Por Talita
Vasconcelos
Natal
é uma das minhas datas favoritas no ano, porque é sempre aquela época em que
você deixa tudo de lado e se permite aproveitar a vida, e cometer todos os
excessos que não cometeria normalmente, ao seu bel prazer: tira folga do
trabalho, ou férias coletivas – a menos que trabalhe no comércio –, dá uma
trégua na dieta, tira o escorpião da carteira e finalmente cria coragem para
comprar aquele sapato que você está namorando há meses, mas sabe que é caro
demais para o seu orçamento... E se pá,
ainda rola aquela viagenzinha com os amigos ou com a família para algum lugar
bem bacana. Sem falar no panetone, no peru, na rabanada, e nas toneladas de
chocolate sem culpa que você se permite comer, para só se arrepender lá pelo
dia três de janeiro... Enfim, Natal é uma data em que quase tudo é permitido. E
em que as melhores histórias acontecem. Inclusive as mais inacreditáveis...
–
Pinheirinho que alegria! Trá lá lá lá lá,
lá lá lá lá... Sinos tocam noite e dia... ♪
–
Nossa, quanta animação logo cedo! – comentou Cristiana, entrando na sala do
apartamento, ao me ouvir cantando na cozinha enquanto virava as panquecas para
o café-da-manhã de Natal. – Tem mais alguém aqui?
–
Comigo, não. Com você...?
–
O Pedrão só vem mais tarde. Mas, e aí? Qual é o motivo de tanta animação?
–
Como assim? É Natal!
–
É, mas para você amanhecer assim, cantando... A que horas o seu bofe vai
chegar?
–
Já te falei que não tem bofe nenhum!
Nesse
momento, enquanto eu tirava as panquecas da frigideira, a campainha tocou.
Cristiana foi atender, e depois de falar durante aproximadamente um minuto com
alguém que começou perguntando por mim, ela fechou a porta, e trouxe uma cesta
enrolada em celofane transparente, com um laço vermelho, até a bancada da
cozinha. Dentro dele havia um ursinho de pelúcia branco.
–
O Ninguém te mandou isso aqui – disse
ela, com aquele sorriso “te peguei” no rosto.
Coloquei
o prato de panquecas na mesa, e fui abrir meu presente, um tantinho constrangida. O ursinho tinha um cachecol vermelho e
dourado no pescoço, com um pequeno enfeite natalino no centro, e um gorrinho
vermelho. Ao redor dele, preenchendo o conteúdo da cesta, dezenas dos meus
bombons favoritos.
–
E aí? – insistiu Cristiana. – Ninguém
tem nome?
–
Amor, a fantasia é sua! – Eu não iria dar o braço a torcer. – Escolhe qualquer
nome: Fulano de Tal, Sicrano de Etecetera, Beltrano de Assim Por Diante...
–
Ahã! – Ela ergueu meu ursinho da cesta e começou a movê-lo diante do meu rosto,
fazendo uma vozinha tola, como se ele estivesse falando: – E quem me mandou para
você foi o Fulano de Tal, o Sicrano de Etecetera, ou o Beltrano de Assim Por
Diante?
–
Os três!
–
Ok! Fica aí escondendo o jogo! Mas eu aposto que até o fim da noite eu consigo
descobrir quem é esse teu bofe.
–
Ah, é? E como você vai descobrir, hein, Cristiana Holmes?
–
Vocês estão saindo há... O quê? Duas semanas?
Dei
de ombros.
–
E ele te mandou um ursinho e um monte de bombons logo cedo na véspera de
Natal... – prosseguiu Cristiana. – De duas uma: ou ele está muito apaixonado,
ou já te conhece há séculos. Ou as duas coisas! Eu sou capaz de apostar que ele
vai aparecer por aqui hoje.
–
Bom, se você vai apostar, me faça a gentileza de apostar dinheiro; e aposte
alto, porque você vai perder!
–
Veremos!
Ela
colocou o ursinho de volta na cesta.
–
Vamos almoçar na sua mãe hoje? – indagou Cristiana.
–
Vamos.
–
Não esquece que a gente tem que voltar cedo.
Esse
ano, a festa de Natal da galera seria no nosso apartamento. Viriam umas oito ou
nove pessoas, cada um traria um prato, e nós trocaríamos os presentes do amigo
secreto. E como ninguém se arriscaria a carregar um peru assado pela cidade em
plena véspera de Natal, ficou decidido que nós assaríamos o bicho – que foi
comprado pelo Leandro, nosso produtor teatral – aqui em casa, mesmo.
–
De preferência, antes que a tia Rosália resolva aparecer – assenti.
Tia
Rosália é tia da minha mãe, e a única parente daquele lado da família de quem
eu não gosto. Os motivos são muitos; para simplificar: ela gosta de torturar
criancinhas. Esse tipo de trauma não se apaga com o tempo...
–
Aproveita o almoço natalino para contar para a sua família sobre o seu novo
namorado – provocou-me Cristiana, passando geleia nas panquecas.
–
Claro... Aproveito e conto também que o seu pai está na cadeia – retruquei. Mas
é claro que eu estava brincando.
–
Ele é carcereiro! – replicou Cristiana.
–
Eu não vou entrar em detalhes.
E
Cristiana me atirou, de brincadeira, o papel amassado de um bombom.
–
Só espero que o seu namorado misterioso não seja o Casanova.
–
Não, mesmo!
Casanova
é o apelido do Leandro, e é autoexplicativo: é mais fácil acompanhar a vida
amorosa do Fábio Jr. do que a dele.
Saímos
de casa pouco depois do café-da-manhã. Minha mãe estava no telefone quando
chegamos à casa dela. Abriu a porta com o aparelho grudado na orelha, dando
risada, e gesticulou para que entrássemos, jogando beijos silenciosos para nós.
Minha irmã Roberta estava na cozinha, retirando o assado do forno, e rindo de
alguma coisa também.
–
O que é tão engraçado? – perguntei à minha irmã.
–
Se eu entendi bem, a Claudete levou marmita para almoçar na casa da tia Vilma –
disse Roberta.
Claudete
é a esposa do meu primo Ari. Depois de uma série de roubadas, e de namorar
espécimes de toda a fauna brasileira, ele acabou se casando com a ex-mulher de
dois dos seus amigos (sem brincadeira!), já mãe de três filhos, e atualmente à
espera do quarto.
–
Está certa ela – comentei. – Se a tia Vilma tiver feito costela, o que será que
a Claudete vai ter primeiro: um infarto ou o bebê?
–
Por quê? – perguntou Cristiana. – O que tem na costela da sua tia?
–
Três toneladas de gordura! – respondeu Roberta.
–
Já te falei disso, lembra não? A costela gordurosa da tia Vilma? Carinhosamente
conhecida como moqueca de quenga.
Minha
mãe sibilou pedindo para baixarmos a voz, ainda com o telefone grudado na
orelha, provavelmente com medo de que a minha tia ouvisse o apelido carinhoso
que demos a um dos pratos mais tradicionais de sua culinária. Não lembro
exatamente quem foi que deu esse apelido à gororoba – se fui eu, meu irmão
Raul, a Roberta ou o próprio Ari –, mas o apelido pegou, e hoje em dia, todo
mundo na família o conhece. Bem, todos, menos a tia Vilma...
–
Ah, lembrei – disse Cristiana, recuperando-se de uma gargalhada. – Vem cá, a
Claudete ainda não ganhou neném? Ela
está de quantos meses? Dezoito?
–
Pelo que ela falou, deve nascer até o final da semana que vem – disse Roberta.
–
Mas já sabem o que é?
–
A gente acha que é humano – disse Roberta. – Pelo menos, estamos torcendo por
isso...
–
Em todo caso, já compramos a jaula! – disse Raul, vindo do corredor, com o
cabelo molhado, exalando perfume e terminando de abotoar a camisa, a tempo de
acompanhar a conversa.
–
Coitada, gente! Ela nem é tão feia – defendeu Cristiana, enquanto Raul lhe dava
um beijo na bochecha, vindo me abraçar em seguida.
–
Considerando as crias daquela mulher, é melhor prevenir – disse Raul. – Não se
esqueça de que a última coisa que ela pariu foi o filhote do Curinga. Já viu a fuça daquela criatura? Vai que aquilo
morde...
–
Ué... É uruguaio? – indagou Cristiana.
–
Tá ficando velha essa piada! – repliquei, dando risada.
Filhote
do Curinga é o apelido carinhoso que o Raul
deu ao Jason, filho mais novo da Claudete. Na verdade, ele nem é tão feio
assim... Ele só tem as orelhas do Dumbo, nariz de batata e quatro quilos de
beiço... Para ser o vilão do Batman só
faltou a maquiagem, mas, tirando isso, até que ele é bem ajeitadinho.
–
É só para não perder o costume – disse Cristiana, referindo-se à piada sobre o
garoto ser uruguaio.
–
Eu ouvi vocês falando sobre a moqueca de quenga da tia Vilma... – disse Raul. –
Tomara que, além da marmita, a Claudete tenha levado também a louça, porque já
sabe como é a casa da velha...
–
Como é a casa da sua tia? – perguntou Cristiana, fingindo inocência.
–
É o tipo de casa que não dá para comer.
–
De fato, comer blocos de concreto não parece muito saboroso – adicionou
Roberta.
–
Onde não dá para comer – corrigiu
Raul, dando risada e bagunçando o cabelo da nossa irmã.
–
Na casa da tia Vilma se adoça café com arroz azedo – comentei.
–
Que horror! – exclamou Cristiana.
Apesar
de sermos amigas há anos, Cristiana
só conhece uma pequena parte da minha família. Tia Vilma pertence à parte que
não dá muita coragem de assumir como parente.
Tudo
bem que toda família tem seus espécimes malucos, mas a minha abusa! Se um dia o
Ibama decidir fiscalizar, eu não quero nem imaginar o tamanho da multa que vai
dar, porque o que não falta na minha família é bicho ilegal: tem preguiça, tem
anta, porco, veado, piranha... Tem de um tudo!
–
Eles deixam o coador de pano dentro da lixeira da pia, e não lavam antes de usar
– explicou Raul. – Vão passando um café por cima do outro. Aí você olha no
fundo do copo acha grão de arroz azedo, casca de cebola, semente de laranja...
É uma nojeira!
–
Eu, hein... – murmurou Cristiana, livrando-se de uma ânsia de nojo.
E
foi quando minha mãe finalmente desligou o telefone e anunciou que a tia Vilma
nos desejara um feliz natal.
–
Quando eu estiver falando com alguém no telefone, e vocês quiserem falar mal
dessa pessoa, façam o favor de falar baixo! – ralhou, chegando-se à cozinha
para mexer as panelas, cujo fogo Roberta acabara de desligar.
–
Relaxa, mãe! – disse Raul. – Garanto que ela não ouviu.
–
Sorte de vocês que a Vilma é meio surda...
–
Meio surda era a Bizantina da Praça é Nossa! – replicou Raul. – A tia
Vilma é um caso de polícia!
–
Seja lá como for! Não é por isso que a gente pode malhar a velha e ficar
chamando a coitada de porca enquanto ela está do outro lado da linha.
–
Só para ficar registrado: ninguém aqui disse a palavra porca – esclareci. – A gente só comentou que ela faz café temperado
com tudo o que estiver no fundo da lixeira.
–
Muito engraçadinha, dona Emanuelly...
–
E o papai? – perguntei. – Achei que ele vinha almoçar com a gente...
–
Seu pai ligou agora a pouco, também – disse minha mãe. – Roubaram o carro da
funerária, e ele foi pra delegacia registrar ocorrência.
Já
contei que meu pai é agente funerário? Não contei, não? Bem, agora contei!
–
Mas ele está bem? – perguntei, preocupada.
–
Tirando o susto e o prejuízo, está.
–
Fazer B.O. na véspera de Natal...? Será que ele consegue sair da delegacia
antes do Réveillon? – comentou Cristiana.
–
Vai saber...
–
Eu duvido que ele saia cedo de lá – disse Raul. – Melhor não esperar para almoçar.
–
Foi o que ele disse ao telefone – concordou minha mãe. – Aliás, o almoço já
está pronto. Só vamos esperar o Pablo chegar com os refrigerantes.
–
Quer dizer que o namoro está ficando sério, então? – perguntei à Roberta.
–
Você tinha dúvida? – indagou minha irmã.
–
Pablo... Pablo... Pablo...? – ficou repetindo Cristiana, tentando se lembrar.
–
A Roberta está namorando um argentino – disse minha mãe.
–
Ninguém é perfeito – brincou Raul.
–
Você conhece, Cristiana! – disse Roberta. – Aquele amigo argentino da Manu que
ficou hospedado com vocês na Copa do Mundo.
–
Pablo...? Não lembro, não – disse Cristiana. – Eu lembro de um argentino com
duas asas tatuadas no pescoço...
–
É ele! – afirmei.
–
Ih, gente! Então por que eu passei a Copa inteira chamando esse cara de Diego?
–
Porque você é maluca! – disse Roberta, rindo.
–
E eu pensando que ele era namorado do Mário... – comentou Cristiana, sem a
menor cerimônia.
–
Que Mário? – perguntou Roberta, com uma inocência que chegou a beirar a
ingenuidade. Percebeu em seguida o erro cometido, porque começou a corar,
enquanto todos tentávamos conter as risadinhas.
–
Vou deixar essa passar, só porque hoje é Natal... – disse Cristiana, mal
segurando a risada. – O Mário é aquele italiano que ficou amigão dele na Copa;
os dois não se desgrudavam... Depois ainda tirou sarro, porque o Diego ficou a
Copa inteira relembrando histórias do Maradona e falando do Messi, que os
melhores jogadores do mundo são argentinos, e não sei mais o quê... E depois o
italiano, de pirraça, se gabou de ser xará do autor do gol do título da
Alemanha.
–
E não vamos nos esquecer que o título da Alemanha foi praga da Emanuelly –
lembrou Raul.
–
Como é que eu ia saber que o anjo do ex-Papa ia falar amém? – defendi-me.
Ok,
eu confesso: fiquei encantada com a seleção alemã desde o primeiro jogo; mas
quando eu disse que eles ganhariam a Copa, eu falei da boca pra fora. Depois de
fazer o Cristiano Ronaldo – que, convenhamos, não é um perna de pau, mas também
não é tudo isso – sair chupando dedo, sem conseguir anotar um golzinho sequer
no jogo de estreia, deu para ver que a Alemanha estava atazanada. Tudo o que eu
disse foi que, se continuasse nesse ritmo, e chegassem à final, a Alemanha
ganharia a Copa sem dúvida alguma. E ainda acrescentei: “só espero que não
joguem contra o Brasil na final”. Oh boca...
–
Ah, tá... O Lucarelli – disse Roberta, recordando-se do amigo italiano do
namorado. – Tinha esquecido o primeiro nome dele. Eles ainda se falam. Da
última vez que eu soube, ele estava para casar, lá na Itália. Só não lembro o
nome da noiva. E Diego é o nome do irmão
do Pablo, a propósito. Não sei por que você cismou que era o nome dele...
–
Mas ele tinha a maior cara de Diego... – defendeu-se Cristiana.
–
E o irmão dele também. Os dois são parecidos.
–
E por falar em irmão e em namorado, sua irmã está escondendo o jogo, mas tem
bofe novo na área – dedurou Cristiana.
–
Fala logo o nome do fulano que eu quero bater um papinho com ele – disse Raul,
bancando o irmão ciumento. Só bancando, mesmo.
Dei
um olhar de desdém para Cristiana. Se ela pensava que podia arrancar uma
confissão de mim, só porque estávamos rodeadas pela minha família, ela podia
tirar o cavalo da chuva.
–
Conta aí, Manu – incentivou Roberta. – Quem é o cara?
–
A fofoca que você buscou encontra-se desligada ou fora da área de cobertura.
Tu, tu, tu, tu, tu, tu... – eu disse, imitando a voz da gravação das operadoras
de telefonia.
–
Fala pra mim que não é o Casanova...? – supôs Raul.
–
Mas que mania vocês têm com o Casanova! – reclamei. – Gente, eu sou doida, mas
nem tanto...
–
Aquele garoto que escreve a coluna de esportes do jornal...? – supôs minha mãe.
– Ele mora no prédio de vocês. Como é mesmo o nome dele...?
–
Fábio – respondi. – Aliás, se tem uma coisa que eu admiro no Fábio é o namorado
dele. Pensa num homem que não pediu licença para ser bonito!
–
Ah, eu vi os dois outro dia na piscina – disse Cristiana. – Ele parece modelo,
né?!
–
Não me diga que você voltou a sair com o Podolski? – perguntou Roberta.
–
Espera aí! O bonitão do Bloco C? Apartamento 110? – verificou Cristiana. –
Quando foi que você...?
–
Roberta e sua boca grande! – ralhei.
–
Por acaso você conhece outro clone do Podolski? – respondeu Roberta para
Cristiana. – Circulando em São Paulo?
–
Ah, cachorra! E não me contou nada...
–
Faz mais barato, Cristiana... E vamos parar de brincar de adivinhar que isso
aqui não é Programa do Silvio Santos.
–
Ok, se não é o Podolski, eu aposto que é o vendedor gato daquela loja de móveis
chique... – insistiu Roberta.
–
Um moreno? De olhos esverdeados? – verificou Cristiana.
Fiz
que não com a cabeça. Mas dei um sorriso ao lembrar de quem estavam falando.
Roberta assentiu.
–
Esse filé mignon é Friboi! – disse Cristiana, com o mesmo sorriso.
E
foi bem nesse momento que a porta do apartamento da minha mãe se abriu. O
primeiro a entrar foi o Pablo, o namorado argentino da Roberta, carregando duas
sacolas com as garrafas de refrigerante. Em seguida, entraram o papai e a minha
boadrasta Malu.
Faz
mais de quinze anos que meus pais se separaram, e Malu é a terceira esposa que
meu pai arrumou depois do divórcio – e esperamos que seja a última, porque com
o mau gosto que ele tem, dificilmente terá outro acerto. Minha mãe, por outro
lado, não se casou com mais ninguém, mas corre um boato de que ela está namorando.
–
Vamos ter churrasco hoje? – perguntou meu pai, ao pegar o bonde andando.
–
Não que eu saiba – respondeu minha mãe, agradecendo ao novo genro pelos refris, que ele teve o bom senso de já
trazer gelados.
–
Eu ouvi vocês falando em filé Friboi – comentou meu pai.
–
Ah, é, está de oferta no açougue – mentiu Roberta, arrancando uma risadinha do
Raul, que ela respondeu com um olhar reprovador. E em seguida mudou de assunto.
– A gente estava comentando aqui que vocês iriam demorar na delegacia. O que
aconteceu?
–
Se eu contar, vocês não acreditam... – comentou papai, colocando as sacolas de
presentes no sofá.
Esse
é meu lema, pai!
–
Vai na fé, que a gente acompanha –
incentivei.
–
Bom, eu estava levando o corpo do seu Aristides pro cemitério – ele começou –, parei
num sinal vermelho, de repente me apareceu o Papai Noel com dois duendes e uma
rena trabalhada no anabolizante, me apontou um trinta e oito e roubaram o
rabecão.
–
Quê isso, gente? A crise já chegou ao Polo Norte?! – brincou minha mãe.
–
E pelo visto a coisa tá tão feia que Papai Noel e os duendes estão virando
trombadinhas – completou Raul.
–
Vai ver ele teve que mandar o trenó pra oficina e precisava de outro transporte
para entregar os presentes essa noite... – sugeriu Cristiana.
–
Mas um carro funerário?! – indagou Raul. – Com tanto carro importado por aí...
–
Esse Papai Noel não tem muita noção de marketing – comentei.
–
Ao contrário, é um tipo de Robin Hood bizarro: que rouba o carro dos mortos
para levar presentes pros vivos – disse Roberta.
–
É, mas olha o prejuízo que ele me deu – queixou-se meu pai. – E o pior é que
além do rabecão, eles levaram o caixão com o corpo do defunto, e mais a urna
com as cinzas do Seu Vigário que eu fiquei de entregar lá na casa da Dona
Cleide. E agora? Que satisfação que eu vou dar pra Dona Cleide e pra viúva do
Seu Aristides?
–
Bom, pai, a dona Cleide é fácil – disse Raul. – É só sair recolhendo as cinzas
de tudo quanto é cinzeiro pela cidade, bota dentro de outra urna, e faz de
conta que nada aconteceu. Agora o presunto do Seu Aristides... Uma hora ou
outra o Papai Noel vai ter que desovar em alguma vala. É só esperar a polícia
encontrar e devolver pra família. Fala pra viúva ter um pouquinho de
paciência...
–
Quero morrer tua amiga – disse Roberta, espantada com a ideia estapafúrdia do
Raul. – Ou melhor, não quero morrer na tua mão!
–
Espera aí... – interrompeu Cristiana. – Tinha um padre morto dentro do rabecão,
também?
–
Não. Vigário é o sobrenome do sujeito.
–
A Dona Cleide, então, é a mulher do Vigário? – conferiu Cristiana. – Essa deve
ter sido a primeira a romper o silêncio da brincadeira. Vai vendo: essa praga
pega!
–
Não estou muito certo, mas acho que ela era irmã dele... – disse meu pai,
fazendo esforço para se lembrar. – Acho até que não faz muito tempo que eu fiz
o enterro da mulher do Seu Vigário...
–
Vem cá, seu carro não tem rastreador via satélite? – perguntou minha mãe.
–
Tem. Liguei para a empresa na hora, e eles já acionaram o bloqueador. Mas hoje
é véspera de Natal. Vai saber quanto tempo vão demorar para me mandar a
localização.
–
Provavelmente menos do que a polícia – considerou Raul. – Se em dias normais, a
polícia já é devagar, avalia a velocidade de hoje...
– Uma tartaruga manca sendo
rebocada pelo Barrichello! – concordei.
–
Bom, o jeito é esperar. E torcer para acharem rápido, senão o Seu Aristides não
vai ter nem meia hora de velório.
–
A menos que alguém pague mais uma diária de aluguel da sala – disse Raul.
–
Duvido! Pelo que eu percebi a viúva dele é daquelas pessoas que acendem a luz
com um murro para não abrir a mão. Até na hora de pagar o atestado de óbito a
mulher tentou pechinchar. Mais barato que o enterro do Seu Aristides, só
enterro de indigente em saco plástico! Por que você está me olhando com essa
cara, Emanuelly?
Eu
estava franzindo a testa, porque, não acho que eu tenha ficado tanto tempo sem
ver o meu pai, mas de repente notei que ele estava com umas entradas bem
profundas na cabeça, e a saída dos fundos também já estava bem encaminhada.
–
Você ficou tão nervoso por ter sido assaltado pelo Papai Noel que andou
arrancando os cabelos? – perguntei.
–
Até tu, minha filha? – Meu pai fez uma careta, baixando os lábios num canto.
–
Até que demorou – disse minha mãe. – Seu pai já estava começando a ficar calvo
quando a gente ainda era casado!
–
Não tenho culpa! – disse meu pai. – Os grandes sábios da história não tinham
cabelo. Eu estou ficando sábio.
–
Não, você está ficando careca, mesmo, pai! – repliquei.
–
É... Mas eu já tive um cabelão, que nem o desse moço aí. – E apontou para o Pablo com a cabeça, que ostentava um pequeno rabo de cavalo.
–
Esse moço aí é seu novo genro, paizão – dedurou Raul.
–
Estou sabendo – murmurou meu pai, sem expressão.
–
Quando foi que o senhor imaginou que iria ter um genro argentino? – provocou
Raul.
–
Antes um argentino que um corintiano! – disse meu pai, abrindo uma garrafinha
de cerveja, e tampando os ouvidos para se proteger das vaias dos cinco
corintianos presentes na casa: Malu, Raul, Roberta, Cristiana e eu.
Meu
pai sempre foi o único palmeirense em casa, e sempre gostou de nos provocar.
Dizia que não sabia o que tinha feito de errado para ter três filhos
corintianos – quatro, na verdade, porque não vamos nos esquecer da Babi, o contrabando
recém-descoberto, de treze anos de idade, que, como nós, também veio ao mundo
com um coração sofredor. Só a mamãe nunca gostou de time nenhum.
–
Falando nisso, Diego – disse
Cristiana, dirigindo-se ao argentino –, seu nome não é Diego?
–
Non – respondeu ele. – É Pablo?
–
E por que nunca me corrigiu quando eu te chamava de Diego?
–
Porque me disseram para non te
contrariar – ele disse, com seu forte sotaque argentino, apontando para
Roberta, que já se protegia detrás de um prato erguido como um escudo,
embarcando numa gargalhada.
–
Vai ter volta, tá, amiga! – prometeu Cristiana, rindo também.
–
A Adalgisa te ligou, filha? – perguntou papai, voltando-se para mim.
Adalgisa
é minha mãe biológica, com quem meu pai teve um caso no início de seu casamento
com a Vera, mãe do Raul e da Roberta, e que quase causou sua separação. Aliás,
o que manteve minha mãe casada com o meu pai naquela época foi justamente a
descoberta de que estava grávida da minha irmã, que acabou nascendo três semanas depois de mim.
E
o fato de eu me referir à Vera como minha mãe, e não à Adalgisa, é muito
simples: Adalgisa nunca me quis. Depois que eu nasci, ela fez um acordo com o
meu pai: ele me criou, e ela seguiu com sua carreira de cantora de cabaré.
Então, eu meio que não considero muito o nosso parentesco. Respeito-a; exceto
quando ela se dá a liberdade de trocar o meu nome, me chamando pelo que ela
supostamente tinha escolhido para mim, antes de decidir que não queria me
criar.
–
Não – respondi, tentando não fazer uma careta incomodada. – Como sempre, ela só
vai lembrar que é Natal lá pelo dia vinte e oito... De janeiro!
–
Não esquenta, Regina. Ela é meio doida, mas te ama – disse meu pai. – Do jeito
dela...
–
O jeito dela é muito esquisito. E não me venha com essa de Regina... – Eis aí,
o nome que ela supostamente tinha escolhido para mim.
–
Convenhamos: Regina é muito melhor do que Antonella – comentou Raul, dando uma
olhada de esguelha para a mãe.
–
Eu achava o nome lindo, na época – disse Vera, na defensiva.
Quando
decidiu perdoar meu pai e ajudá-lo a me criar – depois de Adalgisa ter tirado o
corpo fora –, meu pai, em retribuição, permitiu que Vera escolhesse meu nome,
sem nenhuma interferência, e ela, talvez ainda magoada por causa da traição,
talvez com um – creio que há muito superado – espírito vingativo alojado no
coração, decidiu chamar-me de Antonella.
Pessoalmente, não acho o nome tão ruim... Se fôssemos argentinos! Mas aqui o
nome não é tão comum assim, e as crianças na escola – aqueles pequenos demônios
indomáveis e cheios de maldade no coração, camuflada pelas carinhas inocentes –
tinham a mania de pegar só a primeira parte do meu nome para me zoar. Os
apelidos variavam de Antonilda a Antonieta, Antolina, Antológica –
essa foi uma criança com uma mente um pouco mais desenvolvida, e que, por
influência do capeta abriu o dicionário na página errada –, e, o favorito da
maioria, “a anta é ela”. Como eu
odeio esse nome!
Aliás,
fica aqui o apelo: vamos logo tratar o bullying
como o que de fato é, uma agressão hedionda, e puni-lo criminalmente, não
importando a idade do infrator!
Voltando
ao assunto, Vera já se desculpou há séculos por esse lapso de humanidade, e até
se propôs a pagar a mudança definitiva nos meus documentos, mas acho que a pior
fase da minha vida já passou. Agora, só revelo esse nome horrível para quem tem
alguma importância na minha vida. Para todos os efeitos, sou Emanuelly: é meu
nome artístico, pseudônimo, apelido, alterego... Enfim, chamem como quiser.
Quanto
à Regina, nada contra o nome,
propriamente; apenas me incomoda a hipocrisia de dona Adalgisa, ao tentar me
convencer de que em algum momento ela se preocupou em escolher um nome para
mim. Porque, se a pessoa tem a intenção de abandonar o filho, não se dá o
trabalho de escolher um nome para ele, certo?
–
Bem, mudando de galinha para porca, vocês vão na casa da Vilma hoje à noite? – perguntou meu pai, dando uma
risadinha.
Ao
que Vera lhe deu um olhar zangado. A palavra porca sempre aparecia na conversa quando alguém mencionava a tia
Vilma, de uma forma ou de outra.
–
Com todo o respeito... – acrescentou ele, defendendo-se.
–
Sei... Com respeito... – desdenhou Vera. – Acho que só vamos a Roberta, o Pablo
e eu, porque o Raul vai pra casa da Fabiana, e a Manu vai passar o natal com os
amigos.
–
Quem é Fabiana? – perguntou meu pai. – O nome da sua namorada não era Renata?
–
Acho que era Danielle, amor – comentou Malu.
–
Era Letícia – corrigiu Raul. – Mas com ela não era nada sério.
–
E com essa Fabiana é sério? –
inquiriu meu pai, erguendo uma sobrancelha para Raul.
–
O tempo dirá.
Resumo:
não!
Desisti
de acompanhar a vida amorosa do Raul há uns doze anos. Não guardo mais o nome
de nenhuma “namorada” que ele me apresente, a não ser que, por alguma razão,
nos tornemos amigas. Para facilitar a vida, chamo todas elas de flor ou cunhadinha. Assim eu não corro o risco de cometer alguma gafe; como
chamar a Renata de Letícia, ou a Danielle de Mariana – o último nome que me
lembrava de uma “namorada” do Raul.
–
O almoço está servido – anunciou Vera, ao terminar de pôr a mesa.
Não
que nós fôssemos nos sentar à mesa para comer. Afinal, éramos oito pessoas para
nos espremer numa mesa para quatro, com nossos pratos e copos disputando espaço
com as travessas que minha mãe faz questão de utilizar no natal. Assim, nos
servimos, e nos espalhamos pela sala de estar. Raul ligou a televisão num desses
filmes natalinos que passam todo ano na TV a cabo, só para fazer fundo às
conversas, e começamos a degustar o almoço.
–
Vai ter festa no teatro de novo, Manu? – perguntou Malu, colocando o copo de
refrigerante ao lado da garrafinha de cerveja do meu pai na mesinha de centro,
recostando-se com o prato na mão numa cadeira trazida da cozinha.
–
Não. Esse ano diminuiu o número dos rejeitados, então, vamos fazer uma festinha
no nosso apartamento, mesmo.
–
Obrigado pela preferência – riu-se Raul, dando-me uma alfinetada por ter usado
a palavra “rejeitados”.
–
Você entendeu o que eu quis dizer – retruquei.
Cristiana
e eu fazemos parte de um grupo de teatro semi-independente – porque não
gostamos de utilizar a palavra “amador” – que se apresenta três vezes por semana
num velho casarão em Santo André, que era uma herança de família do Otávio
Serqueira, empresário teatral que já era conhecido do Leandro Bittencourt –
vulgo Casanova, de quem já falei anteriormente. A casa estava praticamente
abandonada, e nenhum dos herdeiros tinha intenção de vendê-la ou usá-la. Então,
quando Leandro apresentou os projetos do grupo de teatro que tinha fundado com
outros amigos, e que ainda engatinhava na época, apresentando-se em praças e
escolas, ele gentilmente concordou em nos ceder o espaço para apresentar nossas
peças, em troca de uma porcentagem na venda dos ingressos.
A
princípio, apresentávamos as peças num pequeno palco de madeira construído no
salão de bailes estilo imperial que a casa possuía, e o público nos assistia em
cadeiras de plástico usadas que conseguimos como doação de diversas partes.
Mais tarde, quando percebeu que as peças estavam indo bem, o Otávio decidiu
investir numa pequena reforma do casarão, que consistiu basicamente em
transformar aquele salão num pequeno auditório para cento e cinquenta
espectadores no total, com direito a uma galeria, quatro camarotes laterais, e
um palco de concreto com alçapão que permitiu um upgrade nos nossos espetáculos.
O
teatro Máscaras acabou se tornando uma espécie de cartão-postal da cidade, e
contou até com a presença do Prefeito para a inauguração oficial após a
reforma, com notas e reportagens em diversos jornais. Uma história admirável de
recuperação de um patrimônio abandonado e de investimento cultural.
Ao
contrário, porém, do prestígio que nosso pequeno teatro ganhou, os atores do Grupo
Máscaras continuam sendo marginalizados por suas famílias, que continuam nos
considerando boêmios e sonhadores, e que não levam a menor fé em nossa arte,
muito menos em nossas carreiras.
A
maioria, inclusive, mora muito distante da família. Naturalmente não é o meu
caso. Minha família mora perto – mamãe na Vila Ema, papai em São Caetano, eu e
Cristiana na Vila Carrão –; e, se não levam fé que um dia eu posso acabar indo
parar em Hollywood e ganhar um Oscar, também não menosprezam de todo a minha
arte. Minha mãe, por exemplo – a Vera, é claro; não a Adalgisa –, assiste a
todas as minhas peças, assim como meu pai, quando não está muito atolado no
trabalho. Mas lá no princípio de tudo, ninguém realmente acreditava que eu
fosse conseguir me sustentar só fazendo teatro.
E
talvez não tivesse conseguido, realmente, se não me apresentasse também em
outros lugares, fazendo stand-up comedy,
cantando em bares, e escrevendo e adaptando textos para companhias de teatro
mais relevantes. E se o aluguel no Edifício Toscano não estivesse um pouco
abaixo do mercado...
Mas
deixe isso pra lá. O que eu estava explicando era que a maioria dos meus
colegas do teatro não conta muito com o apoio das famílias, ou mora muito
distante deles, de modo que acabam se sentindo meio sozinhos nessa época do
ano. Por isso que, no ano passado, nós reunimos todos os “rejeitados” para
passar a noite de natal no casarão. Fizemos a ceia lá mesmo – no salão onde
realizamos as festas e os ensaios de dança –, um amigo secreto, estouramos
champanhe... Enfim, fizemos uma pequena bagunça – totalmente autorizada pela
diretoria do grupo, é claro.
Mas
esse ano decidimos encerrar as apresentações mais cedo, e quase todo mundo
acabou fazendo um esforço a mais para viajar e ver os parentes distantes. Só
restou pouco mais de meia dúzia de pessoas sem planos para o natal, então,
decidimos reunir a galera no nosso apartamento – porque a maior parte dessas
pessoas mora no nosso prédio, e nosso apartamento é o menos atulhado –, e fazer
uma festinha.
E
o motivo de eu me encontrar nessa lista dos “rejeitados” é que, como foi citado
anteriormente, mamãe, Roberta e Pablo vão passar o natal na casa da tia Vilma,
e obviamente, tia Rosália estará por lá também – já que a velha mora no mesmo
quintal –, e eu não estou a fim de estragar o meu natal. Como já disse, não
gosto da tia Rosália, ela sempre me maltratou, e sempre deixou muito claro que
eu era uma intrusa em sua família. Não tenho certeza se ela era má comigo
porque eu não sou filha biológica da sua sobrinha, ou se era algum tipo de
amargura pessoal, porque os filhos dela morreram muito jovens num acidente de
carro. Talvez ela só quisesse um bode expiatório, alguém para descontar suas
frustrações e suas mágoas, mas ela que procurasse outro bode; não tenho
obrigação de me oferecer em sacrifício.
–
Aliás, me faça um favorzinho, filhota? – pediu meu pai.
Assenti.
–
Tente não ser presa hoje.
–
Vocês nunca vão conseguir esquecer isso, né? – reclamei, na defensiva.
Ano
passado eu fui presa na véspera de natal, porque, resumindo ridiculamente, eu
fui apanhada pilotando um trenó roubado do Papai Noel. Na verdade, o trenó era
só uma carruagem normal puxada por duas renas; e nem me pergunte onde foi que o
sujeito arrumou aquelas renas, mas a produção toda fazia parte de uma promoção
do shopping local, que oferecia aos clientes – às crianças, principalmente – um
passeio de dez minutos no trenó do Papai Noel a cada duzentos reais em compras.
Mas, em minha defesa, eu não tenho culpa se o cidadão largou o trenó
estacionado bem na saída do estacionamento atrás do casarão, obstruindo a
passagem dos carros, com as rédeas no contato, e foi encher a cara de cerveja
no boteco ali em frente. Tudo o que eu fiz foi subir no trenó, e... Qual é o
termo correto? Dar a partida?... Enfim, dei uma sacudida nas rédeas para fazer
as renas se mexerem, e afastar um pouquinho aquela bugiganga para a gente poder
tirar os carros e ir para casa. Afinal, já eram quatro horas da manhã! Daí
alguém avisou o sujeito que o trenó estava andando, ele começou a correr atrás
de mim, chamou atenção de uma viatura que vinha passando, e, até explicar que
urubu não é papagaio, acabamos passando o resto da noite na delegacia.
Felizmente, o Bom Velhinho acabou não formalizando a queixa no final das
contas, e eu considerei esse ato de bondade como meu presente de natal, vindo
diretamente do Polo Norte – que, excepcionalmente naquela noite, estava com uma
filial aberta no boteco da esquina. Mas aparentemente esse ano ele decidiu
descontar roubando o carro funerário do meu pai. Se continuar nesse ritmo, o
próprio Papai Noel vai acabar sendo incluído na lista das crianças malvadas. E,
pensando pelo lado bom, no futuro eu certamente terei muitas histórias boas
para contar aos meus netos no natal.
–
Bom, do jeito que as coisas andam, passar o natal na delegacia está virando uma
tradição de família, não é, pai? – alfinetei.
–
E arrumar briga com o Papai Noel também – acrescentou Raul. – Cuidado, senão a
gente nunca mais vai ganhar presente de natal, hein! Papai Noel vai passar
longe da nossa chaminé.
–
Besteira! – bufou Roberta. – Nós não temos chaminé.
–
Da varanda, que seja – Raul deu de ombros.
–
Nossa família já está na lista negra do Papai Noel desde muito antes de vocês
nascerem – disse mamãe. – Já contei para vocês sobre o nosso primeiro natal
depois de casados? Quando o seu pai foi fazer um show em Santo Amaro; o show
terminava às dez, ele ia pegar uma carona pra chegar em casa antes da
meia-noite; chegou em casa cinco horas da manhã caindo de bêbado e fedendo a
urina!
–
Já contou um milhão de vezes – disse meu pai. E arrematou com uma risadinha. –
O pior é que o bêbado era eu, mas quem estava vendo coisas era você.
–
Ficou doido?! – indagou mamãe.
–
Me chamou de bonito.
–
Não te chamei de bonito. Foi uma crítica, com desdém. Bonito, hein?!
–
Agora você vê... E eu passei todos esses anos todo orgulhoso pensando que você
estava falando de mim...
–
Rá! Palhaço...
Havia
um ponto de interrogação gigantesco no rosto do Pablo, enquanto ele ouvia
Roberta explicar aos sussurros do quê mamãe estava falando. Claro que, de
primeira, todo mundo fica confuso ao ouvir que meu pai chegou em casa bêbado e
fedendo a urina depois de um show.
Isso é muito natural, porque a maior parte das pessoas – especialmente as que
têm menos de trinta anos ou não nasceram no Brasil – não sabe ou não se lembra
que meu pai já foi músico.
Foi
no final dos anos 1980, o auge do rock brasileiro. Meu pai era o guitarrista da
banda Vagabundos S.A., que não chegou a ser um fenômeno, mas fez relativo
sucesso com os dois primeiros discos. Por causa do sucesso da banda, meu pai
era muito assediado pelas mulheres. Minha mãe sempre tenta nos convencer de que
não tinha ciúme, mas sabemos que isso não é completamente verdade. Fica até
difícil acreditar nisso, porque, como é de conhecimento público, meu pai nunca
valeu um vintém! Tanto é que, Raul não tinha nem dois aninhos quando eu aconteci, e isso quase o separou da
Vera. O que acabou por convencê-la a perdoar seu deslize – que ele sempre
alegou ter sido o único em todo o tempo que ficaram casados –, foi a descoberta
de que a Roberta estava a caminho. Mamãe ficou apavorada com a ideia de ficar
sozinha com dois filhos pequenos. Não aquela insegurança causada pela falta de
um homem ao seu lado, mas uma espécie de culpa por criá-los longe do pai. E
além disso, ela o amava demais, e estava realmente disposta a lutar pelo
casamento.
É
desnecessário dizer que não deu certo, afinal, já mencionei que meu pai viera
almoçar conosco trazendo sua terceira esposa. A banda acabou em 1996; Roberta e eu éramos bebezinhas
ainda, e meu pai percebeu que, se Vera estava realmente disposta a lutar pela
família, ele tinha que mudar alguns hábitos também. A música não era um
problema, mas o assédio da mulherada, sim. Especialmente porque meu pai, como
eu disse, não tinha um autocontrole assim tão bom. Então ele decidiu sair da
banda e procurar um trabalho mais normal.
Por
uma cadeia de circunstâncias complicada demais para ser relacionada neste
momento, ele acabou se tornando agente funerário, primeiro numa firma lá no
centro da cidade, e mais tarde, na periferia, num negócio próprio. Foi o antigo
patrão dele na funerária lá do centro que o convenceu de que esse era o melhor
negócio para ele investir o dinheiro que tinha guardado dos tempos da banda,
pois nunca falta cliente, não existe crise nesse tipo de negócio, o cliente não
reclama, e nunca tenta devolver a mercadoria. Tenho a impressão de que o
sujeito dissera tudo isso para que meu pai investisse na funerária dele, mas meu pai pegou a dica do cara,
percebeu que ele tinha razão, e decidiu investir no próprio negócio.
Não
sei se ele chegou a se arrepender por ter entrado
nesse ramo, mas sei que ele sentiu falta da música todos esses anos. A
guitarra dos Vagabundos S.A. passou a ser usada somente nos churrascos e festas
de aniversário da família; o violão se tornou um companheiro das noites de
insônia, e até hoje fica guardadinho num canto no escritório da funerária, e
ele toca sempre que fica muito tempo sozinho lá dentro. Desconfio que ele faz
isso para espantar um pouco a melancolia do lugar.
O
caso é que, mesmo nunca tendo reclamado de sua mudança de profissão, papai não
estava completamente feliz. Outros problemas apareceram para perturbar o
casamento dele com a Vera, problemas mais complicados que a fraqueza dele por
mulheres, e, no fim, o divórcio acabou sendo inevitável. Eu tinha sete anos
quando aconteceu. Cheguei a pensar, por um momento, que teria de ir embora com
o meu pai, mas a Vera não permitiu que ele me levasse. Disse que eu era filha
dela também, e que ela não abriria mão de nenhum dos filhos. Acho que nunca
contei para ela que naquele dia o motivo do meu choro não era bem o fato de o
meu pai estar indo embora – bem, eu chorei por isso também, é claro –, mas
porque, ao ouvi-la dizer essas coisas – quando ela não sabia que eu estava
ouvindo –, eu senti, pela primeira vez, que ela tinha perdoado o fato de eu não
ter nascido dela, e que ela me amava de verdade. E aquilo foi o mundo para mim,
porque eu também a amava.
Mas,
voltando à noite de natal em que meu pai chegou bêbado em casa, e que Roberta
estava contando para o Pablo aos cochichos, mamãe estava grávida do Raul na
época, e meu pai prometera chegar antes da
meia-noite. Só que os rapazes da banda terminaram o show, e o dono do bar
ofereceu uma rodada de bebidas de cortesia, por ser véspera de natal, e meu pai
decidiu tomar um Martini. E antes de concluir esse relato, é preciso esclarecer
que meu pai nunca foi muito forte para bebidas, e nunca tinha tomado Martini
também. Resultado: o negócio bateu e subiu num segundo. E não bastasse uma
dose, meu pai decidiu tomar seis! Daí ele começou a contar piada, rir à toa,
dançar em cima do balcão do bar, fingindo tocar uma guitarra invisível... Até
aí, tudo bem. Mas quando ele começou a tirar a roupa, o dono do bar decidiu dar
um basta e colocou todo mundo para correr – todos os membros da banda, quero
dizer.
Ninguém
estava em condições de dirigir naquela noite. O empresário deles já tinha ido embora no carro que levava os
instrumentos, porque não quis participar da rodada de birita grátis, justamente
para não tomar um esporro da patroa por não aparecer em casa na véspera de
natal – Vera sempre reclama porque meu pai não teve esse bom senso –, então
eles tiveram que pegar um ônibus. E como já era madrugada de natal, eles eram
os únicos passageiros a bordo, além de um cara fantasiado de Papai Noel, que
devia estar voltando de alguma festa ou evento. E como estavam para lá de
Bagdá, meu pai e os colegas da banda começaram a fazer bagunça lá no fundo, e a
mexer com o coitado do Bom Velhinho, cantando trechos de “eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel” e “Jingle bell, jingle bell, acabou o papel”...
Mas aí quando alguém insinuou que o que era para limpar era o do Papai Noel, o
velhinho levantou e começou descer o sarrafo nos baderneiros. Claro que ninguém
poderia imaginar que, por baixo de toda a espuma da pança do Bom Velhinho
existisse um cara anabolizado e faixa preta em Jiu-Jitsu! Os Vagabundos S. A.
tomaram uma surra monumental do “Papai Noel”, e foram definitivamente incluídos
na lista das crianças malvadas que jamais ganharão presentes de natal. Apesar
de que eles ganharam um. Só não ficou muito esclarecido de quem eles ganharam –
se deles próprios ou se foi obra do Papai Noel também. Meu pai muda a versão
cada vez que minha mãe toca no assunto. O que sabemos, com certeza é que,
batuque vai, batuque vem, porrada vai, porrada vem, alguém tinha muito álcool
na ideia, e muito líquido na bexiga... Até hoje não sabemos quem foi que urinou
em quem. O fato é que meu pai chegou em casa com xixi em partes da roupa em que
não era possível que fosse tudo dele.
Então
quando ele chegou em casa cinco horas da manhã, ainda mamado, com aquele futum
horroroso, minha mãe abriu a porta, olhou bem para a cara bêbada dele, deu uma
filmada em suas roupas imundas, e alfinetou: “bonito, hein!”. E qual foi a reação do meu pai? Pedir perdão?
Desabar em lágrimas? Claro que não! Ele simplesmente se sentou no degrau da
porta, e rachou o bico de tanto rir. Não que ele estivesse debochando do mau humor
da minha mãe, ou achando a situação tão engraçada; o caso era que o Martini
ainda estava fazendo efeito.
–
Foi muito engraçado – riu-se meu pai, quando Roberta terminou de contar a
história ao namorado.
–
Foi vergonhoso! – contradisse minha mãe. – Eu passei o natal sozinha, enquanto
esse Zé Ruela estava na farra, enchendo a cara, e ainda por cima arrumando
briga na rua.
–
Eu não arrumei briga nenhuma! – defendeu-se meu pai. – Não foi culpa minha se o
gerente nos expulsou do bar.
–
Ué... Então quem foi o Domingos Nogueira, seu xará, que começou a fazer Strip-tease no balcão? – indagou minha
mãe.
–
E quem foi que tomou uma coça do Papai Noel no busão? – acrescentou Raul.
–
Eu estou começando a achar que o velhinho não
tão bom assim não vai com a minha cara: já me bateu, já mandou minha filha
pra cadeia, agora roubou meu rabecão... E nunca me deu um videogame.
–
Pobrezinho... – desdenhou Malu.
–
Pensando bem, que bom que nós não temos chaminé – disse Raul –, porque, do
jeito como a nossa família gosta de aprontar com o Papai Noel e ele conosco, eu
não estranharia se um dia ele entrasse pela chaminé, e caísse na lareira acesa.
–
Quem deixa a lareira acesa em pleno verão? – perguntei.
–
Esse é o ponto! – disse Raul. – Quem é que apanha do Papai Noel? E ainda quer
que ele te dê um videogame, paizão? Faz mais barato...
–
A gente precisa fazer as pazes com o pessoal do Polo Norte. Porque do jeito que
a coisa vai, qualquer hora eu vou ter que adotar um elfo órfão para tentar sair
da lista negra do velho.
–
Acho que só daria certo se você fosse a Angelina Jolie, paizinho – comentou
Roberta.
Na
verdade, acho que nossa família precisaria adotar toda a população de órfãos e
refugiados da África se quiséssemos tentar o acesso para fora da lista negra do
Bom Velhinho. Porque pouca gente já teve tantos contatos imediatos surreais com
o Papai Noel quanto a nossa família.
Pensando
bem, acho que ninguém teve tantos contatos imediatos surreais com o Papai Noel
quanto nós. Dia desses ele vai fazer uma greve, e nós seremos as pessoas mais
odiadas do planeta.
Terminamos
de almoçar tranquilamente, distribuímos e recebemos lembrancinhas de natal,
pedi que meu pai desse notícias sobre o resgate do rabecão e a eventual prisão
do Papai Noel e seus capangas, e então Cristiana e eu voltamos para casa para
fazer os preparativos da noite.
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