Por Talita
Vasconcelos
A
partir daí, nosso dia passou a ser governado pela lei de Murphy que diz que se
alguma coisa puder dar errado, dará; e dará na pior hora, e da forma que cause
o maior dano possível. A decoração do apartamento estava ok – aliás, estava
pronta desde o início de dezembro. Todo o resto, no entanto...
Ficou
combinado que cada um dos convidados traria um prato para a ceia, então,
basicamente, só tínhamos que nos preocupar com a nossa parte, que consistia do
purê de batatas e das batatas que eu pretendia assar para acompanhar o peru –
este, comprado pelo Casanova; mas como ele não fazia ideia do que fazer para
deixá-lo dourado e suculento, acabamos nos oferecendo para assá-lo, assim, pelo
menos, era certeza de que não comeríamos o bicho cru. E também resolvia o
problema de ter que atravessar um pedaço de São Paulo com um peru assado no
banco de trás do carro em plena véspera de natal. Assim não se corre o risco de
ter o carro depredado no sinal e acabar chegando aqui só com o rabicó do bicho.
Não que isso já tenha acontecido com alguém que eu conheça, mas nunca se
sabe...
E
Cristiana ainda iria fazer a sopa especial de vegetais, receita da avó dela,
que, por tradição de família, garantia a quem comesse um feliz natal. Diz a
lenda que havia um ingrediente secreto na sopa que garantia essa tal felicidade, mas, seja lá o que for,
não parece ter tido qualquer efeito em mim nos anos anteriores. A menos que
tenha sido camuflado pelo vinho tinto, né... Vai saber.
Nós
já tínhamos temperado o peru na noite anterior, e eu usara o mesmo tempero nas
batatas, que teria que assar separado, porque não caberia tudo de uma vez no
nosso forno. Mas antes que pudéssemos ter a chance de colocar qualquer coisa
para assar, Valentina, uma das convidadas da noite, que mora no andar de cima,
apareceu com o primeiro contratempo: ela tinha prometido trazer uma rosca de
nozes – que deixou todo mundo com água na boca no natal do ano passado,
salivando por mais um pedaço –, porém o forno dela escolheu justamente a
véspera de natal para dar o último suspiro. Então ela trouxe os ingredientes, e
pediu para assar a rosca no nosso apartamento.
Até
aí, tudo bem; era só uma questão de organizarmos os horários, e tínhamos tempo
de sobra para preparar tudo. Mas aí, enquanto eu colocava as batatas para assar
– decidi assar primeiro as batatas, pois a forma era menor, e caberia a
assadeira da Valentina ao mesmo tempo, o que nos deixaria com tempo de sobra
para dar um bronze no peru até às oito da noite – o segundo infortúnio
apareceu.
Era
por volta das duas e meia da tarde, quando o Seu Ezequiel, porteiro do prédio
interfonou para o nosso apartamento, e pediu para falar comigo. Tive a
impressão de que ele tinha interfonado para o apartamento errado, porque,
aparentemente, ele só queria me contar, com todos os detalhes, o desfecho da
novela da árvore de natal do Seu Nonato, meu vizinho de frente, que finalmente
foi entregue agora a pouco, depois de quase trinta dias de espera e muitas
brigas com a loja – um drama que o prédio inteiro, ou pelo menos, a maior parte
dos vizinhos, acompanhou. Mas a empresa que fez a entrega só levou até a
portaria, colocou no elevador, apertou o botão para deixá-la subir sozinha –
até porque a árvore era grande demais para que coubesse alguém no elevador
junto com ela, fosse um anão, uma criança ou um animal de pequeno porte –, enquanto
o Seu Nonato, que descera para assinar a entrega, subia no outro elevador para
pegá-la lá em cima.
–
Ah, que bom, Seu Ezequiel. Fico feliz que o Seu Nonato tenha conseguido receber
a árvore de natal antes da páscoa – disse, sem muito entusiasmo, louca para me
livrar da rádio portaria e voltar aos meus afazeres.
Cristiana
começou a gesticular, querendo saber o que estava acontecendo, e eu gesticulei
de volta que ele estava falando um monte de bobagens. “Não sei o que ele quer”, acrescentei sem emitir som.
Enquanto
isso, Seu Ezequiel prosseguia com a ladainha na minha orelha. Depois de emendar
a novela do Manuel Carlos na do Silvio de Abreu, com participação especial da
Ivete Sangalo no último capítulo cantando uma música da Cláudia Leitte, o
porteiro explicou que enquanto o Seu Nonato subia no outro elevador para pegar
a árvore no andar dele, a Dona Zélia, do apartamento 43 chamou o elevador lá na
garagem; justamente o elevador que estava com a árvore de natal.
–
Sei... – balbuciei, fazendo um ok
para a Valentina com o polegar, quando ela me perguntou se podia usar o
liquidificador enquanto eu conversava (na verdade, enquanto eu escutava a
ladainha do porteiro).
–
Daí, quando o Seu Nonato chegou lá em cima, o elevador não estava no andar –
prosseguiu ele, sem dar indícios de que iria acelerar a velocidade da fofoca.
–
Ah, tá – interrompi. – Olha só, Seu Ezequiel, é uma história fascinante, mas a
minha batata tá assando, literalmente, então, se puder me fazer um resumo,
comece pelo que eu tenho a ver com isso?
–
Bom, acontece que, quando o elevador chegou na garagem, e a porta abriu, a
árvore tombou, quase caiu por cima da Dona Zélia, e como a sua vaga é bem de
frente com o elevador, eu acho melhor você descer e tirar o seu carro, senão
vai acabar arranhando.
–
Ora, e por que não me disse isso antes, criatura? Eu já vou descer. Obrigada!
–
O que aconteceu? – perguntou Cristiana, assim que larguei o interfone.
–
A Dona Zélia e uma árvore de natal caíram em cima do meu carro. Eu vou lá,
antes que façam um estrago na minha lataria. Fiquem de olho no forno.
E
saí apressada.
–
Como é que uma árvore de natal caiu em cima do carro dela? – perguntou
Valentina, assim que bati a porta.
–
É melhor não tentar entender – disse Cristiana, descartando a pergunta. – Nesse
prédio acontece cada coisa que, se contar, ninguém acredita!
E,
antes que alguém pergunte, não, não tenho ouvido biônico, mas me contaram essa
parte depois, quando me contaram sobre o infortúnio número três, de que vou
falar daqui a pouco.
Porque
quando desci para tirar o carro da vaga, pelo elevador que não estava
interditado pela árvore de natal do Seu Nonato, vi a dita cuja caída, com a
ponta sobre o meu capô, e a base ainda dentro do elevador, em tempo de ser
cortada pelas portas de aço que abriam e fechavam a intervalos regulares. Dona
Zélia ainda estava lá embaixo, soltando os cachorros em cima do Seu Nonato, que
parecia mais pálido que de costume vendo a árvore de natal pela qual tanto
brigou em tempo de ter a base amputada pelas portas do elevador. Pelo que
entendi, ele tentava balbuciar para a Dona Zélia que ainda não tinham levantado
a árvore, para tentar enfiá-la de novo no elevador e fazê-la concluir o trajeto
até o apartamento dele porque ela entalara ali na porta.
–
Gente, onde é que você vai enfiar uma árvore desse tamanho? – perguntei,
encarando o trambolho amontoado sobre a minha vaga, e sobre o meu carro. – No
terraço?
–
Que te importa? – respondeu Nonato, aborrecido.
–
Importa que o carro que a sua árvore está usando como estrela de natal é meu! E
se tiver um arranhãozinho que seja, você vai pagar! Agora, faça o favor de
segurá-la levantada para eu tirar meu carro da vaga.
–
Como eu vou levantar? – berrou ele. – Não vê que ela está presa?
–
Ora, mantenha a ponta levantada até eu tirar o carro para não arranhar!
–
Eu ajudo o senhor, Seu Nonato – prontificou-se o porteiro.
Bem,
o contratempo número dois foi resolvido sem mortos nem feridos – pelo menos, no
tocante ao meu carro: consegui tirá-lo da vaga devagar, enquanto Seu Nonato e
Seu Ezequiel mantinham a ponta da árvore de natal levantada, e o coloquei numa
das vagas de visitantes. Conferi o estrago: felizmente, a lataria estava
intacta. Já imaginava o tamanho da dor de cabeça que seria tentar arrancar uma
moeda que fosse do muquirana do Seu Nonato, se tivesse um arranhãozinho que
fosse no meu capô.
Enquanto
essa confusão se desenrolava na garagem, Cristiana e Valentina encomendavam o
contratempo número três. Tem outra lei de Murphy que diz que tudo sempre leva
mais tempo do que todo o tempo que você tem disponível. Principalmente se você
já estiver com o dia todo congestionado.
Bem,
esse terceiro contratempo começou quando a dona Dolores – ou Dona Horrores,
como preferimos chamar –, a mulher do Seu Nosferatu... Digo, Seu Nonato – sim,
o fulano da árvore de natal tamanho Fat Family –, que mora no apartamento em
frente ao nosso – número 71, a propósito, se sua cara de bruxa quer dizer
alguma coisa –, bateu no nosso apartamento pedindo ajuda para trocar a cortina
da sala. Ao que tudo indica, o casal esperava receber os filhos e os netos
naquela noite, e queriam fazer uma decoração de última hora no mafuá atulhado
de bibelôs e quinquilharias que era sua sala de estar. O problema é que a Dona
Horrores não podia subir na cadeira ou na escada para trocar a cortina, por
causa de sua labirintite – que eu suspeito ter qualquer coisa a ver com as
dúzias de garrafas de conhaque que eu vejo aquela mulher carregando elevador
acima todo mês –, e como o marido estava resolvendo o pepino do pinheirão lá na
garagem, ela foi pedir socorro lá em casa.
Bem,
não custa nada fazer um favor a uma vizinha idosa. Principalmente à Dona
Horrores, que, para dizer a verdade, mais nos diverte do que incomoda. E ainda
me dá muito material para escrever minhas comédias, verdade seja dita.
O
problema é que a cortina era enorme, e muito pesada, e Cristiana, que foi a
primeira a atravessar o corredor para ajudá-la, percebeu que passaria o dia
inteiro no apartamento da bruxa se tivesse que pendurar aquilo sozinha. E
provavelmente distenderia algum músculo tentando erguê-la até os suportes de
parede. Então ela chamou Valentina para ajudar. Resultado: quem foi que ficou
vigiando o forno?
Exato!
O homem invisível. E como ele é um ser imaterial, não tinha como desligá-lo.
Daí, quando as duas finalmente conseguiram se livrar da cortina da Dona
Horrores, mais ou menos ao mesmo tempo em que eu retornava ao nosso andar,
depois de ter batido boca com o Seu Nonato, com a Dona Zélia, com o entregador
da árvore de natal, com a folgada da Karina Periguete, que veio encher o saco
porque o meu carro estava numa das vagas de visitantes, justamente a vaga que
um dos seus peguetes – pode ser que ela tenha dito o nome do fulano, mas eu não
decoro mais os nomes dos peguetes daquela periguete, porque senão vou precisar
fazer uma expansão no meu HD cerebral – gosta de usar, e depois acabei me
envolvendo em outra discussão com um morador do quinto andar porque dois dias
atrás, uma garrafa de cerveja caiu da nossa varanda e se estatelou num vaso de
plantas da varanda dele – longa história –, e ele achou que tinha sido de
propósito... Enfim, eu fui me enrolando de encrenca em encrenca, até retornar
ao nosso andar. Cheguei bem na hora em que a Cristiana e a Valentina saíam da
casa da Dona Horrores, rachando de rir de alguma coisa, e nos deparamos com um
horrível cheiro de queimado invadindo o corredor.
–
Que cheiro é esse? – perguntei, ao sair do elevador.
–
Tem alguém pensando na vida – comentou Cristiana ao mesmo tempo.
–
Parece mais que alguém queimou a ceia de natal – observei.
–
E parece que tá vindo...
–
Ai, Jesus! Minha rosca! – gritou Valentina, de repente, correndo para dentro do
apartamento.
A
rosca ficou completamente esturricada. Mas a boa notícia é que as minhas
batatas estavam no ponto perfeito.
–
Droga! – murmurou Valentina, sobre a rosca natalina. – Torrou!
–
Por que não desligaram o forno antes de sair? – perguntei.
–
Por que ainda não estava boa.
–
E também, a gente não imaginou que fosse demorar tanto para colocar a cortina
da Dona Horrores! – disse Cristiana. – Mas a cortina da bruxa tinha mais
camadas que saia de baiana! Quase que a gente não termina nunca de enfiar renda
naquele varão.
–
O pior é que agora eu vou ter que fazer outra rosca – disse Valentina, jogando
a massa queimada no lixo. – Isto é... Se eu encontrar as nozes em algum lugar
hoje.
–
Que cheiro é esse? – perguntou Ivan, nosso vizinho de cima, entrando no
apartamento. – Tá pegando fogo em alguma coisa aqui? Eu vi a fumaça subindo
pela janela...
–
Queimou a rosca da Valentina – disse Cristiana.
–
Não fala assim, não, que você acaba com a reputação da menina – riu-se Ivan.
–
Tá, eu vou dar uma corrida lá no mercado para comprar mais nozes, senão não vai
dar tempo de assar outra – disse Valentina, ignorando as piadinhas.
–
A gente vai assar o peru, enquanto isso, e você assa a rosca depois, senão a
gente vai acabar comendo o bicho cru – avisei.
–
Tá. Eu já volto.
Assim
que ela passou pela porta, Ivan disse ao que realmente veio.
–
Olha só, eu sei que esse é o maior clichê do mundo, mas, será que vocês
poderiam me emprestar uma xícara de açúcar? Não precisa ser numa xícara, é só
maneira de falar...
–
Claro – respondi, revirando os olhos, depois de colocar o peru no forno e
reajustar a temperatura.
E
despejei o açúcar numa tigela.
–
Desculpa aí o incômodo – disse ele.
–
Sem problemas, Ivan.
–
Ainda que mal pergunte, qual é a delícia que você está preparando? – perguntou
Cristiana. Ou a draga que ela oculta na barriga.
–
É surpresa. Daqui a pouco você vai ver. Até mais tarde, lindas!
Como
numa sitcom, ele saiu do apartamento
e quase trombou com a Dona Lourdes, síndica do prédio, na porta.
–
Eu posso saber, Dona Emanuelly, o que o seu carro está fazendo na vaga de
visitantes? Você está visitando alguém no prédio, por acaso?
–
Boa tarde pra senhora também, Dona Lourdes – disse Cristiana, com sarcasmo.
–
Acontece, Dona Lourdes, que meu carro quase foi esmagado por uma árvore de
natal, que, aliás, continua lá ocupando a minha vaga. E se arranhasse? Se
amassasse minha lataria? Se quebrasse o para-brisas, um farol, um retrovisor?
Como é que eu ia explicar isso pro meu seguro?
–
A senhora não soube do rolo com a árvore de natal do Seu Nonato?
–
Se não soube, meu bem? – respondeu ela, mal-humorada. – Aquele trambolho está
até agora interditando um dos elevadores do nosso bloco. Justamente no dia mais
movimentado do ano. A fila para usar o elevador logo, logo vai estar virando a
esquina!
–
Se a senhora já sabia do ocorrido, porque se deu ao trabalho de vir aqui
perguntar?
–
Ora, e você acha que eu sei qual é a vaga de cada um dos condôminos de cor? E
como estamos recebendo muitas visitas hoje, eu tinha que verificar porque um
morador estava ocupando uma das vagas de visitantes.
–
Bem, acho que já esclarecemos, então...
–
Certo... Mas assim que desobstruírem a sua vaga, faça o favor de colocar seu
carro de volta lá.
–
Tá certo, Dona Lourdes. Feliz natal!
–
Feliz natal!
–
Milagre ela não pedir a lista completa de quantas pessoas vão vir aqui em casa
hoje – comentou Cristiana, assim que fechei a porta atrás da síndica.
–
Não pediu ainda, né, Cristiana.
–
A Dona Lourdes precisa de terapia.
–
Ter a pia cheia de louça para não ter
tempo de cuidar da vida dos outros! Tomara que ela receba todos os parentes, do abba
ao zaba, hoje à noite para ficar bem ocupada e não ter tempo de vir encher
o nosso saco.
–
Du-vi-de-ó-dó! – disse Cristiana. – Se eu entendi bem, a Dona Lourdes não tem
parentes vivos, exceto aquela irmã que ela fala que mora no Piauí. Filhos ela
também não tem. E parentes do falecido, se é que existem, não devem visitá-la
há séculos! Desde que a gente mudou para cá, eu nunca soube que ela recebeu
nenhuma visita de parentes, e você sabe como a língua do Seu Ezequiel é grande.
E pelo tempo que ela despende cuidando da nossa vida, acho que nunca recebe
ninguém, mesmo.
–
Pior que é, né... – percebi, de repente. Já fazia uns quatro anos que a gente
morava lá, e eu realmente nunca soube que a Dona Lourdes tivesse uma visita que
fosse no apartamento. – Puxa vida, será que ela não tem nenhuma amiga? Nada...?
–
Sei lá. No fundo eu tenho dó da Dona Lourdes. Ninguém merece ficar tão sozinha.
Acho que cuidar da vida dos outros é a única diversão que restou a ela.
–
Mas não precisa abusar, né!
–
O Ivan disse que ia comprar cinco gatos para dar para ela de presente de natal.
Assim ela vai ter trinta e cinco vidas para cuidar. Quem sabe esquece a nossa?
–
Não é má ideia – concordei, com uma risadinha.
Valentina
demorou uma eternidade – mais ou menos umas três horas – para voltar com as
nozes. Só conseguiu encontrar lá no Tatuapé. A maior parte dos supermercados
onde ela foi não tinha; e os que tinham estavam tão lotados que ela
dificilmente conseguiria sair de lá antes do Dia das Mães.
Ela
bateu a massa depressa, e deixou descansando enquanto o peru terminava de
assar. E aproveitou a pausa para voltar ao seu apartamento para tomar banho e
se arrumar para a ceia, deixando instruções sobre o tempo que a rosca devia
assar – depois que o peru desocupasse o forno, é claro.
–
Acho que eu volto antes que o peru
termine de assar – disse ela, abrindo a porta.
Foi
bem oportuno fazer isso. Pegou Dom Pedro Falabella – vulgo Pedrão –, namorado
da Cristiana, com a mão erguida, prestes a tocar a campainha.
–
Aí, Cristiana, a sua ceia chegou! – anunciou Valentina, cumprimentando Pedrão,
e saindo em seguida.
–
Oba! – riu-se Cristiana, colocando de lado a faca com a qual cortava os legumes
para a sopa.
Pedrão
tinha uma travessa na mão, e duas
sacolas de papel penduradas no braço: uma com o presente do amigo secreto, e
outra com o presente da namorada.
–
Hum... Papai Noel chegou mais cedo! – disse Cristiana, extasiada, sentindo o
cheiro delicioso que vinha da travessa. – É o que eu estou pensando?
–
Ah, amor, estragou minha surpresa – disse ele, fingindo tristeza. – Como
adivinhou que eu comprei seu perfume favorito.
Cristiana
deu risada.
–
Eu falava do macarrão – explicou ela.
–
Ah... – balbuciou ele, fingindo surpresa. – Sim, é o meu macarrão especial.
–
Qual é meu perfume favorito, falando nisso? – perguntou Cristiana, que era
particularmente famosa por seu gosto camaleônico para perfumes. Quase todos em
embalagem econômica, ou amostra grátis. Velhos hábitos de uma consultora de
empresas de cosméticos vendidos por catálogo.
–
Espero que seja o que eu comprei – disse Pedrão, entregando-lhe a sacola.
–
A partir de hoje é, com certeza – disse ela, agarrando-a animada. – Posso abrir
agora, ou só à meia-noite.
–
À vontade – disse ele.
–
Vou experimentar agora.
Se
o que ele comprou não era o perfume favorito dela, estava no Top Five, com certeza, porque eu não me
lembro da última vez que eu não vi uma amostra grátis daquela fragrância na
penteadeira da Cristiana.
Decidi
aproveitar a chegada dele para deixá-los de olho no forno, e também saí de
fininho para me arrumar.
E
foi durante a minha ausência que aconteceu o desastre número quatro.
Em
algum momento enquanto eu estava no chuveiro, o peru terminou de assar, e
Cristiana colocou a assadeira de Valentina no forno. Valentina, aliás, se
arrumou em tempo recorde, e voltou para montar guarda diante do forno, até que
sua nova empreitada estivesse no ponto. E enquanto ela assistia a cada etapa do
cozimento da rosca, alguém teve a brilhante ideia de desfilar pela sala com o
peru na travessa...
Não
querendo dar dedos nem apontar nomes, como diria Jack Sparrow, mas desta vez, a
trapalhada foi culpa do Pedrão. Ou melhor, foi o Piripaque. Não, pensando bem,
foi culpa do Pedrão, sim! Afinal, foi ele quem catou a travessa no balcão,
brincando com a Cristiana – parece que rolou alguma polêmica a respeito da
previsão de que haveria mais brigas pelas coxas daquele peru do que pelas da
Magda, do Sai de Baixo –, Pedrão disse que ia comer o peru inteiro sozinho, e
atravessou a sala com Cristiana em seu encalço, tentando pegar o peru de volta;
daí levanta a travessa, abaixa a travessa, dribla um, dribla outro, desvia do
cachorro, escorrega no capacho da varanda, o peru escorregou da travessa, e...
Despencou
lá embaixo!
Quando
saí do banheiro, enrolada na toalha, para ir para o meu quarto colocar meu
vestido e ficar linda para a ceia de natal, percebi um silêncio muito anormal
na casa, e achei melhor ver quem tinha morrido. Ou, em todo caso, se tinha
alguém vigiando o forno ou se tinha saído todo mundo – de novo. Dei de cara com
uma cena que falava por si só: Cristiana estava parada na porta da varanda,
cobrindo a boca com as duas mãos, observando Pedrão, que estava meio debruçado
na varanda, meio escondido detrás de uma samambaia; Valentina olhava para os
dois de seu posto de vigia em frente o forno, com uma expressão apreensiva, agarrada
no Piripaque, que latia meio assustado, meio excitado.
A
propósito, Piripaque é o nome do nosso cachorrinho chihuahua. O motivo desse
nome é uma longa história, e provavelmente não o único motivo porque esse
cachorro um dia precisará de terapia.
Como
ia dizendo, assim que vi aquelas caras culpadas, preocupadas e atordoadas – não
necessariamente nessa ordem –, tive certeza de uma coisa: tinha dado alguma
merda.
Tive
até medo de perguntar.
A
compreensão só veio quando percebi que a coisa que Pedrão segurava de lado como
se fosse um livro era a travessa do peru.
–
Hã... Onde está o cidadão que deveria estar deitado aí? – perguntei,
cautelosamente, assim que Pedrão se voltou para dentro do apartamento e apertou
os lábios com cara de culpado.
Aliás,
eu disse cara de culpado? Perdão... Quis dizer cara de MUITO culpado.
–
O quê que foi, gente? – perguntei de novo, com um alarme disparado dentro da
cabeça. – Cadê o peru?
Pedrão
ergueu um braço e coçou a parte de trás da cabeça, nervoso. Cristiana fez uma
careta nervosa. Valentina virou a cara para o forno quando tentei olhar para
ela. Até o Piripaque pareceu se encolher no colo dela.
–
Sabe o quê que é...? – Pedrão hesitou. – O peru estava assim, meio agitado... E
decidiu sair voando... Pela janela...
Eu
o encarei incrédula. Queria rir. Queria chorar. Queria gravar aquela cena para
rir mais tarde. Queria matar o cidadão que estava se escondendo atrás da
travessa vazia que poderia servir como prova ou arma do crime, eu ainda estava
tentando decidir. Queria pular da janela também para não ter que explicar ao
Casanova o que foi que aconteceu com o peru que ele comprou. Queria saber o
motivo da gritaria lá embaixo. Será que os mendigos pularam o muro do
condomínio para disputar as coxas do peru suicida?
Não.
Suicida, não. O bicho não se jogou, foi um homicídio! Homicídio doloso! E em
plena véspera de natal, atirar um peru assado pela janela do oitavo andar é
crime inafiançável! E passível de prisão perpétua! Ou cadeira elétrica! Ou de
uma vassourada na cara!
–
Esquenta, não, que eu vou arrumar outro – disse Pedrão, correndo em direção à
porta.
–
Onde é que você vai achar um peru assado na véspera de natal? – perguntei. – E
a essa hora? Se pelo menos fosse mais cedo...
–
Precisa estar assado? – Ele deu um sorriso amarelo.
–
Se quiser comer antes da meia-noite, precisa! – Fiz aquela voz de quem explica
o óbvio.
–
Tá, eu vou lá na Teodora, vou ver nas rotisseries,
e em todas as padarias daqui até a PQP, mas eu dou um jeito de comprar um peru
assado – ele disse, apressado, abrindo a porta. Percebi que ele estava louco
para escapulir. – Se eu não achar, roubo de algum vizinho distraído, pode
deixar.
–
Procurar um peru assado hoje é como procurar moedas na cueca de um deputado –
disse Valentina. – Se até as nozes, que não são a vedete da festa, eu tive
trabalho para encontrar...
–
Por que moedas na cueca de um deputado? – perguntei, estranhando. Às vezes era
meio difícil entender as piadas da Valentina, porque o cérebro dela vive numa
dimensão um pouco diferente do resto de nós. Um país conhecido como Mundo da
Lua.
–
Porque eles só guardam notas de cem dólares para cima – explicou ela, como se
isso fosse óbvio.
Pensando
bem, até fazia sentido.
–
Que nota é maior que cem dólares? – indagou Cristiana.
Num
dia normal, eu até explicaria que, num passado não muito distante, o Banco
Central Americano imprimia notas de mil dólares, que só eram usadas em
transações entre bancos – e pelo crime organizado, que aparentemente é chamado
de organizado por um bom motivo –, e
que elas foram tiradas de circulação com o advento das transações tecnológicas,
mas agora não era um bom momento. Passava das sete da noite, nós tínhamos uma
rosca queimada, outra no forno, batatas assadas que precisavam ser esquentadas,
uma sopa fervendo no fogão, o peru saiu voando pela janela, nossos amigos já
deviam estar a caminho, e eu ainda estava de toalha! E esqueci de fazer o purê
de batatas!
–
Merda! – exclamei, encarando o teto branco.
–
Relaxa! – disse Cristiana. – É só ele dar uma passada no apartamento do Serginho
aí do lado, que ele deve saber onde conseguir um peru assado a essa altura do
feriado.
–
Estão vendendo peru assado na Galeria Pagé agora...? – indagou Valentina,
confusa.
Para
falar a verdade, já passava da hora de a gente atualizar essa piada. Chamávamos
o apartamento do Serginho “Ranja Tudo” de filial da Galeria Pagé – devido à
quantidade e variedade de tranqueiras que era possível encontrar lá dentro –
desde tempos tão remotos, que eu nem me atrevia a calcular, mas isso não vinha
ao caso agora.
–
Não... – expliquei, sobre a minha exclamação desanimada. – Esqueci de fazer o
purê.
–
Ah, isso... – disse Cristiana. – Relaxa! Eu já descasquei as batatas.
Corri
então para a cozinha, tal como estava, enrolada na toalha de banho cor de
vinho, e apanhei uma panela para fazer o purê. Cristiana se ofereceu para
fazer, mas a sopa dela já estava praticamente pronta, e ela ainda não havia
tido possibilidade de se arrumar. Além do mais, com um pouco de sorte, o vapor
do fogão ajudaria a secar o meu cabelo mais rápido. Só esperava que não ficasse
com cheiro de purê de batatas. Ou de sopa de legumes...
O
purê, aliás, estava quase no ponto quando o Ivan apareceu de novo no nosso
apartamento, com uma sobremesa tão elaborada que não consegui identificar o que
era na hora. E como o interfone tocou exatamente enquanto ele a estava
colocando na bancada da cozinha, pertinho do aparelho, pedi para ele atender.
–
Tá legal, eu aviso. Tchau, tchau – disse ele, antes de desligar e se voltar
para mim. – Seu Ezequiel pediu para avisar que sua vaga está liberada.
–
Puxa, eles levaram só o dia inteiro para desentalar a árvore de natal
quilométrica do Seu Nonato do elevador, hein... Deve ser algum tipo de recorde.
De
rapidez! Considerando a velocidade das coisas naquele condomínio. Ok, estou sendo injusta. Existem coisas
que são feitas com bastante agilidade lá dentro. A fofoca, por exemplo.
–
Bem, se desentalaram, eu não sei, mas desencalharam da sua vaga, pelo menos –
disse Ivan, que, como se pode perceber, já estava completamente a par da novela
do dia que manteve um dos elevadores interditados a tarde inteira, o que
comprova minha afirmação anterior a respeito da velocidade da fofoca no
condomínio. Esqueçam o wi-fi, aqui a fofoca já é 5G!
–
O Nosferatu estava berrando no fundo – acrescentou Ivan. – Se eu entendi bem,
amputaram o pé da árvore de natal dele para poder liberar a vaga e o elevador.
Tinha dois metros de altura, agora deve estar com um e meio.
–
Seu Nosferatu nunca teve dois metros de altura – contestou Valentina.
–
Não, a árvore de natal.
–
Já sei, a Dona Lourdes quer que eu tire o carro da vaga de visitantes,
agora...? – deduzi.
–
Isso aí.
–
Me faz esse favor? – pedi ao Ivan, apontando as chaves em cima da bancada.
–
Tá legal. Falando nisso, adorei o modelito.
– E me olhou de cima abaixo, filmando minha toalha de banho. – Escolheu essa
cor por causa do natal?
–
Engraçadinho – respondi, dando uma risadinha.
Para
dizer a verdade, não tinha me tocado que a cor da minha toalha estava
combinando com o feriado. Também não contei a ele que a maioria das minhas
toalhas são daquela cor.
Uma
vez que o purê estava pronto, e o Ivan já tinha descido para colocar meu carro
de volta na vaga e liberar a vaga de visitantes, corri ao meu quarto para
terminar de me vestir. Valentina continuou montando guarda em frente ao forno,
para garantir que nada mais desse errado com a rosca de nozes. Ouvi quando Ivan
voltou, uns quinze minutos depois – um elevador interditado atrapalha muita
gente –, e, por um instante, fiquei preocupada com a integridade física daquela
sobremesa linda que eu ainda não deduzira o que era, mas envolvia chocolate,
uma cobertura cor de caramelo e muitas frutas vermelhas. Alguém devia colocar
aquilo na geladeira antes que acontecesse outro acidente.
Eu
devia estar ficando paranoica. Mas era sempre melhor não tentar a sorte...
Meia
hora mais tarde, eu estava vestida, calçada, penteada e maquiada. Quer dizer...
Eu coloquei o vestido vermelho novo em folha, como tinha planejado, e meus
sapatos de camurça combinando; terminei de secar o cabelo correndo e fiz um
coque para dar uma impressão ondulada – truque de emergência, para quem tem o
cabelo escorrido, naturalmente ou com química, e não está com tempo para
recorrer ao babyliss –, soltei depois
de mais quinze segundos de secador, só para ter certeza de que funcionaria, e,
para dizer a verdade, não tenho muita certeza de ter passado rímel nos dois
olhos, agora que parei para pensar nisso... Mas, observando as fotos da festa,
eu estava linda, e é isso que importa.
Continua...
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