No silêncio da meia-noite, uma mente genial
viu, dentro de um quarto escuro, a cabeça de um homem se esgueirando
infinitesimalmente lenta pela porta, de posse de uma lanterna com a tampa toda
velada, a espreitar se estaria aberto o olho quase cego de um velho, cujo
coração batia com som baixo, monótono e rápido como o de um relógio quando
abafado em algodão. E naquela mesma penumbra da noite, assassinou o velho,
esquartejou e o enterrou sob as tábuas do piso.
Não, meus amigos. Este assassinato não é real.
A mente genial de que falei no início do parágrafo anterior é Edgar Allan Poe, o
mestre dos contos de horror, e o homem que se esgueira dentro do quarto escuro
para matar o velho é o enredo de um de seus contos mais famosos e mais
terrivelmente geniais, O Coração Delator.
Este conto é um retrato dos limites do ser humano ao lidar com seus medos, e por que não dizer, um retrato das aflições criadas por uma mente atormentada pela culpa.
Neste conto, um homem tenta convencer o leitor
de que não está louco, mas que tem sentidos muito poderosos que o levaram a
cometer o crime. O velho nunca lhe fez mal. O que o incomodava era o olho quase
cego, ou como ele próprio o descrevera, olho de abutre.
O olho do velho lhe causava medo, a tal ponto
que, mesmo o velho não lhe tendo feito mal algum, ele planejou a morte dele, e
procurou durante sete dias ocasião para executá-lo.
Ao oitavo dia, o velho percebeu sua presença
na porta, e durante uma hora inteira vigiou a escuridão, sentado na cama, até
que o som ensurdecedor de seu coração causou um terror incontrolável naquele
homem, que o matou, esmagado sob a cama.
Depois de esquartejar o corpo e o colocar sob
as tábuas do piso, feliz com sua perícia em não deixar manchas de sangue, o
sujeito é visitado por três policiais que receberam denúncias de um vizinho, a
respeito de um grito na casa. Confiante em seu trabalho impecável, o homem
mandou dar busca completa na casa, e sentou-se com os policiais para conversar
no quarto onde matara e sepultara o velho.
É neste momento que a culpa o corrói. À medida
que os minutos passam, e ele percebe que os policiais não têm pressa de ir
embora, ele começa a ouvir novamente as batidas surdas do coração cada vez mais
alto. E como eles não fazem menção de sair, seu medo se excita até que se torna
insuportável, e ele não tem outra saída para calar o inconveniente coração,
senão confessar seu crime e revelar o cadáver do velho.
Com um enredo simples e um tipo de insanidade
abordado por inúmeros autores, Edgar Allan Poe acertou em cheio a receita para
escrever uma história que vem conquistando fãs há mais de cento e cinquenta
anos.
O Coração Delator foi tema do primeiro curta
de animação recomendado para maiores de 18 anos, lançado em 1953:
Aqui mesmo vocês podem ler o conto:
O Coração Delator
Edgar Allan Poe
É verdade! Nervoso, muito, muito nervoso mesmo eu estive e estou; mas por que você vai dizer que estou louco? A doença exacerbou meus sentidos, não os destruiu, não os embotou. Mais que os outros estava aguçado o sentido da audição. Ouvi todas as coisas no céu e na terra. Ouvi muitas coisas no inferno. Como então posso estar louco? Preste atenção! E observe com que sanidade, com que calma, posso lhe contar toda a história.
É
impossível saber como a ideia penetrou pela primeira vez no meu cérebro, mas,
uma vez concebida, ela me atormentou dia e noite. Objetivo não havia. Paixão
não havia. Eu gostava do velho. Ele nunca me fez mal. Ele nunca me insultou.
Seu ouro eu não desejava. Acho que era seu olho! É, era isso! Um de seus olhos
parecia o de um abutre - um olho azul claro coberto por um véu. Sempre que caía
sobre mim o meu sangue gelava, e então pouco a pouco, bem devagar, tomei a
decisão de tirar a vida do velho, e com isso me livrar do olho, para sempre.
Agora esse é o ponto. O senhor acha que sou louco. Homens loucos de nada sabem. Mas deveria ter-me visto. Deveria ter visto com que sensatez eu agi — com que precaução —, com que prudência, com que dissimulação, pus mãos à obra! Nunca fui tão gentil com o velho como durante toda a semana antes de matá-lo. E todas as noites, por volta de meia-noite, eu girava o trinco da sua porta e a abria, ah, com tanta delicadeza! E então, quando tinha conseguido uma abertura suficiente para minha cabeça, punha lá dentro uma lanterna furta-fogo bem fechada, fechada para que nenhuma luz brilhasse, e então eu passava a cabeça. Ah! o senhor teria rido se visse com que habilidade eu a passava. Eu a movia devagar, muito, muito devagar, para não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para passar a cabeça toda pela abertura, o mais à frente possível, para que pudesse vê-lo deitado em sua cama. Aha! Teria um louco sido assim tão esperto? E então, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a lanterna com cuidado — ah!, com tanto cuidado! —, com cuidado (porque a dobradiça rangia), eu a abria só o suficiente para que um raiozinho fino de luz caísse sobre o olho do abutre. E fiz isso por sete longas noites, todas as noites à meia-noite em ponto, mas eu sempre encontrava o olho fechado, e então era impossível fazer o trabalho, porque não era o velho que me exasperava, e sim seu Olho Maligno. E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu entrava corajosamente no quarto e falava Com ele cheio de coragem, chamando-o pelo nome em tom cordial e perguntando como tinha passado a noite. Então, o senhor vê que ele teria que ter sido, na verdade, um velho muito astuto, para suspeitar que todas as noites, à meia-noite em ponto, eu o observava enquanto dormia.
Na oitava noite, eu tomei um cuidado ainda
maior ao abrir a porta. O ponteiro de minutos de um relógio se move mais
depressa do que então a minha mão. Nunca antes daquela noite eu sentira a
extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade. Eu mal conseguia conter
meu sentimento de triunfo. Pensar que lá estava eu, abrindo pouco a pouco a
porta, e ele sequer suspeitava de meus atos ou pensamentos secretos. Cheguei a
rir com essa ideia, e ele talvez tenha ouvido, porque de repente se mexeu na
cama como num sobressalto. Agora o senhor pode pensar que eu recuei — mas não.
Seu quarto estava preto como breu com aquela escuridão espessa (porque as
venezianas estavam bem fechadas, de medo de ladrões) e então eu soube que ele
não poderia ver a porta sendo aberta e continuei a empurrá-la mais, e mais.
Minha cabeça estava dentro e eu quase
abrindo a lanterna quando meu polegar deslizou sobre a lingueta de metal e o
velho deu um pulo na cama, gritando:
— Quem está aí?
Fiquei imóvel e em silêncio. Por uma hora
inteira não movi um músculo, e durante esse tempo não o ouvi se deitar. Ele
continuava sentado na cama, ouvindo bem como eu havia feito noite após noite
prestando atenção aos relógios fúnebres na parede.
Nesse instante, ouvi um leve gemido, e eu
soube que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de
tristeza — ah, não! era o som fraco e abafado que sobe do fundo da alma quando
sobrecarregada de terror. Eu conhecia bem aquele som. Muitas noites, à
meia-noite em ponto, ele brotara de meu próprio peito, aprofundando, com seu
eco pavoroso, os terrores que me perturbavam. Digo que os conhecia bem. Eu
sabia o que sentia o velho e me apiedava dele embora risse por dentro. Eu sabia
que ele estivera desperto, desde o primeiro barulhinho, quando se virara na
cama. Seus medos foram desde então crescendo dentro dele. Ele estivera tentando
fazer de conta que eram infundados, mas não conseguira. Dissera consigo mesmo:
"Isto não passa do vento na chaminé; é apenas um camundongo andando pelo
chão", ou "É só um grilo cricrilando um pouco". É, ele estivera
tentando confortar-se com tais suposições; mas descobrira ser tudo em vão. Tudo
em vão, porque a Morte ao se aproximar o atacara de frente com sua sombra
negra e com ela envolvera a vítima. E a fúnebre influência da despercebida
sombra fizera com que sentisse, ainda que não visse ou ouvisse, sentisse a
presença da minha cabeça dentro do quarto.
Quando já havia esperado por muito tempo e
com muita paciência sem ouvi-lo se deitar, decidi abrir uma fenda — uma fenda
muito, muito pequena na lanterna. Então eu a abri — o senhor não pode imaginar
com que gestos furtivos, tão furtivos — até que afinal um único raio pálido
como o fio da aranha brotou da fenda e caiu sobre o olho do abutre.
Ele estava aberto, muito, muito aberto, e
fui ficando furioso enquanto o fitava. Eu o vi com perfeita clareza - todo de
um azul fosco e coberto por um véu medonho que enregelou até a medula dos meus
ossos, mas era tudo o que eu podia ver do rosto ou do corpo do velho, pois
dirigira o raio, como por instinto, exatamente para o ponto maldito.
E agora, eu não lhe disse que aquilo que o
senhor tomou por loucura não passava de hiperagudeza dos sentidos? Agora,
repito, chegou a meus ouvidos um ruído baixo, surdo e rápido, algo como faz um
relógio quando envolto em algodão. Eu também conhecia bem aquele som. Eram as
batidas do coração do velho. Aquilo aumentou a minha fúria, como o bater do
tambor instiga a coragem do soldado.
Mas mesmo então eu me contive e continuei
imóvel. Quase não respirava. Segurava imóvel a lanterna. Tentei ao máximo
possível manter o raio sobre o olho. Enquanto isso, aumentava o diabólico
tamborilar do coração. Ficava a cada instante mais e mais rápido, mais e mais
alto. O terror do velho deve ter sido extremo. Ficava mais alto, estou dizendo,
mais alto a cada instante! — está me entendendo? Eu lhe disse que estou
nervoso: estou mesmo. E agora, altas horas da noite, em meio ao silêncio
pavoroso dessa casa velha, um ruído tão estranho quanto esse me levou ao terror
incontrolável. Ainda assim por mais alguns minutos me contive e continuei
imóvel. Mas as batidas ficaram mais altas, mais altas! Achei que o coração iria
explodir. E agora uma nova ansiedade tomava conta de mim — o som seria ouvido
por um vizinho! Chegara a hora do velho! Com um berro, abri por completo a
lanterna e saltei para dentro do quarto. Ele deu um grito agudo — um só. Num
instante, arrastei-o para o chão e derrubei sobre ele a cama pesada. Então
sorri contente, ao ver meu ato tão adiantado. Mas por muitos minutos o coração
bateu com um som amortecido. Aquilo, entretanto, não me exasperou; não seria
ouvido através da parede. Por fim, cessou. O velho estava morto. Afastei a cama
e examinei o cadáver. É, estava morto, bem morto. Pus a mão sobre seu coração e
a mantive ali por muitos minutos. Não havia pulsação. Ele estava bem morto. Seu
olho não me perturbaria mais.
Se ainda me acha louco, não mais pensará
assim quando eu descrever as sensatas precauções que tomei para ocultar o
corpo. A noite avançava, e trabalhei depressa, mas em silêncio. Antes de tudo
desmembrei o cadáver. Separei a cabeça, os braços e as pernas.
Arranquei três tábuas do assoalho do
quarto e depositei tudo entre as vigas. Recoloquei então as pranchas com tanta
habilidade e astúcia que nenhum olho humano — nem mesmo o dele — poderia
detectar algo de errado. Nada havia a ser lavado — nenhuma mancha de qualquer
tipo — nenhuma marca de sangue. Eu fora muito cauteloso. Uma tina absorvera
tudo - ha! ha!
Quando terminei todo aquele trabalho, eram
quatro horas — ainda tão escuro quanto à meia-noite.
Quando o sino deu as horas, houve uma
batida à porta da rua. Desci para abrir com o coração leve — pois o que tinha
agora a temer? Entraram três homens, que se apresentaram, com perfeita suavidade,
como oficiais de polícia. Um grito fora ouvido por um vizinho durante a noite;
suspeitas de traição haviam sido levantadas; uma queixa fora apresentada à
delegacia e eles (os policiais) haviam sido encarregados de examinar o local.
Sorri — pois o que tinha a temer? Dei as
boas-vindas aos senhores. O grito, disse, fora meu, num sonho. O velho,
mencionei, estava fora, no campo. Acompanhei minhas visitas por toda a casa.
Incentivei-os a procurar — procurar bem. Levei-os, por fim, ao quarto dele. Mostrei-lhes
seus tesouros, seguro, imperturbável. No entusiasmo de minha confiança, levei
cadeiras para o quarto e convidei-os para ali descansarem de seus afazeres,
enquanto eu mesmo, na louca audácia de um triunfo perfeito, instalei minha
própria cadeira exatamente no ponto sob o qual repousava o cadáver da vítima.
Os oficiais estavam satisfeitos. Meus modos
os haviam convencido. Eu estava bastante à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu
respondia animado, falaram de coisas familiares. Mas, pouco depois, senti que
empalidecia e desejei que se fossem. Minha cabeça doía e me parecia sentir um
zumbido nos ouvidos; mas eles continuavam sentados e continuavam a falar. O
zumbido ficou mais claro — continuava e ficava mais claro: falei com mais
vivacidade para me livrar da sensação: mas ela continuou e se instalou — até
que, afinal, descobri que o barulho não estava dentro de meus ouvidos.
Sem dúvida agora fiquei muito
pálido; mas falei com mais fluência, e em voz mais alta. Mas o som crescia - e
o que eu podia fazer? Era um som baixo, surdo, rápido — muito
parecido com o som que faz um relógio quando envolto em algodão. Arfei em
busca de ar, e os policiais ainda não o ouviam. Falei mais depressa, com mais
intensidade, mas o barulho continuava a crescer. Levantei-me e discuti sobre
ninharias, num tom alto e gesticulando com ênfase; mas o barulho continuava a
crescer. Por que eles não podiam ir embora? Andei de um lado para outro
a passos largos e pesados, como se me enfurecessem as observações dos homens,
mas o barulho continuava a crescer. Ai meu Deus! O que eu poderia fazer?
Espumei — vociferei — xinguei! Sacudi a cadeira na qual estivera sentado e
arrastei-a pelas tábuas, mas o barulho abafava tudo e continuava a crescer.
Ficou mais alto — mais alto — mais alto! E os homens ainda conversavam
animadamente, e sorriam. Seria possível que não ouvissem? Deus Todo-Poderoso! —
não, não? Eles ouviam! — eles suspeitavam! — eles sabiam! - Eles estavam
zombando do meu horror! — Assim pensei e assim penso. Mas qualquer coisa seria
melhor do que essa agonia! Qualquer coisa seria mais tolerável do que esse
escárnio. Eu não poderia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas!
Senti que precisava gritar ou morrer! — e agora — de novo — ouça! Mais alto!
Mais alto! Mais alto! Mais alto!
— Miseráveis! — berrei — Não disfarcem
mais! Admito o que fiz! Levantem as pranchas! — aqui, aqui! — são as batidas do
horrendo coração!
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