu tom possuía mais desconcerto que ultraje.
– Além do mais, os filhos de Robert e Lucy
sofreriam preconceitos mesmo que minha filha tivesse pele de porcelana – prosseguiu
Jonathan, sem se intimidar com o tom do anfitrião. – Realmente não imagino o
que será de uma criança negra, saída de uma família de misteriosos hábitos
religiosos.
– Não há nada de misterioso em nossos hábitos –
protestou George, sem nenhum tipo de hesitação. – Como todos nessa comunidade,
seguimos a fé que nos foi negada na Inglaterra.
– Certamente!
– Uma pontada de ironia acentuou a voz de Jonathan. – Apenas optaram por seguir
a fé sozinhos, discretamente, em seu templo particular.
– Tem alguma objeção a isso? – indagou George,
mais como um desafio, ou uma provocação, do que, de fato, uma pergunta.
– Absolutamente – disse Jonathan.
Mas obviamente não estava sendo sincero. Em
todos os encontros, George e Jonathan trocaram insinuações hostis disfarçadas
com enganosas cortesias. Nenhum dos dois estava satisfeito com a união entre
seus filhos, e provavelmente só haviam concordado para evitar um conflito entre
duas das famílias de maior poder na colônia de Salem.
Quando Robert anunciou em casa que pretendia
desposar a filha de Jonathan Croft, George tentou de todas as formas
dissuadi-lo da decisão, e Robert sabia que ele continuaria tentando até o
último instante; talvez até depois do casamento.
Robert, porém, era tão imperioso e obstinado
quanto o pai, e Lucy era a coisa mais importante em sua vida. Ainda que tivesse
que renunciar ao nome dos Griplen, e acabasse na miséria, ele a desposaria dali
a dois dias.
Com um brinde completamente fora de contexto,
Robert pôs fim à discussão, e logo depois da sobremesa, Emily, com toda a sua
inocência, conduziu Lucy ao jardim para ver o pequeno canteiro de jasmins que
ela havia plantado com a ajuda da mãe. Enquanto isso, os cavalheiros se
dirigiram à biblioteca para acertarem os últimos detalhes referentes ao dote, mas
àquela altura, Robert não estava nem um pouco interessado nestes assuntos.
E tão logo pôde se livrar deles, Robert Griplen
saiu para o jardim. Sua mãe estava conversando com Lucy perto das madressilvas,
enquanto Emily colocava uma rosa branca no cabelo e agitava o vestido, dançando
ao luar. Luke, o cão pastor da família, corria e saltitava ao seu redor, como
se a menina o tivesse tirado para dançar.
Agnes Griplen segurava afetuosamente a mão da
nora enquanto conversavam. Estava, como de costume, desculpando-se pelas
insinuações de George. Lucy assentia timidamente, mas Robert percebia que
estava chateada.
Com sua mãe ele não tinha aborrecimentos. Agnes
amava Lucy; ressaltava, sempre que tinha oportunidade, como Robert se tornara
menos genioso desde que a conhecera. Lucy o amava, e o fazia portar-se com mais
tranquilidade e prudência, e isso era tudo o que sua mãe poderia desejar.
Quanto à Lucy, ele deveria se envergonhar por
trazer uma alma tão boa ao inferno que sua família representava. Por isso ele
não se permitiu esconder nada dela. Tinha desnudado toda a sua vida para Lucy
antes mesmo de estarem oficialmente comprometidos. Aceitar Robert em sua vida,
implicava na aceitação de tudo o que ele representava: a fortuna de sua
família, seu sobrenome, e toda a maldição que ele carregava. Lucy estava
consciente disso; e a condescendência dela, muitas vezes, fazia Robert se
perguntar se acidentalmente não a colocara sob seu feitiço.
Agora isso não fazia diferença. Robert nunca
ambicionou nada tão intensamente quanto o amor de Lucy; e desde que o tinha,
ele não seria capaz de abrir mão dela. Não importava a que preço. Para ter o
amor de Lucy, valia a pena enfrentar qualquer coisa, inclusive a maldição de
seu pai. E sobre isso, seu destino já estava decidido.
Dali a dois dias ele desposaria Lucy. E conforme
garantira ao pai, quando este apelara mais uma vez antes do jantar, nada
poderia impedir o seu casamento. Ainda que a morte atravessasse seu caminho,
Lucy seria sua esposa. Ela seria sua para sempre.
Livro completo à
venda em e-book e edição física diretamente com a autora, Clube dos Autores, e nas principais livrarias e marketplaces online.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela visita!
E já que chegou até aqui, deixe um comentário ♥
Se tiver um blog, deixe o link para que eu possa retribuir a visita.