Por Talita Vasconcelos
Saí
do quarto assim que senti que estava pronta, e coloquei o presente do meu amigo
secreto embaixo da árvore de natal, num canto da sala, ao lado dos presentes
comprados pela Cristiana, pela Valentina, pelo Pedrão e pelo Ivan. Notei que
tinha um presente a mais embaixo da árvore. Deduzi que mais alguém havia
chegado enquanto eu me maquiava. Talvez estivesse no banheiro.
Valentina
estava desenformando a rosca de nozes quando me voltei para a cozinha.
–
Essa ficou perfeita – anunciou ela, tirando as luvas térmicas. Regou a
guloseima com uma calda de coco que tinha preparado enquanto a primeira rosca
estava assando, e que ficou o dia inteiro esfriando sobre a mesa, terminou de
decorar com pedacinhos de morangos frescos, e colocou-a com todo cuidado na
bancada, ao lado da sobremesa do Ivan, que agora eu percebia que era uma
espécie de bolo ou pavê, provavelmente de chocolate, com glacê escuro e frutas
vermelhas.
Enfim,
não entendi bem o que era, mas aquilo animou meu estômago. Gosto de falar da
draga da Cristiana, mas de vez em quando preciso policiar a minha.
Falando
nela, também escolheu esse momento para surgir na sala, e também teve a atenção
imediatamente furtada para a nossa bancada de sobremesas. A Cristiana, quero
dizer, não a draga. Ou talvez, as duas.
–
Hum... Ivan, essa coisa dá água na boca só de olhar – disse Cristiana,
hesitando em chegar perto. O dia certamente não precisava de mais desastres. –
Garoto, peça-me quantas xícaras de açúcar quiser, que um dia vou te pedir em
casamento.
–
Deixa o Pedrão ouvir isso! – comentei, dando uma risadinha.
–
Tenho certeza de que ele nunca vai ter ciúme dessas sobremesas – disse Cristiana,
ainda concentrada nas delícias sobre a bancada.
–
Tem mais alguém aqui? – perguntei, ainda pensando no presente a mais que vira
ao pé da árvore de natal, muito mais modesta que a do Seu Nosferatu.
Ouvimos
a campainha.
–
Agora tem – disse Ivan, enquanto Valentina abria a porta.
–
Oi, linda! – disse Leandro, parado na porta, com o presente do amigo secreto
escondido atrás do batente. – Você me quer embrulhado ou eu posso começar a me
livrar de toda essa produção?
Na
verdade, ele não estava tão produzido assim, mas ele sempre se veste como se
estivesse indo a um encontro, mesmo que só esteja indo à padaria.
–
Você não tem uma cantada pior, não, Casanova? – indagou Valentina, segurando a
risada.
Na
verdade, ele tinha, mas não ia gastar por aqui.
–
Não diga que não teve sua chance – ele disse, dando um passo para dentro do
apartamento, e segurando o rosto dela com delicadeza antes de lhe dar um beijo
na bochecha.
–
Você... – ele disse, apontando para Cristiana. – Está linda! Mas eu não quero
apanhar do seu namorado. – Então apontou para mim. – Você, me aguarde à
meia-noite!
–
Do namorado dela você não tem medo de apanhar? – perguntou Cristiana. Então, a
compreensão a atingiu. – Oh...
Ela
me deu aquele olhar “te peguei” de novo, enquanto Leandro me envolvia num
abraço demasiadamente caloroso. Mas ela estava redondamente enganada.
–
A Manu não tem namorado... – ele começou a dizer. Subitamente, porém, se
afastou, me lançando um olhar avaliativo. – Você tem?
–
Não sei do que vocês estão falando – esquivei-me.
–
Até o fim da noite, pode apostar que eu vou descobrir – disse Cristiana. Ou
melhor, repetiu Cristiana.
–
O único cara que ela vai beijar hoje sou eu – garantiu Leandro, me abraçando de
novo, dessa vez mais apertado, estalando um monte de beijos no meu rosto. Na
base da minha orelha, para ser mais precisa.
–
Ai, tem uma coisa me fazendo cócegas – estrilei, gargalhando e tentando me
libertar dele. Uma coisa pequena e meio úmida se projetava sobre mim, quase se
enfiando pelo meu decote, e eu o agarrei antes que conseguisse me deixar
pelada.
–
Oh, seu tarado! – rosnou Leandro – Dá para respeitar a moça!?
–
Olha quem fala! – comentei, com sarcasmo, segurando com as duas mãos um
cachorro chihuahua minúsculo, que Leandro carregava no bolso da camisa, e que,
apesar daquele tamanho mínimo, não era mais um filhote. E que, naquela noite
estava particularmente engraçadinho com um gorrinho vermelho de Papai Noel
atochado na cabecinha.
–
Pega ele, Piripaque! – atiçou Cristiana, de brincadeira.
Eu
já estava sentindo as duas patinhas batendo no meu tornozelo, cada vez que
Piripaque pulava, tentando alcançar o amiguinho.
Se
tivesse a intenção, o Piripaque comeria o Picolé de uma bocada só, de tão
pequeno que era.
Ok,
o cãozinho do Leandro não era tão, tão, tãããão pequeno assim. Ele só era uns
quatro centímetros menorzinho que o Piripaque. Mas quatro centímetros na vida
de um chihuahua é mais ou menos a diferença entre Ana Hickmann e a Sandy! Ou
entre um jogador de basquete e um piloto de Fórmula 1.
Assim
que o coloquei no chão, Piripaque se ocupou em tentar arrancar o gorrinho da
cabeça do Picolé.
–
Não, não! – repreendeu Cristiana.
Curiosamente,
era só ela dizer essas duas palavrinhas para fazer o Piripaque sossegar. E por
alguma razão, só funcionava com ela.
Os
dois saíram correndo pelo apartamento, e foram brincar debaixo da mesinha de
centro.
–
Falta um pedaço desse cachorro – zombou Ivan. – Não é possível ser tão
pequenininho.
–
É um bonsai de chihuahua – disse Leandro. – Só não me pergunte como é que faz.
–
Ah, pode ficar sossegado. Se um dia eu tiver essa curiosidade, vou perguntar
para eles! – disse Ivan, apontando
para os cachorrinhos correndo atrás do rabo um do outro debaixo da mesinha.
A
campainha tocou outra vez. Desta vez era o Serginho com sua acompanhante, que,
nem de longe era quem esperávamos que viesse com ele. Graças a Deus!
Esperávamos
que ele trouxesse a Amanda, sua namorada há três meses, uma fulana com cara e
porte de modelo: loura platinada, olhos verdes, magérrima, pernas longas, com o
nariz mais empinado do mundo, e esnobe até não poder mais; que é capaz de
passar uma semana inteira só com uma folha de alface e uma garrafa de sidra no
estômago. Em vez disso, ele trouxe a Vick, nossa amiga do teatro, que é quase
tão alta quanto a Amanda, só que bem mais encorpada – para não dizer cheinha –,
tem olhos castanhos, o cabelo mais vermelho e berrante que você verá na sua
vida, zero juízo na cabeça, e que é especialista em contagiar todo mundo com
sua empolgação.
Cristiana,
Valentina e eu trocamos um olhar quase telepático: aquele devia ser nosso
primeiro presente de natal da noite, e uma evidência de que talvez – e apenas
talvez –, o azar que nos atingiu durante a tarde já tivesse tomado outro rumo.
–
Vick! – exclamei, animada, abraçando-a.
–
Ué... – balbuciou Leandro para Serginho. – Trocou de patroa?
–
Mais ou menos – respondeu ele, meio aborrecido.
–
Cadê a Amanda, cara? – insistiu Leandro.
–
Deve estar me encomendando um par de chifres de presente de natal.
Sim,
tem que ser muito autoconfiante para admitir uma coisa dessas. Autoconfiança e
capacidade de superação e de nunca se deixar abater são as qualidades que mais
admiramos no Serginho. A outra é sua imensa habilidade de arranjar qualquer
coisa que a gente necessite por um precinho bem camarada. Quase sempre dentro
do próprio apartamento; o que explica seu apelido “ranja tudo”: ele realmente
arranja de um tudo!
–
Que chato, hein, cara – disse Ivan, solidário.
Serginho
deu de ombros.
–
Azar o dela – acrescentou. – Se era para vir e ficar fazendo cara feia, também,
foi melhor ela não ter vindo. Vamos nos divertir mais sem ela.
Mulheres
mordendo a língua para não disparar um “com certeza”.
–
E divertir a galera é precisamente a especialidade da Vickzinha aqui – disse
Vick, apoiando as mãos nos ombros de Serginho, que deu um sorriso meio de lado.
–
Pois é. Aí eu encontrei a Vick, e como a gente planejava encher a cara e fazer
arruaça por aí, para dar um pouco de dor de cabeça pra Dona Lourdes, achamos
melhor vir fazer a bagunça com vocês e dar um siricutico na síndica mais tarde.
–
Fizeram muito bem, aliás! – disse Cristiana.
–
Você não ia para Petrópolis com a sua família? – perguntou Valentina,
lembrando-se de que fora esse o motivo porque Vick recusou participar do nosso
amigo secreto quando a convidamos.
–
Pois é... – disse Vick. – Mas, sabe como eles são caretas, né... Com certeza ia
ser mais uma daquelas viagens chatas, em que eles iam ficar regulando cada copo
que eu bebo, cada palavra que eu falo, cada telefonema que eu recebo... Um
saco! E eu não ia poder levar ninguém comigo. E ficar aturando meus primos
chatos o fim de semana inteiro é dose! Daí eu decidi dar minha ausência a eles
como presente de natal, e passar com os meus amigos. Vou me divertir bem mais
sem eles, e eles com certeza também não vão sentir a minha falta.
O
discurso até pode parecer meio exagerado, mas eu conheci os pais da Vick
recentemente, e a foto deles acompanha a definição de careta no dicionário. O senhor de terno e a senhora de tailleur, sempre impecáveis, com cara de
constipação, que não suportam um assobio de qualquer música que não seja
clássica, com mania de números – os dois são contadores, e não conseguem servir
um cafezinho sem informar à pessoa sobre o valor exato da quantidade de pó,
água e açúcar utilizada para prepará-lo. O
pai o Chris deve ter aprendido com eles. Pensei
por um momento que eles tinham dado essa informação para que nós pagássemos,
mas Vick explicou que não; que eles faziam isso para memorizar os gastos
diários da família e depois anotá-los no livro de contas. Sim, eles têm um
livro de contas familiar. E fazem um balanço mês a mês, e organizam um grande
gráfico anual onde apontam quais os meses em que mais gastaram e os que mais
economizaram, saldos e déficits das contas bancárias e aplicações, a
porcentagem que seria destinada para cada gasto adicional como viagem de natal
e de férias, e o escambau. Só de lembrar já me dá sono. Ah, é... E também tinha
o fato de que eles queriam um relatório completo de cada telefonema que a Vick
recebia na frente deles, porque, supostamente, eles precisavam saber exatamente
onde e com quem ela andava, para evitar que se tornasse mais uma jovem nas
trágicas estatísticas da sociedade. Sério, acho que no lugar da Vick, eu teria
fugido de casa há muito tempo. Nunca mais chamei minha mãe de controladora
depois disso.
Claro
que a Vick não mora mais com os pais – ou já teria enlouquecido há muito tempo
–, e talvez por isso mesmo ela tenha preferido ficar para trás com os
“rejeitados” do que encarar um fim de semana com sua família agridoce em
Petrópolis. A Vick é aquela ovelha negra, que destoa de todo o resto da
família. Para a nossa alegria! E azar o deles.
–
E já que a Amanda não vem – prosseguiu Vick – eu fico com o amigo secreto dela.
Quer dizer, eu dou o presente do amigo secreto dela. E quem tirou a Amanda,
agora, vai dar o presente dela para mim. Falando nisso, eu trouxe rabanada e
duas garrafas de vinho.
–
A gente achando que ia comer a rabanada da Amanda hoje... – brincou Leandro.
–
Olha o respeito! – rosnou Serginho. – Enquanto eu não chutar a bunda dela
pessoalmente, só eu posso falar da rabanada daquela vaca!
–
Tá legal.
Serginho
colocou uma caixa de papelão com sua contribuição para a ceia em cima da
bancada, e pôs os presentes debaixo da árvore de natal.
–
A Amanda te falou quem ela tirou? – perguntei à Vick.
–
Não falou nem pro Serginho.
–
Na verdade, eu não me liguei de perguntar, antes de mandar ela à merda pelo
telefone – admitiu Serginho.
–
Então, eu comprei um presente unissex, e vou ficar por último – disse Vick. –
Quem sobrar, é quem a Amanda tirou.
–
Tranquilo! – disse Ivan.
–
O que será um presente unissex? – Leandro parecia estar pensando alto.
–
Vocês vão ver – disse Vick. – E provavelmente vão gostar. Trouxe até um
champanhe – e exibiu a garrafa. – Do bom! Não aquele vinagre com sal de fruta
que certas pessoas... – Indicou
Leandro com a cabeça. Ele deu uma risada sarcástica. – Tentam convencer a gente
de que é champanhe... Vou colocar na geladeira, para a gente abrir à meia
noite, porque, afinal, é natal, mas é meu aniversário, também. E eu quero
comemorar!
–
Opa! – animou-se Leandro. – Todo mundo puxando a orelha da Vick à meia-noite,
hein! Que é para dar sorte.
–
Agora, vem cá... – disse Serginho, mudando de assunto. – Que foi que aconteceu
com o peru? O Pedrão passou lá em casa, perguntando se eu sabia onde ele podia
conseguir um peru, de preferência assado, hoje...
–
Ué, gente... – disse Leandro, com o cenho franzido. – O que aconteceu com o
peru que eu trouxe?
–
Quer a versão completa ou serve o resumo? – indagou Cristiana.
–
Serve o resumo. – Porque ele sabe que a versão completa pode demorar dias para
ser contada.
–
Ele foi dar uma voltinha – disse Cristiana, com um sorriso amarelo.
–
O quê?! – surpreendeu-se Ivan. – Foi o peru de vocês que caiu na cabeça da Dona
Cida?
–
Era a Dona Cida lá embaixo? – indagou Cristiana, afinando a voz ao nível de um
desenho animado, tentando segurar a risada.
–
Embaixo do peru de natal? Era.
–
Alguém vai me contar de que papagaios estão falando? – insistiu Leandro,
cruzando os braços, com uma expressão meio divertida, meio preocupada.
–
Não é papagaio, é peru – disse Ivan. – Mais especificamente o peru que
despencou da janela de um dos apartamentos para servir de capacete à Dona Cida.
Isso, ou ela estava fazendo Papa Nicolau no bicho com a cabeça...
–
Você foi lá embaixo, ou escutou a gritaria pela janela? – indagou Cristiana.
–
Escutei a gritaria, e depois o Severino Mosca-Morta me contou o acontecido,
quando foi devolver meu gel de cabelo.
Não
falei que as fofocas correm nesse prédio? Mais velozes que o Lewis Hamilton.
Mais velozes até que a velocidade cinco do Créu!
–
Por que o Severino Mosca-Morta pegou seu gel emprestado? – perguntou Valentina. – Ele é careca!
–
Para fixar um galho da árvore de natal da portaria que insistia em ficar caído.
A
propósito, Severino Mosca-Morta é o zelador do prédio. Já deu para perceber que
a gente gosta de dar uns apelidinhos para as pessoas, né?
–
Com gel de cabelo? – estranhou Cristiana. – O laquê da Dona Lourdes já tinha
acabado?
–
Sei lá.
–
O que o peru estava fazendo na janela? – insistiu Leandro.
–
Longa história, querido – desconversou Cristiana.
–
A história longa é que alguém olhou pela varanda e disse “vou encaixar esse
peru na cabeça duma velha...” – brincou Serginho. – Daí mirou na Dona Cida, e
deu no que deu.
–
Engraçadinho! – reclamou Cristiana, levando na esportiva. – Mas não esquenta,
não, porque o Pedrão foi comprar outro.
–
E onde é que ele vai achar um peru assado hoje?
–
Tu não conhece meu namorado. Aquilo ali é capaz de dar nó em pingo d’água!
Daqui a pouco ele chega com um peru novo em folha.
–
Só espero que não seja o mesmo que andou furunfando na peruca da Dona Cida –
comentou Serginho, dando uma risadinha debochada.
–
Ele é doido, mas nem tanto – garantiu Cristiana. Ouvimos a campainha. – Aí!
Deve ser ele.
Mas
não era.
Vicente,
o último convidado que faltava, surgiu à nossa porta, com seu visual hippie de
sempre – uma camiseta vermelha folgada, calça preta de brim, All Star também preto, e aquela barba
por fazer que, somada ao cabelo comprido, até os ombros, o fazia parecer um
ator prestes a interpretar Jesus Cristo no natal. Ou o Ashton Kutcher, em sua
primeira temporada em Two And a Half Men.
Ele
é um universitário sem-teto que mora no casarão do nosso teatro – mas a
diretoria não pode nem desconfiar disso! –, e vive fazendo um verdadeiro
malabarismo para manter sua presença escondida ali dentro. O que inclui fingir
ser um fantasma.
Estava
carregado de sacolas – duas de supermercado, sem dúvida pesadas, nas mãos, e
uma de papel presa entre os dentes, provavelmente com o presente do amigo
secreto –, e equilibrava um vasinho de madeira com um belo arranjo de poinsétia
vermelha – também conhecida como flor-do-natal – num dos braços meio erguido,
apertando o vasinho junto ao peito. Assim que passou pela porta, abandonou as
sacolas perto do sofá, segurou o vaso com as duas mãos, se ajoelhou diante de
mim, e começou a recitar um trecho de Don Juan Tenório – o mesmo que o
Professor Girafales recitou para a Dona Florinda num dos episódios do Chaves:
– “Oh!
Sim, belíssima Inês! Espelho e luz de meus olhos; escutar-me sem zanga, como
fazes, amor: olha aqui a teus pés, pois, todo o altivo rigor deste coração
traidor que se render não cria, adorando, vida minha, a escravidão de teu
amor”.
Tive
que rir, principalmente da cara que a Cristiana fez: de novo aquele olhar “te
peguei”, anunciando a descoberta do meu suposto namorado misterioso. E, de
novo, ela estava enganada. Mas como eu nunca fujo de uma boa polêmica, decidi
dar sequência na cena:
– “Cala-te,
por Deus, Don Juan! Que não poderei resistir muito tempo sem morrer, tão nunca
sentido afã”.
Aquela
era uma boa cena para exercícios de atuação nos ensaios. E Don Juan Tenório era
uma peça que encenávamos pelo menos uma vez por ano desde o nascimento do grupo
Máscaras. Nosso grupo tinha certo apego sentimental por essa peça,
principalmente porque o nosso casarão-teatro é assombrado pelo fantasma do Don
Juan Tenório, mas essa é uma outra história.
Vicente
se levantou, enquanto trocávamos risadinhas cheias de cumplicidade, e me
entregou as flores.
Cristiana
pigarreou, ainda com aquele olhar astucioso no rosto.
–
As flores são para as duas, na verdade – explicou Vicente –, mas eu não quero
apanhar do Falabella. Falando nisso, cadê ele?
Falando
assim, parece até que ele é super
ciumento, quando, na verdade, ele é bem relax.
–
Foi atrás do peru – respondeu Cristiana. E, ao ver o cenho de Vicente franzir,
com a boca entortando numa risadinha debochada, acrescentou: – De natal!
Vicente
pareceu confuso, por um momento. Em seguida lançou um olhar que claramente
dizia “melhor eu nem perguntar”, e se abaixou para retirar os refrigerantes das
sacolas.
–
Ah, eu também trouxe... – disse ele, retirando parte do conteúdo da sacola de
papel. – Brinquedinhos! – E exibiu duas coxinhas de peru de borracha, daquelas
que apitam quando a gente aperta, encarando os dois cachorrinhos, que agora
corriam e pulavam ao redor dele. – Trouxe uma pro Piripaque e uma pro Picolé,
que é para não dar briga.
E
desembalou-as, dando uma para cada um. Os dois pequeninos agarraram os
brinquedinhos e começaram a mordê-los, animados, fazendo os apitos ecoarem pela
sala.
–
Mais fáceis de agradar do que crianças – comentou Ivan, observando a alegria
dos cãezinhos.
–
Não tenha dúvida disso – concordou Cristiana. – Um brinquedo para cachorro: no
máximo cinco conto na loja de 1,99.
Presente de natal para uma criança parar de fazer birra hoje em dia: 200 reais
num Tablet ou quinhentos num PlayStation! É por isso que eu amo o
Piripaque.
–
Entra aí, gente – convidou Pedrão, entrando subitamente no apartamento, seguido
pela Dona Lourdes e pelo Seu Ezequiel, mais ou menos a tempo de ouvir a
declaração de amor de sua namorada pelo cachorro. E o mais importante,
carregando uma travessa com um belíssimo peru assado, douradinho e suculento.
–
Boa noite – cumprimentou Seu Ezequiel, com uma garrafa de vinho na mão.
Havia
um ponto de interrogação na cara do Ivan e do Serginho, mas eu compreendi o que
estava acontecendo assim que bati os olhos no peru assado: uma vez que tinha
sido aberta a temporada de caça ao peru de última hora, e o Serginho não
conseguiu arranjar, o Pedrão não achou onde comprar, e, conhecendo-o como eu
conheço, deve ter se sentido pessoalmente responsável pela perda do bicho – que
descanse em paz, de preferência longe do cabelo ensebado da Dona Cida –, e deve ter apelado para convidar
qualquer pessoa que tivesse um peru assado grande o suficiente para nove
pessoas. Bem, onze, agora.
Pedrão
lançou a todos um olhar que claramente dizia “não perguntem”.
Nem
precisávamos.
–
Uau! Já chegou todo mundo... – comentou Pedrão, para quebrar aquele silêncio
tenso que se instaurou com a chegada dos dois “adultos” no recinto.
–
A gente só estava esperando vocês – respondi.
–
Melhor a gente atacar a comida primeiro, e fazer o amigo secreto depois, né,
gente? – propôs Cristiana. – Senão o rango vai esfriar.
Todos
concordamos, e começamos a distribuir os pratos, que tínhamos deixado
empilhados na mesa da cozinha. Ainda bem que tínhamos separado doze pratos, em
vez de nove contadinhos, assim ficou parecendo que receber a Dona Lourdes e o
Seu Ezequiel já estava nos planos desde o princípio.
–
Trégua? – propus à síndica, entregando-lhe um prato.
Ela
assentiu, mas parecia em dúvida. Abracei-a pelos ombros para demonstrar que não
havia ressentimentos. Tudo bem que tínhamos vinte e cinco discussões mensais –
no mínimo! –, e que nós a chamávamos de bruxa
ou de velha coroca, ou de coisa ruim quando ela não estava
olhando, e que ela também adorava implicar com o pessoal do nosso andar – dos
nossos andares, na verdade, já que havia moradores de dois andares na casa –,
mas nada disso tem importância de verdade. É natal, e nessa época do ano, temos
que deixar essas picuinhas de lado, e conviver como o que praticamente somos:
uma família. Meio esquisita e completamente disfuncional, mas uma família mesmo
assim.
–
Dá alguma coisa aí preu comer – pediu
Serginho, pegando um prato da pilha.
–
Toma aqui um garfo – disse Pedrão, entregando o utensílio.
–
Ra-rá! – debochou Serginho. – Oba! Purê de batata!
–
Nunca vi alguém ficar tão animado com purê... – sibilou Valentina, rindo.
–
Amor, natal sem peru e purê de batata não é natal – disse Serginho. Pareceu
refletir em seguida, mergulhando outra vez a concha na tigela de purê. –
Pensando melhor, pode até faltar o peru, mas não o purê.
–
Entendi. Você é maluco por purê.
–
Isso aí.
–
Olha só... – Vick chamou atenção de todos. – Nada de briga pelas coxas do peru,
hein, gente! Vamos respeitar.
–
Bem, uma delas, por direito, é da Dona Lourdes – avisou Pedrão.
–
Ah, não se preocupe, filho, eu só gosto do peito do peru – disse a síndica.
–
Uma é minha! – determinou Leandro, lançando um olhar significativo para Pedrão,
que já estava com a faca na mão para fatiar o bicho.
Ninguém
contestou. Afinal de contas, ele pagou pela ave que caiu pela janela.
–
Quem quiser a outra, então, vamos disputar na porrinha – propôs Pedrão.
–
Hum... Cristiana, sua sopa está com um cheirinho maravilhoso – comentou Vick,
servindo-se de algumas conchas.
Ela
acabou sendo a única a começar pela sopa. Todo mundo estava preocupado em
disputar algum pedaço favorito do peru, antes que outra pessoa o agarrasse.
Peguei uma faca e me preparei para enterrar na primeira pessoa que olhasse para
a minha asa.
Brincadeirinha!
Claro que eu não ia esfaquear ninguém. Mas tirar a asa do prato de quem a
agarrasse primeiro passou pela minha cabeça.
–
Nunca vi molho de macarrão dessa cor – comentou Ivan, observando a cobertura
meio rosada, meio alaranjada do molho. – Quem foi que fez?
–
É o meu molho especial supersecreto – disse Pedrão.
Que
todo mundo sabe que é feito com tomate, maionese, alho, páprica e salsa.
Azeitonas a gosto. Mas vocês não souberam disso por mim!
–
Molho especial supersecreto? – disse Serginho, com deboche. – Vai ter coragem
de provar essa gororoba, Ivan? Quem fez foi o Falabella...
–
Ih... Tá me tirando, rapá?! Pro seu
governo, meu macarrão é uma delícia! – declarou Pedrão, cheio de moral. –
Sempre que não vira cola...
–
A fábrica do Superbonder continua
ligando, atrás da receita – acrescentou Cristiana, dando uma risadinha.
–
Não é tão grudento assim, vai... – defendeu-se Pedrão.
–
Não, imagina... Se jogar o prato pra cima, ele gruda no teto – disse Cristiana.
– Nem com picareta você consegue desgrudar de lá. Tem razão, não é Superbonder, não; é cimento industrial,
o negócio!
–
Tá, mas quando eu acerto o ponto, como hoje, não tem macarrão melhor.
–
Isso é verdade! – concordei, me apropriando da minha asa de peru.
Fiquei
até surpresa por descobrir que só o Pedrão e o Seu Ezequiel estavam
interessados na outra coxa. Acabou que a disputa foi no par ou ímpar – para
poupar tempo –; o Pedrão ganhou, mas com todo espírito natalino, acabou
cedendo-a ao porteiro.
–
Feliz natal, Seu Ezequiel – disse Pedrão, com um sorriso simpático.
–
Obrigado, moço! – disse o porteiro, feliz como uma criança por ter ficado com
seu pedaço favorito da ave.
Cristiana
deu um sorriso bastante impressionado para o namorado. Havia grande orgulho
explícito nele, também.
–
Hum... – murmurou Valentina, deliciada, dando uma garfada no macarrão. – Seu
cimento-cola está uma delícia, Pedrão. Depois vou querer a receita do molho.
Pedrão
lançou ao Serginho um olhar que dizia “tome, cego”, e sussurrou os ingredientes
ao ouvido de Valentina, enquanto ela anotava no celular.
–
Espera aí... – sibilou Valentina, digitando o mais rápido que conseguia. –
Azeitona é com “s” ou com “z”?
–
É com caroço, amiga – respondeu Cristiana.
–
Não é, não – disse Pedrão. – Essa é fatiada.
–
Tudo bem eu ter convidado a Dona Lourdes? – sussurrou Pedrão, pertinho do
ouvido de Cristiana, quando todos estavam distraídos em alguma conversa,
espalhados pela sala do apartamento. Nossa cozinha também era pequena demais
para acomodar tanta gente.
–
Claro – disse Cristiana.
–
Quando eu estava entrando de novo no prédio, ouvi o Seu Ezequiel comentando com
o Severino que a Dona Lourdes ia passar o natal sozinha, e o tinha convidado
para a ceia, já que a família dele também mora longe. Daí eu resolvi convidar
os dois. Sei lá, é horrível ficar sozinho nessa época do ano.
–
Pior que é – concordou Cristiana. – A gente até comentou isso hoje à tarde, não
foi, Manu?
Assenti.
Leandro e eu estávamos falando sobre a nova comédia que vamos começar a ensaiar
depois do ano novo, mas ouvimos um pedaço da conversa.
–
A mim também não incomoda em nada a presença dos dois – acrescentei. – É até
provável que a gente se divirta mais. Seu Ezequiel sóbrio já é meio engraçado;
imagine depois de algumas taças de vinho.
Não
que estivéssemos usando taças; é mais força de expressão.
Sem
falar que o peru estava uma delícia. Dona Lourdes podia até ser uma velha cricri,
mas a danada sabe cozinhar! Cheguei
a dizer isso a ela enquanto comíamos. Não com essas palavras, é claro.
–
O segredo está no conhaque e no alho – ela me disse, orgulhosa.
Ela
sempre foi meio durona, mas dava para ver que estava feliz por ter tanta gente
em volta dela naquela noite. Ficou engajada numa conversa com a Vick e com o
Vicente, sobre algo que devia ser muito engraçado, porque a Vick gargalhava a
toda hora.
Seu
Ezequiel também parecia enturmado, conversando com o Ivan, se eu entendi bem do
outro lado da sala, sobre a irmã do Ivan, que costumava vir passar o natal com
ele todos os anos, exceto este.
–
A minha irmã está no céu – disse Ivan, quando o porteiro perguntou por que ela
não veio.
–
Ah... – sibilou Seu Ezequiel. – Sinto muito. Não sabia que ela tinha morrido.
Ela era tão jovem, e parecia tão cheia de vida...
–
Não... – explicou Ivan, dando uma risada meio supersticiosa para espantar o
comentário. – Ela está num avião. É aeromoça. Tinha um voo marcado hoje para Natal, curiosamente.
–
Ah! – exclamou o porteiro. E também riu, desculpando-se pelo mal-entendido. E
virou o copo de vinho na boca, talvez para disfarçar o rubor.
Nesse
momento, o interfone tocou.
–
Ué...? – Franzi o cenho.
–
Estava faltando alguém? – perguntou Valentina, enquanto Pedrão se levantava
para atender.
–
Não – respondeu ele, caminhando até o interfone. – É o peru.
–
O Severino ficou na portaria, para eu poder jantar – explicou Seu Ezequiel. É
só pedir para ele liberar a entrada do entregador.
–
Outro peru? – indagou Vicente, confuso.
–
Sim, sim! Pode mandar subir, Severino – disse Pedrão, ao interfone. – Valeu.
O
entregador apareceu na nossa porta um minuto depois, e Pedrão foi abrir a
embalagem de plástico que recobria a forma de papel de alumínio na mesa da
cozinha.
–
Alguém quer uma coxa? – perguntou, já enfiando a faca no bicho.
–
Eu quero! – disse Vicente, avançando em direção à cozinha.
–
Vai mais uma asa aí, Manu? – ofereceu Pedrão, em seguida.
–
Valeu. Estou satisfeita. Com o peru – acrescentei. – Ainda tenho espaço para as
outras coisas.
–
Nem desconfiava disso – alfinetou Cristiana, com sarcasmo. Ela sabe que eu não
resisto a uma boa sobremesa.
–
Bem, quem quiser mais algum pedaço, o peru está na mesa – disse Pedrão,
retornando à sala com uma coxa bem carnuda na mão.
Devia
ter desconfiado que seu desapego em ceder a coxa do peru da Dona Lourdes ao
porteiro não era só amor no coração...
–
Você comprou outro peru? – indagou Cristiana, surpresa, quando ele se
aproximou.
–
Estavam terminando de assar quando passei naquela padaria lá perto da caixa
d’água – explicou Pedrão, acomodando-se de volta ao lado dela no tapete. – Eu
deixei pago e dei o endereço para entregar.
–
Achei que... – ela se interrompeu, e deu outro sorriso cheio de orgulho para
ele.
Afinal,
não foi por causa do peru que ele convidou a Dona Lourdes e o Seu Ezequiel.
Sim, ele tem um grande coração. Só não se aplica diretamente às coxas do peru.
–
Vou pegar mais sopa – avisou Vick, pouco tempo depois, dirigindo-se à cozinha
com o prato dela e o de Valentina na mão.
–
Também quero – eu disse, me levantando.
Vicente
e eu disputamos o espaço para entrar na cozinha, como costumávamos fazer sempre
que passávamos por alguma porta estreita. Não precisava ter olhos na nuca para
sentir o olhar desconfiado de Cristiana sobre nós. Ela ainda estava pensando
que o Vicente havia me mandado o ursinho e os bombons de manhã. Estava errada.
Mas se era para deixá-la pensar que meu suposto namorado misterioso estava na
nossa sala, então que fosse alguém parecido com o filho de Deus.
Vick
entregou o prato de Valentina na bancada, e voltou para a mesa, para misturar
um pedaço de batata assada na sopa em seu prato. Foi só ao chegar à sala que
Valentina percebeu que estava comendo sopa com o garfo.
–
Cabeça... – murmurou, retornando à bancada, enquanto fazíamos fila para chegar
à panela. – Alguém aí me dá um garfo para comer a colher?
Houve
silêncio por um segundo dentro do apartamento, e depois algumas risadas
tímidas, mal abafadas, misturadas a olhares confusos.
–
Ela pediu um garfo para comer a colher...? – indagou Ivan, parando com a
garrafa de vinho a três centímetros da borda do copo. Parecia estar decidindo
se as pessoas naquele apartamento já não tinham consumido álcool o suficiente.
–
Jesus, Maria, José! – exclamou Serginho. – Como é que é isso? Comer colher com
garfo...? Você é faquir, Valentina?
–
É... – balbuciou ela, sem graça. – Sopa! – E também não aguentou, e começou a
rir. – Eu quis dizer uma colher para comer sopa.
–
Tenso! – disse Leandro, levando o copo de vinho aos lábios, mas esperando um
momento para beber. – Vamos retirar as bananas da casa...
–
Por que a culpa é sempre da banana, hein? – perguntou Vick, tentando não rir...
muito... na frente da Valentina.
–
Elementar, minha cara – respondi. – Tá lá no Aurélio: comer banana é o ato ou
efeito de alimentar o Tico e sequelar o Teco!
–
É como eu sempre digo: não dê bananas aos doidos! – acrescentou Leandro,
entornando o copo de vinho em seguida. – Desculpa aí, Valentina.
–
Eu mereço... – murmurou ela, com espírito esportivo. Mas deu um tapa um pouco
mais forte do que o normal na parte de trás da cabeça dele ao passar.
Leandro
riu. Desconfio que ele estava começando a ficar bêbado. E mal estávamos na
terceira garrafa ainda. Para onze pessoas, nada de mais... Deduzi que ele já
devia ter bebido alguma coisa antes de vir para cá.
Começamos
a atacar as sobremesas quase em seguida: a rosca de nozes da Valentina – que
era muito mais leve e fofinha do que parecia –, as rabanadas da Vick, o pavê de
pão de mel com cobertura de glacê de nozes e frutas vermelhas do Ivan...
Aliás,
nota mental: arrancar o armário da vida desse moleque e casar com ele! Ou
ganhar a Mega Sena da Virada para contratá-lo como meu confeiteiro particular;
o que for mais fácil.
E
por último, o sorvetone em formato de
boneco de neve do Serginho. Que também estava uma delícia, mas sabemos que não
era receita dele, nem da mãe dele, nem da avó dele. Era receita da Teodora. Da
Padaria Teodora!
Estava
tudo muito bom, tudo muito bem, mas exatamente nesse momento, enquanto
experimentávamos todas aquelas delícias que certamente nos fariam lutar com a
balança e visitar o dentista muito em breve, como se já não tivesse acontecido
absurdos demais nesse natal... Acabou a luz.
–
Como assim, gente? – estrilou Serginho, depois que todos demos gritinhos e
vaias para a escuridão e acendemos as lanternas dos celulares. – Acabar a luz
em plena véspera de natal? Que tipo de birosca é essa que a gente tá alugando?
E aí, Dona Lourdes? Vamos tomar alguma providência?
–
Eu vou lá dar uma olhada na caixa de força – disse Seu Ezequiel, acendendo
também a lanterna do celular, e dirigindo-se à porta.
–
Bem que a gente podia aproveitar esse escurinho para contar umas histórias de
terror... – sugeriu Vick, fazendo uma voz sinistra ao final da frase,
iluminando o próprio rosto de baixo para
cima com a lanterna do celular.
–
Era uma vez um Papai Noel sinistro que apagava as luzes dos prédios na véspera
de natal, só se for – disse Ivan, aparentemente servindo mais vinho em seu
copo. Também podia ser refrigerante, não dava para enxergar direito naquela
escuridão.
Um
telefone tocou perto de mim. Percebi pela música de boate que era o do Leandro.
–
Alô? Oi. Está sim, mas olha só, ele já tá mais ou menos na oitava cerveja, não
tá falando lé com cré; você tá
falando Jesus, ele tá entendendo Genésio. Tem certeza que você quer falar com
ele assim mesmo? Acho que é melhor você ligar depois; tipo amanhã, depois que a
ressaca passar. Falou, eu aviso. Abraço... Tchau, tchau.
–
Queriam falar com quem? – perguntou Vick, curiosa. Por incrível que pareça, não
tinha ninguém bêbado. Ainda...
–
Sei lá... Com um tal de Guto. Conheço não.
–
E porque inventou essa história toda? – perguntei.
–
Só pro cara não perder a viagem.
–
Bom, o cara com certeza não deve estar pensando boa coisa do tal Guto, agora –
disse Valentina.
–
Bobagem! – bufou Leandro. – Todo mundo bebe um pouquinho a mais na véspera de
natal.
A
luz voltou logo em seguida e todos aplaudimos a eficiência do Seu Ezequiel
quando ele retornou ao apartamento.
–
Gostei de ver a agilidade – disse Ivan. – Está merecendo um aumento de salário,
não é, não, Dona Lourdes?
–
Claro, é só aumentar um pouquinho o valor do condomínio – respondeu a síndica.
–
Foi mal, Seu Ezequiel. Tentei! O que aconteceu?
–
Foi só um probleminha de gato – respondeu o porteiro.
–
Quem foi que puxou gato da caixa de força do condomínio? – perguntou Dona
Lourdes, religando o modo carranca,
doida para comer o rabo de alguém na vizinhança.
–
Não... Foi o gato da Dona Dolores, aí da frente, que se enfiou na caixa de
força, provavelmente caçando algum rato ou lagartixa, e saiu pisando nos
disjuntores, desligando tudo. Apagou a luz de todos os apartamentos desse
andar. Já religuei tudo.
Quando
fui apagar a lanterna do celular, percebi que tinha uma mensagem não lida da
Malu, avisando que encontraram o rabecão lá para os lados de Vila Nova
Cachoeirinha. Felizmente, não mexeram nem no caixão do Seu Aristides, nem na
urna com as cinzas do Seu Vigário. Porém, ninguém foi preso: Papai Noel e seus
cúmplices continuam foragidos, à procura de um novo trenó menos bizarro para
entregar os presentes esta noite.
–
Acharam cedo, até – comentou Cristiana, quando contei a ela.
–
Também pensei que só fossem encontrar lá para segunda-feira – acrescentei.
–
O quê? – perguntou Pedrão, pegando o bonde andando.
–
O carro da funerária do meu pai, que tinha disso roubado hoje cedo pelo Papai
Noel.
Leandro
estalou numa gargalhada.
–
É sério! – acrescentei. Embora a história parecesse surreal, mesmo. E como
todos os olhares se voltaram para nós, eu os atualizei sobre a recém-descoberta vocação criminosa do
pessoal do Polo Norte.
–
Quê isso, gente? – estrilou Leandro. – Papai Noel virou trombadinha...?
–
Se até o Bom Velhinho está chefiando uma quadrilha, é sinal de que o mundo está
perdido, mesmo... – comentou Ivan. – Daqui a pouco vão ter que instaurar a CPI
do trenó...
–
Agora você vê... – comentou Pedrão. – Antigamente Papai Noel se contentava com
pratos de biscoitos e um copo de leite; hoje em dia, ele quer o pagamento em
dólar e uma conta na Suíça!
–
Desse jeito, até eu vou querer me candidatar a esse emprego – acrescentou
Serginho.
–
Mas, convenhamos, foram bandidos muito criativos, hein – riu-se Vick. – Ou com
muito espírito natalino.
–
Não dá mais pra confiar em ninguém, mesmo... – disse Valentina.
–
Tá, gente, mas vamos parar de falar em coisa ruim, porque hoje é natal –
atalhou Pedrão.
–
Falando em coisa ruim, cadê a Dona Lourdes? – perguntou Cristiana, baixinho. E
só então nos demos conta de que ela não estava na sala. E não vimos ninguém
passar na direção do banheiro. – A velha virou fumaça?
–
Ela disse que ia buscar alguma coisa lá no apartamento dela – informou Vick. –
E o Seu Ezequiel foi lá render o Severino na portaria.
–
Bem, é melhor a gente começar logo o amigo secreto, né? – sugeriu Leandro.
–
Certo – disse Cristiana. – Quem quer começar?
–
Vamos em ordem alfabética – sugeriu Serginho.
–
Então, é com você Manu! – disse Cristiana.
–
Nem vem – rosnei. Ninguém precisava me lembrar do nome que constava nos meus
documentos em plena véspera de natal. – É com você, Cristiana!
–
Tá, que seja – ela disse, e foi buscar seu presente embaixo da árvore, junto
com os outros. – A pessoa que eu tirei...
–
É um ser humano! – interrompeu Leandro.
–
Sabe que eu estou em dúvida sobre isso...? – refletiu Cristiana. – Porque, veja
bem... Ele é especialista em ficar escondido, não tem endereço fixo... Pelo
menos, não um endereço oficial... Às vezes parece uma presença etérea,
onipresente nos cantos mais recônditos do nosso teatro... E, reza a lenda que
ele é o fantasma do maior libertino de todos os tempos... O que é um contraste
e tanto com a aparência do homem mais santo que já pisou nesta Terra...
–
Vicente! – gritamos em uníssono.
Ele
se levantou para receber seu presente: um par de óculos de visão noturna.
–
Agora você não vai mais tropeçar em qualquer bagulho largado pelo contrarregra
no meio do caminho quando o Otávio ou a Rita resolverem aparecer no casarão de
madrugada, e você tiver que se esconder deles no escuro.
Isso
quase o delatou uma vez. Sorte dele
conhecer cada passagenzinha do casarão – por menor que seja e por mais
improvável que pareça permitir a passagem de um ser humano adulto –, ser
rápido, flexível e muito escorregadio.
–
Opa! Valeu – disse ele, guardando os óculos de volta na sacola, antes de abrir
o outro embrulho, o presente de grego: uma tesoura de cabeleireiro.
Um
ponto de interrogação surgiu em seu rosto ao erguer a tesoura.
–
Passou da hora de cortar esse cabelo, hein, Ashton Kutcher – explicou
Cristiana.
–
O que vocês acham, meninas? – perguntou ele, jogando a decisão para a galera.
Vick
e eu fizemos o coro do não. Valentina não opinou.
–
A voz do povo é a voz de meu Pai – decidiu Vicente, com um tom de voz
reverente, guardando a tesoura.
Cristiana
revirou os olhos, dando uma risadinha e foi se sentar ao lado do namorado no
tapete.
Vicente
também pegou seu presente embaixo da árvore de natal, e começou a nos dar
dicas:
–
Eu tirei uma pessoa incrível, linda... – Nessa parte, Ivan se levantou
envaidecido, só para deixar o Vicente sem graça, e fazê-lo acrescentar
depressa: – Mulher! – Ivan se sentou novamente, fingindo desapontamento. – Mas
eu não me atrevo a pronunciar o nome dela assim tão perto das facas da cozinha,
porque eu temo pela minha integridade física...
–
Manu! – gritaram todos em uníssono, de novo.
E
eu me levantei. Felizmente não passou pela cabeça de ninguém pronunciar a
palavra com “A” (meu nome), senão eu teria mesmo que recorrer ao nosso
maravilhoso faqueiro com dez peças super afiadas.
Dona
Lourdes retornou ao apartamento bem nesse instante, enquanto eu abraçava o
Vicente, trazendo o que parecia ser uma travessa de lindos cupcakes caseiros. E sentou silenciosamente no lugar que Vick tinha
guardado para ela ao seu lado, no sofá.
Não
consegui conter um gritinho eufórico ao abrir o meu presente: o DVD do Enrique
Iglesias Belfest Live Concert! Enchi
a capa de beijos na mesma hora. Todo mundo sabe que eu sou louca por esse mau
caminho espanhol. Melhor do que isso, só se alguém conseguisse trazer o
próprio, em carne e osso, para dentro do meu apartamento.
–
Eis a pessoa que menos teve que pensar no que compraria para o amigo secreto –
comentou Cristiana, apontando para o Vicente. – O nome do Enrique Iglesias
praticamente se materializa por cima do nome da Emanuelly no papelzinho. A
dúvida só pode ser entre o CD ou o DVD.
Mandei
um beijinho no ombro para ela, ainda agarrada no meu novo mimo, e abri o
presente de grego: uma camiseta amarela. E não qualquer amarelo: gema de ovo!
Nem a estampa com um cachorrinho extremamente engraçadinho conseguia tornar
aquela cor menos hedionda.
–
Jesus! – exclamei, tentando não torcer o nariz para aquela camiseta. Embora
todo mundo saiba que eu odeio amarelo, e esse ser precisamente o motivo de ser
o meu presente de grego.
–
Só não vale usar como pano de chão – disse Vicente, rindo da minha expressão.
–
Mas fundo de gaveta tá valendo, né? – E ri também, guardando meus presentes de
volta na sacola. Nada que um bom spray com tinta para tecido não resolva.
Em
seguida apanhei o presente do meu amigo secreto e me recompus das últimas
emoções para começar a dar minha dica.
–
Vocês não têm ideia de como é difícil comprar presente para uma pessoa que
aparentemente tem todas as coisas que já foram inventadas e fabricadas desde o
início dos tempos dentro do próprio apartamento...
–
Serginho! – Todos gritaram.
Meu
presente não era muito criativo, mas algo que eu sabia que ele não tinha e que
iria gostar: um box com os quatro filmes mais divertidos do Mel Brooks – O Jovem Frankenstein, Banzé No Oeste, S.O.S. Tem Um Louco Solto No Espaço e A Última Loucura de Mel Brooks. Serginho gosta de filmes antigos e cults, e é meio complicado, realmente,
encontrar esses filmes em DVD, mesmo para quem está acostumado a desenterrar
coisas impossíveis do fundo das galerias de São Paulo. Para conseguir aquele
box eu tive que recorrer ao amigo de um amigo de um amigo que conhecia um cara
que trabalhava numa loja de discos e filmes antigos, com precinhos até
camaradas.
O
presente de grego foi mais fácil de escolher: como ele é palmeirense roxo, dei
a ele um lindo porquinho de pelúcia vestido com a camisa do Corinthians. Com um
pouco de sorte, ainda poderia salvar uma alma do purgatório.
–
A pessoa que eu tirei... – disse Serginho, após guardar seus presentes. Estava
certa, ele gostou dos DVDs; e torceu o nariz para a camisa do Corinthians no
porquinho. Chegou a dizer que ela entupiria sua privada mais tarde. Acho que o
olhar zangado da Dona Lourdes quando ele mencionou o provável futuro problema
nos encanamentos pode ser capaz de salvar a vida daquela camiseta tão preciosa.
Mas é bem possível que ela passe a enfeitar o banheiro dele, de qualquer modo.
– É famosa por ter algo em comum com certo escritor italiano do século
dezoito...
–
Casanova!
O
mais interessante nos presentes do Serginho para o Leandro foi o presente de
grego, que valia mais pelo recado que transmitia, e que ele fez questão de
verbalizar ao entregá-lo:
–
Segure o Tchan!
Sim,
era um CD do É o Tchan! Antiquíssimo.
–
Pirata!? – observou Leandro, erguendo uma sobrancelha acusadora.
–
Onde? – indagou Serginho, olhando para os dois lados, fazendo-se de
desentendido. –Não, não, não! Mídia digitalmente reproduzida, sem fins
lucrativos.
–
Sei... Diga isso à polícia e tente convencê-los – replicou Leandro, dando uma
risada sarcástica.
–
Tirem as bananas da casa quando a minha amiga secreta estiver por perto! – Foi
a dica do Leandro.
E
antes que pudéssemos abrir a boca, Valentina se levantou:
–
Palhaço!
–
É meio misturinha, mas é uma gatinha – acrescentou Leandro, abraçando-a, todo
galante. Ou quase isso.
E
o presente de grego que deu a ela foi precisamente uma banana de borracha que
apita – como os brinquedinhos dos cachorros.
–
Gente, que cisma vocês têm comigo e a banana... – reclamou Valentina, mas não
estava brava de fato.
Isso
é só porque ela vive confundindo as coisas que vai dizer, o que faz parecer que
ela está constantemente sob a influência de alguma substância perigosa. Tipo a
banana.
Sabemos,
claro, que a Valentina não é burra – verdade seja dita, a menina sempre foi a
melhor aluna da turma dela na escola, e dois anos consecutivos tirou notas
acima de noventa no ENEM: 2007 e 2008. Então, claro que ela é uma garota
inteligente. Mas vive trocando as bolas sempre que abre a boca; talvez por
timidez, talvez por desatenção. Cinco minutos de conversa com a Valentina é
sempre garantia de boas risadas.
–
Meu amigo secreto... – ela disse, erguendo uma sacola de presentes púrpura
cintilante. A própria sacola já parecia uma dica.
–
Ivan! – Vick e eu não resistimos em gritar logo.
–
Gente, deixa a menina terminar de dar a dica... – reclamou Ivan.
–
E precisa?! – indagou Vick, apontando para a sacola com a cor favorita dele.
Ignoremos
a camisa rosa e o DVD do Ricky Martin, porque é muito estereotipado. E vamos
direto à dica do Ivan a respeito de seu amigo secreto:
–
Eu tirei uma pessoa... Ela é magérrima, loira, toda gata... Mas passou por uma
metamorfose hoje, apareceu aqui com o cabelo Mega vermelho, um pouco mais
baixa, um pouco mais cheinha, e infinitamente mais legal...
–
E como quem foi namorar perdeu o lugar... – completou Vick. – Com todo o
respeito, Serginho... Perdeu também o presente de natal! Então, passa pra cá
essa sacola!
Vick
abriu o presente, toda saltitante.
–
Se for roupa vou ter que mandar alargar no quadril. Ou trocar por um número
maior.
–
Não é, não – disse Ivan.
Era
um livro fotográfico, contando a história da moda desde o início do século XX
até os dias atuais: as diferentes tendências, os grandes estilistas, as modelos
mais famosas... Um livro muito patricinha, e bem a cara da Amanda. Nada a ver
com a Vick.
–
Interessante... – ela disse, depois de dar uma folheada no livro e rir da ideia
certeira do Ivan de comprar aquilo para a Amanda.
–
Se eu soubesse que teríamos essa substituição de última hora, teria comprado
algo mais a sua cara – desculpou-se Ivan.
–
Esquenta, não, garoto – disse Vick, fazendo um gesto para descartar o comentário.
– Eu gostei. Essas fotos são lindas, e, vai ser legal conhecer a história por
trás de... – Fez uma pausa. Parecia estar procurando uma palavra simpática. –
Olha, não vou mentir, quero saber o que tinham na cabeça as pessoas que
desenharam a moda dos anos setenta. E oitenta! Aquilo foi um horror!
Nem
preciso dizer que o amigo grego também não funcionou. Ivan tinha comprado uma
boneca da Fiona, que fez Vick cair na gargalhada.
–
Você estava querendo apanhar da Amanda, né?! – caçoou ela, com a boneca na mão.
– Amei! Vai fazer companhia para a minha Pedrita e para a galera do Scooby-Doo.
– Se inverter o jogo dá
certinho: o amigo secreto e o amigo grego da Amanda são praticamente o amigo
grego e o amigo secreto da Vick – comentou Leandro.
– Pior que é – concordou Vick.
Pode-se considerar um elogio dizer que ela é o exato oposto da ex-futura Sra. Ranja Tudo.
–
Acho até que já dá para saber quem foi que você tirou – comentei. – Por que só
está sobrando o Pedrão e a Cristiana, e ele não deve ter tirado ele mesmo...
–
Oh, amor, você me tirou?! – disse Cristiana, toda dengosa para o namorado. – E
não me falou nada...
–
Amigo secreto tem que ser secreto – disse Pedrão, agarrando seu presente
debaixo da árvore de natal.
–
Não contou nada, e ainda trouxe dois presentes! – observei. – Isso, sim, é
amor.
Cristiana
abriu o presente dela, enquanto Pedrão abria o presente da Vick. O presente
unissex que ela comprou era o DVD We Are
The Champions Edição Especial, do Queen.
–
Todo mundo gosta do Queen – explicou Vick, com ar de quem sabe das coisas, ao
ver a expressão impressionada no rosto de Pedrão.
Também
não deve ter sido fácil pensar num presente de grego que funcionasse para
qualquer um. Pedrão franziu o cenho ao tirar um retângulo de plástico vermelho
de dentro de um envelope de presente prateado com um enfeite de fita roxa.
–
Isso é...? – ele começou a perguntar, antes de Vick tomar a coisa de sua mão e
erguê-la impetuosamente no ar.
–
Cartão vermelho! – bradou ela. – Caia fora daqui! – E deu de ombros ao
devolver. – Era isso ou uma foto ampliada da Rita...
Pedrão
bateu três vezes na madeira da nossa mesinha de centro.
–
Quanta maldade nesse coração, Vick! Amigo grego é para ser engraçado; não é
para torturar a pessoa.
Rita
Ortega é assessora do Otávio, diretor do nosso grupo de teatro, e não é bem por
ser feia que seria uma tortura ter uma foto dela em casa; essa mulher é uma
urucubaca que alguém jogou na gente. Não só por ser chata e mal-humorada. A
bicha é ruim, mesmo!
Agora,
se fosse para escolher o momento mais surreal desse natal – depois de todas as
coisas surreais que aconteceram ao longo do dia –, acho que eu escolheria o que
aconteceu a seguir, depois que todos já tinham trocado os presentes de amigo
secreto. Ainda havia um pacote embaixo da árvore de natal. E não era para
ninguém que estivesse nos nossos planos receber em casa naquela noite.
Enquanto
iniciávamos uma nova rodada de fofocas, Cristiana apanhou aquele presente e o
entregou para a Dona Lourdes.
–
Mas... – sibilou a síndica, ao mesmo tempo surpresa e emocionada. – Por que
você me comprou um presente?
–
Porque – disse Cristiana – eu sei que a senhora ia passar esse natal sozinha, e
acho que ninguém deve ficar sem presente de natal. Mesmo a senhora não indo
muito com a nossa cara, e nós duas brigando dia sim, outro também... Não queria
deixar esse natal passar em branco. Até porque, de certo modo, a senhora faz
parte da nossa família, né... Não sai do nosso andar... Tudo bem que a senhora
é tipo aquela tia chata que não larga do nosso pé, ou aquela madrinha
fofoqueira, mas, faz parte. E pode não acreditar, mas eu gosto da senhora.
Aceita, é de coração!
Vi
uma lágrima fugir dos olhos da Dona Lourdes. E, confesso que também tive
vontade de chorar. A Dona Lourdes, como a Cristiana disse, era como uma tia chata
ou uma madrinha fofoqueira, mas a verdade é que nós provavelmente sentiríamos
falta se não tivéssemos aquela pessoa difícil para brigar todos os dias naquele
prédio. E afinal, o natal é para isso mesmo, não é? É uma época do ano que
existe para nos lembrar o que as pessoas têm de melhor, e para deixar todas as
encrencas corriqueiras de lado, nos abraçarmos e descobrir o que temos em
comum. Lembrar que somos uma família, mesmo se não tivermos o mesmo sangue.
Dona
Lourdes ficou tão comovida com o gesto da Cristiana que até prometeu tentar
pegar mais leve conosco daqui por diante. Contanto
que a gente também colaborasse. Ou seja: vamos continuar recebendo advertências
da síndica dia sim, dia não.
–
Sempre que fizerem por merecer – confirmou ela, quando Cristiana verbalizou
essa conclusão.
–
Todo dia, então – disse Cristiana, desanimada. E arrematou com uma risadinha
zombeteira.
Depois
disso, Dona Lourdes serviu os cupcakes
que tinha ido buscar enquanto começávamos o amigo secreto. Ela tinha preparado
como sobremesa para a ceia antes ser convidada a se juntar a nós.
–
Para começar 2017 alguns quilos mais gordas, meninas – disse Cristiana, nos
propondo um brinde com os cupcakes.
–
Com isso vocês não vão engordar nada – disse Dona Lourdes. – É light.
Quem
diria! Se bem que, depois das toneladas de massas e sobremesas que já tínhamos
comido naquela noite, não seria um cupcake
que faria diferença nas dietas, realmente.
Daí
em diante, a noite foi bem normal. Fizemos a contagem regressiva para
meia-noite espremidos na varanda, estouramos o champanhe da Vick, trocando
abraços, desejando feliz natal uns para os outros – e feliz aniversário para a
Vick –, vendo os fogos de artifício explodindo no céu negro.
–
Feliz natal! – gritamos de volta para um pessoal que estava no jardim do
prédio.
–
Feliz aniversário! – gritou Vick, olhando para o céu, iluminado por uma chuva
de luzes coloridas. – É nóis, irmão!
–
Tá falando com quem? – perguntou Vicente.
–
Jesus!
E
como já estava nos planos, avançamos todos nas orelhas da Vick, cantando Parabéns Pra Você. O pessoal que estava
no jardim do prédio olhou para cima, gritando e acenando, provavelmente
imaginando – com toda razão – que somos malucos.
Mas,
se alguém perguntar, vamos dizer que a culpa é do champanhe. E das garrafas de
vinho.
–
Vem cá... – Cristiana sussurrou para mim, quando voltamos para dentro do
apartamento, enquanto eu respondia uma mensagem de texto no celular. – Não vai
mesmo me contar quem é o bofe misterioso que te mandou aquele ursinho hoje
cedo?
–
Ah, sim... – respondi. E me aproximei para sussurrar ao ouvido dela. – Depois
do ano novo!
–
Malvada!
Porque,
afinal, estávamos mantendo nosso namoro nas sombras por um motivo. Mas logo,
logo tudo viria a público.
Ah,
e o meu pai recebeu algumas notificações do departamento de trânsito, alguns
dias depois, de infrações cometidas pelo carro da funerária na véspera de
natal. Ao que parece, o rabecão atravessou alguns faróis vermelhos, e o DETRAN
tinha fotos hilárias registradas pelos semáforos no momento das infrações. Ironicamente,
o motorista era uma rena!
Claro
que, com o B.O. na mão, meu pai ficou livre das multas e dos pontos na Carteira
de Habilitação. E ele até pode usar as fotos captadas pelas câmeras do DETRAN
para uma campanha publicitária socioeducativa no natal do ano que vem, já que
essa é uma época do ano em que ele costuma ter bastante serviço na funerária,
porque o povo enche a cara, vai dirigir, e enche a loja dele de presunto.
Então, fica a dica: se for dirigir, não beba! A menos que você queira dar uma
voltinha no rabecão do Papai Noel.
Falando
nisso, será que a habilitação do Rudolf estava em dia? Bem, acho que essa é uma
outra história...
Feliz Natal!
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