Se Contar, Ninguém Acredita No Que Aconteceu Nesse Natal – Parte 1: Parece Que Nem Todo Mundo É Filho de Papai Noel...

em quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Por Talita Vasconcelos
Natal é uma das minhas datas favoritas no ano, porque é sempre aquela época em que você deixa tudo de lado e se permite aproveitar a vida, e cometer todos os excessos que não cometeria normalmente, ao seu bel prazer: tira folga do trabalho, ou férias coletivas – a menos que trabalhe no comércio –, dá uma trégua na dieta, tira o escorpião da carteira e finalmente cria coragem para comprar aquele sapato que você está namorando há meses, mas sabe que é caro demais para o seu orçamento... E se pá, ainda rola aquela viagenzinha com os amigos ou com a família para algum lugar bem bacana. Sem falar no panetone, no peru, na rabanada, e nas toneladas de chocolate sem culpa que você se permite comer, para só se arrepender lá pelo dia três de janeiro... Enfim, Natal é uma data em que quase tudo é permitido. E em que as melhores histórias acontecem. Inclusive as mais inacreditáveis...
Pinheirinho que alegria! Trá lá lá lá lá, lá lá lá lá... Sinos tocam noite e dia...
– Nossa, quanta animação logo cedo! – comentou Cristiana, entrando na sala do apartamento, ao me ouvir cantando na cozinha enquanto virava as panquecas para o café-da-manhã de Natal. – Tem mais alguém aqui?
– Comigo, não. Com você...?
– O Pedrão só vem mais tarde. Mas, e aí? Qual é o motivo de tanta animação?
– Como assim? É Natal!
– É, mas para você amanhecer assim, cantando... A que horas o seu bofe vai chegar?
– Já te falei que não tem bofe nenhum!
Nesse momento, enquanto eu tirava as panquecas da frigideira, a campainha tocou. Cristiana foi atender, e depois de falar durante aproximadamente um minuto com alguém que começou perguntando por mim, ela fechou a porta, e trouxe uma cesta enrolada em celofane transparente, com um laço vermelho, até a bancada da cozinha. Dentro dele havia um ursinho de pelúcia branco.
– O Ninguém te mandou isso aqui – disse ela, com aquele sorriso “te peguei” no rosto.
Coloquei o prato de panquecas na mesa, e fui abrir meu presente, um tantinho constrangida. O ursinho tinha um cachecol vermelho e dourado no pescoço, com um pequeno enfeite natalino no centro, e um gorrinho vermelho. Ao redor dele, preenchendo o conteúdo da cesta, dezenas dos meus bombons favoritos.
– E aí? – insistiu Cristiana. – Ninguém tem nome?
– Amor, a fantasia é sua! – Eu não iria dar o braço a torcer. – Escolhe qualquer nome: Fulano de Tal, Sicrano de Etecetera, Beltrano de Assim Por Diante...
– Ahã! – Ela ergueu meu ursinho da cesta e começou a movê-lo diante do meu rosto, fazendo uma vozinha tola, como se ele estivesse falando: – E quem me mandou para você foi o Fulano de Tal, o Sicrano de Etecetera, ou o Beltrano de Assim Por Diante?
– Os três!
– Ok! Fica aí escondendo o jogo! Mas eu aposto que até o fim da noite eu consigo descobrir quem é esse teu bofe.


– Ah, é? E como você vai descobrir, hein, Cristiana Holmes?
– Vocês estão saindo há... O quê? Duas semanas?
Dei de ombros.
– E ele te mandou um ursinho e um monte de bombons logo cedo na véspera de Natal... – prosseguiu Cristiana. – De duas uma: ou ele está muito apaixonado, ou já te conhece há séculos. Ou as duas coisas! Eu sou capaz de apostar que ele vai aparecer por aqui hoje.
– Bom, se você vai apostar, me faça a gentileza de apostar dinheiro; e aposte alto, porque você vai perder!
– Veremos!
Ela colocou o ursinho de volta na cesta.
– Vamos almoçar na sua mãe hoje? – indagou Cristiana.
– Vamos.
– Não esquece que a gente tem que voltar cedo.
Esse ano, a festa de Natal da galera seria no nosso apartamento. Viriam umas oito ou nove pessoas, cada um traria um prato, e nós trocaríamos os presentes do amigo secreto. E como ninguém se arriscaria a carregar um peru assado pela cidade em plena véspera de Natal, ficou decidido que nós assaríamos o bicho – que foi comprado pelo Leandro, nosso produtor teatral – aqui em casa, mesmo.
– De preferência, antes que a tia Rosália resolva aparecer – assenti.
Tia Rosália é tia da minha mãe, e a única parente daquele lado da família de quem eu não gosto. Os motivos são muitos; para simplificar: ela gosta de torturar criancinhas. Esse tipo de trauma não se apaga com o tempo...
– Aproveita o almoço natalino para contar para a sua família sobre o seu novo namorado – provocou-me Cristiana, passando geleia nas panquecas.
– Claro... Aproveito e conto também que o seu pai está na cadeia – retruquei. Mas é claro que eu estava brincando.
– Ele é carcereiro! – replicou Cristiana.
– Eu não vou entrar em detalhes.
E Cristiana me atirou, de brincadeira, o papel amassado de um bombom.
– Só espero que o seu namorado misterioso não seja o Casanova.
– Não, mesmo!
Casanova é o apelido do Leandro, e é autoexplicativo: é mais fácil acompanhar a vida amorosa do Fábio Jr. do que a dele.
Saímos de casa pouco depois do café-da-manhã. Minha mãe estava no telefone quando chegamos à casa dela. Abriu a porta com o aparelho grudado na orelha, dando risada, e gesticulou para que entrássemos, jogando beijos silenciosos para nós. Minha irmã Roberta estava na cozinha, retirando o assado do forno, e rindo de alguma coisa também.
– O que é tão engraçado? – perguntei à minha irmã.
– Se eu entendi bem, a Claudete levou marmita para almoçar na casa da tia Vilma – disse Roberta.
Claudete é a esposa do meu primo Ari. Depois de uma série de roubadas, e de namorar espécimes de toda a fauna brasileira, ele acabou se casando com a ex-mulher de dois dos seus amigos (sem brincadeira!), já mãe de três filhos, e atualmente à espera do quarto.
– Está certa ela – comentei. – Se a tia Vilma tiver feito costela, o que será que a Claudete vai ter primeiro: um infarto ou o bebê?
– Por quê? – perguntou Cristiana. – O que tem na costela da sua tia?
– Três toneladas de gordura! – respondeu Roberta.
– Já te falei disso, lembra não? A costela gordurosa da tia Vilma? Carinhosamente conhecida como moqueca de quenga.
Minha mãe sibilou pedindo para baixarmos a voz, ainda com o telefone grudado na orelha, provavelmente com medo de que a minha tia ouvisse o apelido carinhoso que demos a um dos pratos mais tradicionais de sua culinária. Não lembro exatamente quem foi que deu esse apelido à gororoba – se fui eu, meu irmão Raul, a Roberta ou o próprio Ari –, mas o apelido pegou, e hoje em dia, todo mundo na família o conhece. Bem, todos, menos a tia Vilma...
– Ah, lembrei – disse Cristiana, recuperando-se de uma gargalhada. – Vem cá, a Claudete ainda não ganhou neném? Ela está de quantos meses? Dezoito?
– Pelo que ela falou, deve nascer até o final da semana que vem – disse Roberta.
– Mas já sabem o que é?
– A gente acha que é humano – disse Roberta. – Pelo menos, estamos torcendo por isso...
– Em todo caso, já compramos a jaula! – disse Raul, vindo do corredor, com o cabelo molhado, exalando perfume e terminando de abotoar a camisa, a tempo de acompanhar a conversa.
– Coitada, gente! Ela nem é tão feia – defendeu Cristiana, enquanto Raul lhe dava um beijo na bochecha, vindo me abraçar em seguida.
– Considerando as crias daquela mulher, é melhor prevenir – disse Raul. – Não se esqueça de que a última coisa que ela pariu foi o filhote do Curinga. Já viu a fuça daquela criatura? Vai que aquilo morde...
– Ué... É uruguaio? – indagou Cristiana.
– Tá ficando velha essa piada! – repliquei, dando risada.
Filhote do Curinga é o apelido carinhoso que o Raul deu ao Jason, filho mais novo da Claudete. Na verdade, ele nem é tão feio assim... Ele só tem as orelhas do Dumbo, nariz de batata e quatro quilos de beiço... Para ser o vilão do Batman só faltou a maquiagem, mas, tirando isso, até que ele é bem ajeitadinho.
– É só para não perder o costume – disse Cristiana, referindo-se à piada sobre o garoto ser uruguaio.
– Eu ouvi vocês falando sobre a moqueca de quenga da tia Vilma... – disse Raul. – Tomara que, além da marmita, a Claudete tenha levado também a louça, porque já sabe como é a casa da velha...
– Como é a casa da sua tia? – perguntou Cristiana, fingindo inocência.
– É o tipo de casa que não dá para comer.
– De fato, comer blocos de concreto não parece muito saboroso – adicionou Roberta.
Onde não dá para comer – corrigiu Raul, dando risada e bagunçando o cabelo da nossa irmã.
– Na casa da tia Vilma se adoça café com arroz azedo – comentei.
– Que horror! – exclamou Cristiana.
Apesar de sermos amigas há anos, Cristiana só conhece uma pequena parte da minha família. Tia Vilma pertence à parte que não dá muita coragem de assumir como parente.
Tudo bem que toda família tem seus espécimes malucos, mas a minha abusa! Se um dia o Ibama decidir fiscalizar, eu não quero nem imaginar o tamanho da multa que vai dar, porque o que não falta na minha família é bicho ilegal: tem preguiça, tem anta, porco, veado, piranha... Tem de um tudo!
– Eles deixam o coador de pano dentro da lixeira da pia, e não lavam antes de usar – explicou Raul. – Vão passando um café por cima do outro. Aí você olha no fundo do copo acha grão de arroz azedo, casca de cebola, semente de laranja... É uma nojeira!
– Eu, hein... – murmurou Cristiana, livrando-se de uma ânsia de nojo.
E foi quando minha mãe finalmente desligou o telefone e anunciou que a tia Vilma nos desejara um feliz natal.
– Quando eu estiver falando com alguém no telefone, e vocês quiserem falar mal dessa pessoa, façam o favor de falar baixo! – ralhou, chegando-se à cozinha para mexer as panelas, cujo fogo Roberta acabara de desligar.
– Relaxa, mãe! – disse Raul. – Garanto que ela não ouviu.
– Sorte de vocês que a Vilma é meio surda...
Meio surda era a Bizantina da Praça é Nossa! – replicou Raul. – A tia Vilma é um caso de polícia!
– Seja lá como for! Não é por isso que a gente pode malhar a velha e ficar chamando a coitada de porca enquanto ela está do outro lado da linha.
– Só para ficar registrado: ninguém aqui disse a palavra porca – esclareci. – A gente só comentou que ela faz café temperado com tudo o que estiver no fundo da lixeira.
– Muito engraçadinha, dona Emanuelly...
– E o papai? – perguntei. – Achei que ele vinha almoçar com a gente...
– Seu pai ligou agora a pouco, também – disse minha mãe. – Roubaram o carro da funerária, e ele foi pra delegacia registrar ocorrência.
Já contei que meu pai é agente funerário? Não contei, não? Bem, agora contei!
– Mas ele está bem? – perguntei, preocupada.
– Tirando o susto e o prejuízo, está.
– Fazer B.O. na véspera de Natal...? Será que ele consegue sair da delegacia antes do Réveillon? – comentou Cristiana.
– Vai saber...
– Eu duvido que ele saia cedo de lá – disse Raul. – Melhor não esperar para almoçar.
– Foi o que ele disse ao telefone – concordou minha mãe. – Aliás, o almoço já está pronto. Só vamos esperar o Pablo chegar com os refrigerantes.
– Quer dizer que o namoro está ficando sério, então? – perguntei à Roberta.
– Você tinha dúvida? – indagou minha irmã.
– Pablo... Pablo... Pablo...? – ficou repetindo Cristiana, tentando se lembrar.
– A Roberta está namorando um argentino – disse minha mãe.
– Ninguém é perfeito – brincou Raul.
– Você conhece, Cristiana! – disse Roberta. – Aquele amigo argentino da Manu que ficou hospedado com vocês na Copa do Mundo.
– Pablo...? Não lembro, não – disse Cristiana. – Eu lembro de um argentino com duas asas tatuadas no pescoço...
– É ele! – afirmei.
– Ih, gente! Então por que eu passei a Copa inteira chamando esse cara de Diego?
– Porque você é maluca! – disse Roberta, rindo.
– E eu pensando que ele era namorado do Mário... – comentou Cristiana, sem a menor cerimônia.
– Que Mário? – perguntou Roberta, com uma inocência que chegou a beirar a ingenuidade. Percebeu em seguida o erro cometido, porque começou a corar, enquanto todos tentávamos conter as risadinhas.
– Vou deixar essa passar, só porque hoje é Natal... – disse Cristiana, mal segurando a risada. – O Mário é aquele italiano que ficou amigão dele na Copa; os dois não se desgrudavam... Depois ainda tirou sarro, porque o Diego ficou a Copa inteira relembrando histórias do Maradona e falando do Messi, que os melhores jogadores do mundo são argentinos, e não sei mais o quê... E depois o italiano, de pirraça, se gabou de ser xará do autor do gol do título da Alemanha.
– E não vamos nos esquecer que o título da Alemanha foi praga da Emanuelly – lembrou Raul.
– Como é que eu ia saber que o anjo do ex-Papa ia falar amém? – defendi-me.
Ok, eu confesso: fiquei encantada com a seleção alemã desde o primeiro jogo; mas quando eu disse que eles ganhariam a Copa, eu falei da boca pra fora. Depois de fazer o Cristiano Ronaldo – que, convenhamos, não é um perna de pau, mas também não é tudo isso – sair chupando dedo, sem conseguir anotar um golzinho sequer no jogo de estreia, deu para ver que a Alemanha estava atazanada. Tudo o que eu disse foi que, se continuasse nesse ritmo, e chegassem à final, a Alemanha ganharia a Copa sem dúvida alguma. E ainda acrescentei: “só espero que não joguem contra o Brasil na final”. Oh boca...
– Ah, tá... O Lucarelli – disse Roberta, recordando-se do amigo italiano do namorado. – Tinha esquecido o primeiro nome dele. Eles ainda se falam. Da última vez que eu soube, ele estava para casar, lá na Itália. Só não lembro o nome da noiva. E Diego é o nome do irmão do Pablo, a propósito. Não sei por que você cismou que era o nome dele...
– Mas ele tinha a maior cara de Diego... – defendeu-se Cristiana.
– E o irmão dele também. Os dois são parecidos.
– E por falar em irmão e em namorado, sua irmã está escondendo o jogo, mas tem bofe novo na área – dedurou Cristiana.
– Fala logo o nome do fulano que eu quero bater um papinho com ele – disse Raul, bancando o irmão ciumento. Só bancando, mesmo.
Dei um olhar de desdém para Cristiana. Se ela pensava que podia arrancar uma confissão de mim, só porque estávamos rodeadas pela minha família, ela podia tirar o cavalo da chuva.
– Conta aí, Manu – incentivou Roberta. – Quem é o cara?
– A fofoca que você buscou encontra-se desligada ou fora da área de cobertura. Tu, tu, tu, tu, tu, tu... – eu disse, imitando a voz da gravação das operadoras de telefonia.
– Fala pra mim que não é o Casanova...? – supôs Raul.
– Mas que mania vocês têm com o Casanova! – reclamei. – Gente, eu sou doida, mas nem tanto...
– Aquele garoto que escreve a coluna de esportes do jornal...? – supôs minha mãe. – Ele mora no prédio de vocês. Como é mesmo o nome dele...?
– Fábio – respondi. – Aliás, se tem uma coisa que eu admiro no Fábio é o namorado dele. Pensa num homem que não pediu licença para ser bonito!
– Ah, eu vi os dois outro dia na piscina – disse Cristiana. – Ele parece modelo, né?!
– Não me diga que você voltou a sair com o Podolski? – perguntou Roberta.
– Espera aí! O bonitão do Bloco C? Apartamento 110? – verificou Cristiana. – Quando foi que você...?
– Roberta e sua boca grande! – ralhei.
– Por acaso você conhece outro clone do Podolski? – respondeu Roberta para Cristiana. – Circulando em São Paulo?
– Ah, cachorra! E não me contou nada...
– Faz mais barato, Cristiana... E vamos parar de brincar de adivinhar que isso aqui não é Programa do Silvio Santos.
– Ok, se não é o Podolski, eu aposto que é o vendedor gato daquela loja de móveis chique... – insistiu Roberta.
– Um moreno? De olhos esverdeados? – verificou Cristiana.
Fiz que não com a cabeça. Mas dei um sorriso ao lembrar de quem estavam falando. Roberta assentiu.
– Esse filé mignon é Friboi! – disse Cristiana, com o mesmo sorriso.
E foi bem nesse momento que a porta do apartamento da minha mãe se abriu. O primeiro a entrar foi o Pablo, o namorado argentino da Roberta, carregando duas sacolas com as garrafas de refrigerante. Em seguida, entraram o papai e a minha boadrasta Malu.
Faz mais de quinze anos que meus pais se separaram, e Malu é a terceira esposa que meu pai arrumou depois do divórcio – e esperamos que seja a última, porque com o mau gosto que ele tem, dificilmente terá outro acerto. Minha mãe, por outro lado, não se casou com mais ninguém, mas corre um boato de que ela está namorando.
– Vamos ter churrasco hoje? – perguntou meu pai, ao pegar o bonde andando.
– Não que eu saiba – respondeu minha mãe, agradecendo ao novo genro pelos refris, que ele teve o bom senso de já trazer gelados.
– Eu ouvi vocês falando em filé Friboi – comentou meu pai.
– Ah, é, está de oferta no açougue – mentiu Roberta, arrancando uma risadinha do Raul, que ela respondeu com um olhar reprovador. E em seguida mudou de assunto. – A gente estava comentando aqui que vocês iriam demorar na delegacia. O que aconteceu?
– Se eu contar, vocês não acreditam... – comentou papai, colocando as sacolas de presentes no sofá.
Esse é meu lema, pai!
Vai na fé, que a gente acompanha – incentivei.
– Bom, eu estava levando o corpo do seu Aristides pro cemitério – ele começou –, parei num sinal vermelho, de repente me apareceu o Papai Noel com dois duendes e uma rena trabalhada no anabolizante, me apontou um trinta e oito e roubaram o rabecão.
– Quê isso, gente? A crise já chegou ao Polo Norte?! – brincou minha mãe.
– E pelo visto a coisa tá tão feia que Papai Noel e os duendes estão virando trombadinhas – completou Raul.
– Vai ver ele teve que mandar o trenó pra oficina e precisava de outro transporte para entregar os presentes essa noite... – sugeriu Cristiana.
– Mas um carro funerário?! – indagou Raul. – Com tanto carro importado por aí...
– Esse Papai Noel não tem muita noção de marketing – comentei.
– Ao contrário, é um tipo de Robin Hood bizarro: que rouba o carro dos mortos para levar presentes pros vivos – disse Roberta.
– É, mas olha o prejuízo que ele me deu – queixou-se meu pai. – E o pior é que além do rabecão, eles levaram o caixão com o corpo do defunto, e mais a urna com as cinzas do Seu Vigário que eu fiquei de entregar lá na casa da Dona Cleide. E agora? Que satisfação que eu vou dar pra Dona Cleide e pra viúva do Seu Aristides?
– Bom, pai, a dona Cleide é fácil – disse Raul. – É só sair recolhendo as cinzas de tudo quanto é cinzeiro pela cidade, bota dentro de outra urna, e faz de conta que nada aconteceu. Agora o presunto do Seu Aristides... Uma hora ou outra o Papai Noel vai ter que desovar em alguma vala. É só esperar a polícia encontrar e devolver pra família. Fala pra viúva ter um pouquinho de paciência...
– Quero morrer tua amiga – disse Roberta, espantada com a ideia estapafúrdia do Raul. – Ou melhor, não quero morrer na tua mão!
– Espera aí... – interrompeu Cristiana. – Tinha um padre morto dentro do rabecão, também?
– Não. Vigário é o sobrenome do sujeito.
– A Dona Cleide, então, é a mulher do Vigário? – conferiu Cristiana. – Essa deve ter sido a primeira a romper o silêncio da brincadeira. Vai vendo: essa praga pega!
– Não estou muito certo, mas acho que ela era irmã dele... – disse meu pai, fazendo esforço para se lembrar. – Acho até que não faz muito tempo que eu fiz o enterro da mulher do Seu Vigário...
– Vem cá, seu carro não tem rastreador via satélite? – perguntou minha mãe.
– Tem. Liguei para a empresa na hora, e eles já acionaram o bloqueador. Mas hoje é véspera de Natal. Vai saber quanto tempo vão demorar para me mandar a localização.
– Provavelmente menos do que a polícia – considerou Raul. – Se em dias normais, a polícia já é devagar, avalia a velocidade de hoje...
– Uma tartaruga manca sendo rebocada pelo Barrichello! – concordei.
– Bom, o jeito é esperar. E torcer para acharem rápido, senão o Seu Aristides não vai ter nem meia hora de velório.
– A menos que alguém pague mais uma diária de aluguel da sala – disse Raul.
– Duvido! Pelo que eu percebi a viúva dele é daquelas pessoas que acendem a luz com um murro para não abrir a mão. Até na hora de pagar o atestado de óbito a mulher tentou pechinchar. Mais barato que o enterro do Seu Aristides, só enterro de indigente em saco plástico! Por que você está me olhando com essa cara, Emanuelly?
Eu estava franzindo a testa, porque, não acho que eu tenha ficado tanto tempo sem ver o meu pai, mas de repente notei que ele estava com umas entradas bem profundas na cabeça, e a saída dos fundos também já estava bem encaminhada.
– Você ficou tão nervoso por ter sido assaltado pelo Papai Noel que andou arrancando os cabelos? – perguntei.
– Até tu, minha filha? – Meu pai fez uma careta, baixando os lábios num canto.
– Até que demorou – disse minha mãe. – Seu pai já estava começando a ficar calvo quando a gente ainda era casado!
– Não tenho culpa! – disse meu pai. – Os grandes sábios da história não tinham cabelo. Eu estou ficando sábio.
– Não, você está ficando careca, mesmo, pai! – repliquei.
– É... Mas eu já tive um cabelão, que nem o desse moço aí. – E apontou para o Pablo com a cabeça, que ostentava um pequeno rabo de cavalo.
– Esse moço aí é seu novo genro, paizão – dedurou Raul.
– Estou sabendo – murmurou meu pai, sem expressão.
– Quando foi que o senhor imaginou que iria ter um genro argentino? – provocou Raul.
– Antes um argentino que um corintiano! – disse meu pai, abrindo uma garrafinha de cerveja, e tampando os ouvidos para se proteger das vaias dos cinco corintianos presentes na casa: Malu, Raul, Roberta, Cristiana e eu.
Meu pai sempre foi o único palmeirense em casa, e sempre gostou de nos provocar. Dizia que não sabia o que tinha feito de errado para ter três filhos corintianos – quatro, na verdade, porque não vamos nos esquecer da Babi, o contrabando recém-descoberto, de treze anos de idade, que, como nós, também veio ao mundo com um coração sofredor. Só a mamãe nunca gostou de time nenhum.
– Falando nisso, Diego – disse Cristiana, dirigindo-se ao argentino –, seu nome não é Diego?
Non – respondeu ele. – É Pablo?
– E por que nunca me corrigiu quando eu te chamava de Diego?
– Porque me disseram para non te contrariar – ele disse, com seu forte sotaque argentino, apontando para Roberta, que já se protegia detrás de um prato erguido como um escudo, embarcando numa gargalhada.
– Vai ter volta, tá, amiga! – prometeu Cristiana, rindo também.
– A Adalgisa te ligou, filha? – perguntou papai, voltando-se para mim.
Adalgisa é minha mãe biológica, com quem meu pai teve um caso no início de seu casamento com a Vera, mãe do Raul e da Roberta, e que quase causou sua separação. Aliás, o que manteve minha mãe casada com o meu pai naquela época foi justamente a descoberta de que estava grávida da minha irmã, que acabou nascendo três semanas depois de mim.
E o fato de eu me referir à Vera como minha mãe, e não à Adalgisa, é muito simples: Adalgisa nunca me quis. Depois que eu nasci, ela fez um acordo com o meu pai: ele me criou, e ela seguiu com sua carreira de cantora de cabaré. Então, eu meio que não considero muito o nosso parentesco. Respeito-a; exceto quando ela se dá a liberdade de trocar o meu nome, me chamando pelo que ela supostamente tinha escolhido para mim, antes de decidir que não queria me criar.
– Não – respondi, tentando não fazer uma careta incomodada. – Como sempre, ela só vai lembrar que é Natal lá pelo dia vinte e oito... De janeiro!
– Não esquenta, Regina. Ela é meio doida, mas te ama – disse meu pai. – Do jeito dela...
– O jeito dela é muito esquisito. E não me venha com essa de Regina... – Eis aí, o nome que ela supostamente tinha escolhido para mim.
– Convenhamos: Regina é muito melhor do que Antonella – comentou Raul, dando uma olhada de esguelha para a mãe.
– Eu achava o nome lindo, na época – disse Vera, na defensiva.
Quando decidiu perdoar meu pai e ajudá-lo a me criar – depois de Adalgisa ter tirado o corpo fora –, meu pai, em retribuição, permitiu que Vera escolhesse meu nome, sem nenhuma interferência, e ela, talvez ainda magoada por causa da traição, talvez com um – creio que há muito superado – espírito vingativo alojado no coração, decidiu chamar-me de Antonella. Pessoalmente, não acho o nome tão ruim... Se fôssemos argentinos! Mas aqui o nome não é tão comum assim, e as crianças na escola – aqueles pequenos demônios indomáveis e cheios de maldade no coração, camuflada pelas carinhas inocentes – tinham a mania de pegar só a primeira parte do meu nome para me zoar. Os apelidos variavam de Antonilda a Antonieta, Antolina, Antológica – essa foi uma criança com uma mente um pouco mais desenvolvida, e que, por influência do capeta abriu o dicionário na página errada –, e, o favorito da maioria, “a anta é ela”. Como eu odeio esse nome!
Aliás, fica aqui o apelo: vamos logo tratar o bullying como o que de fato é, uma agressão hedionda, e puni-lo criminalmente, não importando a idade do infrator!
Voltando ao assunto, Vera já se desculpou há séculos por esse lapso de humanidade, e até se propôs a pagar a mudança definitiva nos meus documentos, mas acho que a pior fase da minha vida já passou. Agora, só revelo esse nome horrível para quem tem alguma importância na minha vida. Para todos os efeitos, sou Emanuelly: é meu nome artístico, pseudônimo, apelido, alterego... Enfim, chamem como quiser.
Quanto à Regina, nada contra o nome, propriamente; apenas me incomoda a hipocrisia de dona Adalgisa, ao tentar me convencer de que em algum momento ela se preocupou em escolher um nome para mim. Porque, se a pessoa tem a intenção de abandonar o filho, não se dá o trabalho de escolher um nome para ele, certo?
– Bem, mudando de galinha para porca, vocês vão na casa da Vilma hoje à noite? – perguntou meu pai, dando uma risadinha.
Ao que Vera lhe deu um olhar zangado. A palavra porca sempre aparecia na conversa quando alguém mencionava a tia Vilma, de uma forma ou de outra.
– Com todo o respeito... – acrescentou ele, defendendo-se.
– Sei... Com respeito... – desdenhou Vera. – Acho que só vamos a Roberta, o Pablo e eu, porque o Raul vai pra casa da Fabiana, e a Manu vai passar o natal com os amigos.
– Quem é Fabiana? – perguntou meu pai. – O nome da sua namorada não era Renata?
– Acho que era Danielle, amor – comentou Malu.
– Era Letícia – corrigiu Raul. – Mas com ela não era nada sério.
– E com essa Fabiana é sério? – inquiriu meu pai, erguendo uma sobrancelha para Raul.
– O tempo dirá.
Resumo: não!
Desisti de acompanhar a vida amorosa do Raul há uns doze anos. Não guardo mais o nome de nenhuma “namorada” que ele me apresente, a não ser que, por alguma razão, nos tornemos amigas. Para facilitar a vida, chamo todas elas de flor ou cunhadinha. Assim eu não corro o risco de cometer alguma gafe; como chamar a Renata de Letícia, ou a Danielle de Mariana – o último nome que me lembrava de uma “namorada” do Raul.
– O almoço está servido – anunciou Vera, ao terminar de pôr a mesa.
Não que nós fôssemos nos sentar à mesa para comer. Afinal, éramos oito pessoas para nos espremer numa mesa para quatro, com nossos pratos e copos disputando espaço com as travessas que minha mãe faz questão de utilizar no natal. Assim, nos servimos, e nos espalhamos pela sala de estar. Raul ligou a televisão num desses filmes natalinos que passam todo ano na TV a cabo, só para fazer fundo às conversas, e começamos a degustar o almoço.
– Vai ter festa no teatro de novo, Manu? – perguntou Malu, colocando o copo de refrigerante ao lado da garrafinha de cerveja do meu pai na mesinha de centro, recostando-se com o prato na mão numa cadeira trazida da cozinha.
– Não. Esse ano diminuiu o número dos rejeitados, então, vamos fazer uma festinha no nosso apartamento, mesmo.
– Obrigado pela preferência – riu-se Raul, dando-me uma alfinetada por ter usado a palavra “rejeitados”.
– Você entendeu o que eu quis dizer – retruquei.
Cristiana e eu fazemos parte de um grupo de teatro semi-independente – porque não gostamos de utilizar a palavra “amador” – que se apresenta três vezes por semana num velho casarão em Santo André, que era uma herança de família do Otávio Serqueira, empresário teatral que já era conhecido do Leandro Bittencourt – vulgo Casanova, de quem já falei anteriormente. A casa estava praticamente abandonada, e nenhum dos herdeiros tinha intenção de vendê-la ou usá-la. Então, quando Leandro apresentou os projetos do grupo de teatro que tinha fundado com outros amigos, e que ainda engatinhava na época, apresentando-se em praças e escolas, ele gentilmente concordou em nos ceder o espaço para apresentar nossas peças, em troca de uma porcentagem na venda dos ingressos.
A princípio, apresentávamos as peças num pequeno palco de madeira construído no salão de bailes estilo imperial que a casa possuía, e o público nos assistia em cadeiras de plástico usadas que conseguimos como doação de diversas partes. Mais tarde, quando percebeu que as peças estavam indo bem, o Otávio decidiu investir numa pequena reforma do casarão, que consistiu basicamente em transformar aquele salão num pequeno auditório para cento e cinquenta espectadores no total, com direito a uma galeria, quatro camarotes laterais, e um palco de concreto com alçapão que permitiu um upgrade nos nossos espetáculos.
O teatro Máscaras acabou se tornando uma espécie de cartão-postal da cidade, e contou até com a presença do Prefeito para a inauguração oficial após a reforma, com notas e reportagens em diversos jornais. Uma história admirável de recuperação de um patrimônio abandonado e de investimento cultural.
Ao contrário, porém, do prestígio que nosso pequeno teatro ganhou, os atores do Grupo Máscaras continuam sendo marginalizados por suas famílias, que continuam nos considerando boêmios e sonhadores, e que não levam a menor fé em nossa arte, muito menos em nossas carreiras.
A maioria, inclusive, mora muito distante da família. Naturalmente não é o meu caso. Minha família mora perto – mamãe na Vila Ema, papai em São Caetano, eu e Cristiana na Vila Carrão –; e, se não levam fé que um dia eu posso acabar indo parar em Hollywood e ganhar um Oscar, também não menosprezam de todo a minha arte. Minha mãe, por exemplo – a Vera, é claro; não a Adalgisa –, assiste a todas as minhas peças, assim como meu pai, quando não está muito atolado no trabalho. Mas lá no princípio de tudo, ninguém realmente acreditava que eu fosse conseguir me sustentar só fazendo teatro.
E talvez não tivesse conseguido, realmente, se não me apresentasse também em outros lugares, fazendo stand-up comedy, cantando em bares, e escrevendo e adaptando textos para companhias de teatro mais relevantes. E se o aluguel no Edifício Toscano não estivesse um pouco abaixo do mercado...
Mas deixe isso pra lá. O que eu estava explicando era que a maioria dos meus colegas do teatro não conta muito com o apoio das famílias, ou mora muito distante deles, de modo que acabam se sentindo meio sozinhos nessa época do ano. Por isso que, no ano passado, nós reunimos todos os “rejeitados” para passar a noite de natal no casarão. Fizemos a ceia lá mesmo – no salão onde realizamos as festas e os ensaios de dança –, um amigo secreto, estouramos champanhe... Enfim, fizemos uma pequena bagunça – totalmente autorizada pela diretoria do grupo, é claro.
Mas esse ano decidimos encerrar as apresentações mais cedo, e quase todo mundo acabou fazendo um esforço a mais para viajar e ver os parentes distantes. Só restou pouco mais de meia dúzia de pessoas sem planos para o natal, então, decidimos reunir a galera no nosso apartamento – porque a maior parte dessas pessoas mora no nosso prédio, e nosso apartamento é o menos atulhado –, e fazer uma festinha.
E o motivo de eu me encontrar nessa lista dos “rejeitados” é que, como foi citado anteriormente, mamãe, Roberta e Pablo vão passar o natal na casa da tia Vilma, e obviamente, tia Rosália estará por lá também – já que a velha mora no mesmo quintal –, e eu não estou a fim de estragar o meu natal. Como já disse, não gosto da tia Rosália, ela sempre me maltratou, e sempre deixou muito claro que eu era uma intrusa em sua família. Não tenho certeza se ela era má comigo porque eu não sou filha biológica da sua sobrinha, ou se era algum tipo de amargura pessoal, porque os filhos dela morreram muito jovens num acidente de carro. Talvez ela só quisesse um bode expiatório, alguém para descontar suas frustrações e suas mágoas, mas ela que procurasse outro bode; não tenho obrigação de me oferecer em sacrifício.
– Aliás, me faça um favorzinho, filhota? – pediu meu pai.
Assenti.
– Tente não ser presa hoje.
– Vocês nunca vão conseguir esquecer isso, né? – reclamei, na defensiva.
Ano passado eu fui presa na véspera de natal, porque, resumindo ridiculamente, eu fui apanhada pilotando um trenó roubado do Papai Noel. Na verdade, o trenó era só uma carruagem normal puxada por duas renas; e nem me pergunte onde foi que o sujeito arrumou aquelas renas, mas a produção toda fazia parte de uma promoção do shopping local, que oferecia aos clientes – às crianças, principalmente – um passeio de dez minutos no trenó do Papai Noel a cada duzentos reais em compras. Mas, em minha defesa, eu não tenho culpa se o cidadão largou o trenó estacionado bem na saída do estacionamento atrás do casarão, obstruindo a passagem dos carros, com as rédeas no contato, e foi encher a cara de cerveja no boteco ali em frente. Tudo o que eu fiz foi subir no trenó, e... Qual é o termo correto? Dar a partida?... Enfim, dei uma sacudida nas rédeas para fazer as renas se mexerem, e afastar um pouquinho aquela bugiganga para a gente poder tirar os carros e ir para casa. Afinal, já eram quatro horas da manhã! Daí alguém avisou o sujeito que o trenó estava andando, ele começou a correr atrás de mim, chamou atenção de uma viatura que vinha passando, e, até explicar que urubu não é papagaio, acabamos passando o resto da noite na delegacia. Felizmente, o Bom Velhinho acabou não formalizando a queixa no final das contas, e eu considerei esse ato de bondade como meu presente de natal, vindo diretamente do Polo Norte – que, excepcionalmente naquela noite, estava com uma filial aberta no boteco da esquina. Mas aparentemente esse ano ele decidiu descontar roubando o carro funerário do meu pai. Se continuar nesse ritmo, o próprio Papai Noel vai acabar sendo incluído na lista das crianças malvadas. E, pensando pelo lado bom, no futuro eu certamente terei muitas histórias boas para contar aos meus netos no natal.
– Bom, do jeito que as coisas andam, passar o natal na delegacia está virando uma tradição de família, não é, pai? – alfinetei.
– E arrumar briga com o Papai Noel também – acrescentou Raul. – Cuidado, senão a gente nunca mais vai ganhar presente de natal, hein! Papai Noel vai passar longe da nossa chaminé.
– Besteira! – bufou Roberta. – Nós não temos chaminé.
– Da varanda, que seja – Raul deu de ombros.
– Nossa família já está na lista negra do Papai Noel desde muito antes de vocês nascerem – disse mamãe. – Já contei para vocês sobre o nosso primeiro natal depois de casados? Quando o seu pai foi fazer um show em Santo Amaro; o show terminava às dez, ele ia pegar uma carona pra chegar em casa antes da meia-noite; chegou em casa cinco horas da manhã caindo de bêbado e fedendo a urina!
– Já contou um milhão de vezes – disse meu pai. E arrematou com uma risadinha. – O pior é que o bêbado era eu, mas quem estava vendo coisas era você.
– Ficou doido?! – indagou mamãe.
– Me chamou de bonito.
– Não te chamei de bonito. Foi uma crítica, com desdém. Bonito, hein?!
– Agora você vê... E eu passei todos esses anos todo orgulhoso pensando que você estava falando de mim...
– Rá! Palhaço...
Havia um ponto de interrogação gigantesco no rosto do Pablo, enquanto ele ouvia Roberta explicar aos sussurros do quê mamãe estava falando. Claro que, de primeira, todo mundo fica confuso ao ouvir que meu pai chegou em casa bêbado e fedendo a urina depois de um show. Isso é muito natural, porque a maior parte das pessoas – especialmente as que têm menos de trinta anos ou não nasceram no Brasil – não sabe ou não se lembra que meu pai já foi músico.
Foi no final dos anos 1980, o auge do rock brasileiro. Meu pai era o guitarrista da banda Vagabundos S.A., que não chegou a ser um fenômeno, mas fez relativo sucesso com os dois primeiros discos. Por causa do sucesso da banda, meu pai era muito assediado pelas mulheres. Minha mãe sempre tenta nos convencer de que não tinha ciúme, mas sabemos que isso não é completamente verdade. Fica até difícil acreditar nisso, porque, como é de conhecimento público, meu pai nunca valeu um vintém! Tanto é que, Raul não tinha nem dois aninhos quando eu aconteci, e isso quase o separou da Vera. O que acabou por convencê-la a perdoar seu deslize – que ele sempre alegou ter sido o único em todo o tempo que ficaram casados –, foi a descoberta de que a Roberta estava a caminho. Mamãe ficou apavorada com a ideia de ficar sozinha com dois filhos pequenos. Não aquela insegurança causada pela falta de um homem ao seu lado, mas uma espécie de culpa por criá-los longe do pai. E além disso, ela o amava demais, e estava realmente disposta a lutar pelo casamento.
É desnecessário dizer que não deu certo, afinal, já mencionei que meu pai viera almoçar conosco trazendo sua terceira esposa. A banda acabou em 1996; Roberta e eu éramos bebezinhas ainda, e meu pai percebeu que, se Vera estava realmente disposta a lutar pela família, ele tinha que mudar alguns hábitos também. A música não era um problema, mas o assédio da mulherada, sim. Especialmente porque meu pai, como eu disse, não tinha um autocontrole assim tão bom. Então ele decidiu sair da banda e procurar um trabalho mais normal.
Por uma cadeia de circunstâncias complicada demais para ser relacionada neste momento, ele acabou se tornando agente funerário, primeiro numa firma lá no centro da cidade, e mais tarde, na periferia, num negócio próprio. Foi o antigo patrão dele na funerária lá do centro que o convenceu de que esse era o melhor negócio para ele investir o dinheiro que tinha guardado dos tempos da banda, pois nunca falta cliente, não existe crise nesse tipo de negócio, o cliente não reclama, e nunca tenta devolver a mercadoria. Tenho a impressão de que o sujeito dissera tudo isso para que meu pai investisse na funerária dele, mas meu pai pegou a dica do cara, percebeu que ele tinha razão, e decidiu investir no próprio negócio.
Não sei se ele chegou a se arrepender por ter entrado nesse ramo, mas sei que ele sentiu falta da música todos esses anos. A guitarra dos Vagabundos S.A. passou a ser usada somente nos churrascos e festas de aniversário da família; o violão se tornou um companheiro das noites de insônia, e até hoje fica guardadinho num canto no escritório da funerária, e ele toca sempre que fica muito tempo sozinho lá dentro. Desconfio que ele faz isso para espantar um pouco a melancolia do lugar.
O caso é que, mesmo nunca tendo reclamado de sua mudança de profissão, papai não estava completamente feliz. Outros problemas apareceram para perturbar o casamento dele com a Vera, problemas mais complicados que a fraqueza dele por mulheres, e, no fim, o divórcio acabou sendo inevitável. Eu tinha sete anos quando aconteceu. Cheguei a pensar, por um momento, que teria de ir embora com o meu pai, mas a Vera não permitiu que ele me levasse. Disse que eu era filha dela também, e que ela não abriria mão de nenhum dos filhos. Acho que nunca contei para ela que naquele dia o motivo do meu choro não era bem o fato de o meu pai estar indo embora – bem, eu chorei por isso também, é claro –, mas porque, ao ouvi-la dizer essas coisas – quando ela não sabia que eu estava ouvindo –, eu senti, pela primeira vez, que ela tinha perdoado o fato de eu não ter nascido dela, e que ela me amava de verdade. E aquilo foi o mundo para mim, porque eu também a amava.
Mas, voltando à noite de natal em que meu pai chegou bêbado em casa, e que Roberta estava contando para o Pablo aos cochichos, mamãe estava grávida do Raul na época, e meu pai prometera chegar antes da meia-noite. Só que os rapazes da banda terminaram o show, e o dono do bar ofereceu uma rodada de bebidas de cortesia, por ser véspera de natal, e meu pai decidiu tomar um Martini. E antes de concluir esse relato, é preciso esclarecer que meu pai nunca foi muito forte para bebidas, e nunca tinha tomado Martini também. Resultado: o negócio bateu e subiu num segundo. E não bastasse uma dose, meu pai decidiu tomar seis! Daí ele começou a contar piada, rir à toa, dançar em cima do balcão do bar, fingindo tocar uma guitarra invisível... Até aí, tudo bem. Mas quando ele começou a tirar a roupa, o dono do bar decidiu dar um basta e colocou todo mundo para correr – todos os membros da banda, quero dizer.
Ninguém estava em condições de dirigir naquela noite. O empresário deles já tinha ido embora no carro que levava os instrumentos, porque não quis participar da rodada de birita grátis, justamente para não tomar um esporro da patroa por não aparecer em casa na véspera de natal – Vera sempre reclama porque meu pai não teve esse bom senso –, então eles tiveram que pegar um ônibus. E como já era madrugada de natal, eles eram os únicos passageiros a bordo, além de um cara fantasiado de Papai Noel, que devia estar voltando de alguma festa ou evento. E como estavam para lá de Bagdá, meu pai e os colegas da banda começaram a fazer bagunça lá no fundo, e a mexer com o coitado do Bom Velhinho, cantando trechos de “eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel” e “Jingle bell, jingle bell, acabou o papel”... Mas aí quando alguém insinuou que o que era para limpar era o do Papai Noel, o velhinho levantou e começou descer o sarrafo nos baderneiros. Claro que ninguém poderia imaginar que, por baixo de toda a espuma da pança do Bom Velhinho existisse um cara anabolizado e faixa preta em Jiu-Jitsu! Os Vagabundos S. A. tomaram uma surra monumental do “Papai Noel”, e foram definitivamente incluídos na lista das crianças malvadas que jamais ganharão presentes de natal. Apesar de que eles ganharam um. Só não ficou muito esclarecido de quem eles ganharam – se deles próprios ou se foi obra do Papai Noel também. Meu pai muda a versão cada vez que minha mãe toca no assunto. O que sabemos, com certeza é que, batuque vai, batuque vem, porrada vai, porrada vem, alguém tinha muito álcool na ideia, e muito líquido na bexiga... Até hoje não sabemos quem foi que urinou em quem. O fato é que meu pai chegou em casa com xixi em partes da roupa em que não era possível que fosse tudo dele.
Então quando ele chegou em casa cinco horas da manhã, ainda mamado, com aquele futum horroroso, minha mãe abriu a porta, olhou bem para a cara bêbada dele, deu uma filmada em suas roupas imundas, e alfinetou: “bonito, hein!”. E qual foi a reação do meu pai? Pedir perdão? Desabar em lágrimas? Claro que não! Ele simplesmente se sentou no degrau da porta, e rachou o bico de tanto rir. Não que ele estivesse debochando do mau humor da minha mãe, ou achando a situação tão engraçada; o caso era que o Martini ainda estava fazendo efeito.
– Foi muito engraçado – riu-se meu pai, quando Roberta terminou de contar a história ao namorado.
– Foi vergonhoso! – contradisse minha mãe. – Eu passei o natal sozinha, enquanto esse Zé Ruela estava na farra, enchendo a cara, e ainda por cima arrumando briga na rua.
– Eu não arrumei briga nenhuma! – defendeu-se meu pai. – Não foi culpa minha se o gerente nos expulsou do bar.
– Ué... Então quem foi o Domingos Nogueira, seu xará, que começou a fazer Strip-tease no balcão? – indagou minha mãe.
– E quem foi que tomou uma coça do Papai Noel no busão? – acrescentou Raul.
– Eu estou começando a achar que o velhinho não tão bom assim não vai com a minha cara: já me bateu, já mandou minha filha pra cadeia, agora roubou meu rabecão... E nunca me deu um videogame.
– Pobrezinho... – desdenhou Malu.
– Pensando bem, que bom que nós não temos chaminé – disse Raul –, porque, do jeito como a nossa família gosta de aprontar com o Papai Noel e ele conosco, eu não estranharia se um dia ele entrasse pela chaminé, e caísse na lareira acesa.
– Quem deixa a lareira acesa em pleno verão? – perguntei.
– Esse é o ponto! – disse Raul. – Quem é que apanha do Papai Noel? E ainda quer que ele te dê um videogame, paizão? Faz mais barato...
– A gente precisa fazer as pazes com o pessoal do Polo Norte. Porque do jeito que a coisa vai, qualquer hora eu vou ter que adotar um elfo órfão para tentar sair da lista negra do velho.
– Acho que só daria certo se você fosse a Angelina Jolie, paizinho – comentou Roberta.
Na verdade, acho que nossa família precisaria adotar toda a população de órfãos e refugiados da África se quiséssemos tentar o acesso para fora da lista negra do Bom Velhinho. Porque pouca gente já teve tantos contatos imediatos surreais com o Papai Noel quanto a nossa família.
Pensando bem, acho que ninguém teve tantos contatos imediatos surreais com o Papai Noel quanto nós. Dia desses ele vai fazer uma greve, e nós seremos as pessoas mais odiadas do planeta.

Terminamos de almoçar tranquilamente, distribuímos e recebemos lembrancinhas de natal, pedi que meu pai desse notícias sobre o resgate do rabecão e a eventual prisão do Papai Noel e seus capangas, e então Cristiana e eu voltamos para casa para fazer os preparativos da noite.

Continua...

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