Por Talita Vasconcelos
Quarentena, Dia 50
Hoje faz exatamente
cinquenta dias que eu não tenho nenhum arranca-rabo com a Dona Lourdes. Não
estou nos reconhecendo! Sério: nenhuma treta por causa da vaga na garagem,
nenhum desentendimento pelo descarte do lixo, nenhuma acusação de termos jogado
seu gato na lixeira – só para constar: nunca fizemos isso com o bichinho; o
caso é que ele sempre mergulha por cima do ombro de quem quer que abra a lata
de lixo no dia em que o seu Horácio do 62 faz macarrão com sardinha –, nenhuma
queixa porque a Dona Horrores(?) largou o saco de lixo no elevador – às vezes
eu desconfio que a Dona Lourdes reclama comigo porque me acha boa ouvinte –,
nada sobre o excesso de fumaça que sai pela janela da nossa cozinha – essa
reclamação é típica das sextas-feiras, que é o meu dia de cozinhar, e aí, só
orando; mas nos últimos tempos não tenho tido muitas oportunidades de
frequentar a cozinha, já que duas cozinheiras de mão cheia a tem mantido
ocupada quase vinte e quatro horas por dia. Enfim, Dona Lourdes não reclama de
absolutamente nada com a minha pessoa há exatos cinquenta dias. Estou começando
a ficar preocupada. Será que não seria o caso de pedir que um médico venha dar
uma examinada na síndica? Porque isso não é normal...
Quarentena, Dia 51
Falando na Dona
Horrores, ela e o marido estão muitíssimo bem de saúde. De juízo, não se pode
dizer o mesmo. O Seu Ezequiel, porteiro do prédio, mandou o zelador, Severino
Mosca-Morta verificar se tinha alguém morto no apartamento, e ele descobriu que
o casal anda estocando o lixo lá dentro. Esse é o motivo da catinga que
sentimos no corredor. O pior é que eles se recusaram a tomar uma providência
para se livrar daquilo, e desta vez, até o mosca-morta do Severino falou grosso
ao exigir que façam a limpeza, ou ele vai chamar a vigilância sanitária. Já vi
gente porca, mas que nem esse casal aí da frente, não tem, não. Oh, gentalha!
Quarentena, Dia 52
Dessa vez eu
decidi aproveitar a quarentena para aprender algo útil – além do crochê que a
Bibi me ensinou. Cristiana hoje me ensinou a fazer pão. E olha, modéstia a
parte, a padeira de primeira viagem aqui arrasou! Tirando o fato de o pão não
ter crescido, e de eu talvez ter exagerado um tantinho assim no açúcar, ficou perfeito.
Quarentena, Dia 53
É possível que
tenhamos um novo vizinho gato no prédio. Quer dizer, eu acho. Acho que é
morador do prédio... Ou o visitante de alguém no quinto andar. E acho que é
gato, mas, com a máscara, a gente só tem acesso a um pedaço do rosto das
pessoas. Os olhos eram bonitos, porém, é meio esquisito paquerar uma pessoa de
máscara. Sempre fico imaginando se quando a máscara sair eu não vou me deparar
com a bruxa debaixo do véu do Pica-Pau...
Quarentena, Dia 54
O apartamento da
frente continua fedendo. Hoje o Severino deu um ultimato ao casal para resolver
o problema, ou será multado pelo condomínio. E estou pensando seriamente em
adicionar um prendedor nasal à minha máscara de ecobag, porque está difícil
passar pela catinga no corredor.
Quarentena, Dia 55
A última coisa
que eu esperava ver na vida, era a Cristiana trocando receitas com a Dona
Lourdes. A criatura pode ser cricri, mas a receita de abóbora recheada que ela
compartilhou com a gente é de comer rezando! Rezando principalmente para o
carboidrato virar alface no organismo, porque eu não estou podendo comprar
roupas maiores agora. Mas também não consigo parar de comer essa maravilha.
Quarentena, Dia 56
Já li tudo o que
tinha parado na estante. Já escrevi seis roteiros. Já comi tudo o que tinha na
geladeira. Engordei quatro quilos. Minha rotina de malhação foi para as
cucuias. Meu cabelo com a progressiva atrasada está sendo confundido com uma
palha de aço. E meu vizinho não para de escutar sofrência. Pai, por que nos
abandonaste?
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela visita!
E já que chegou até aqui, deixe um comentário ♥
Se tiver um blog, deixe o link para que eu possa retribuir a visita.