Prólogo
“Se alguém está lendo estas
palavras, significa que estou perdida num limbo do qual é impossível escapar.
Ele me pegou! E talvez seja tarde demais para mim, mas pode não ser tarde
demais para suas filhas, netas, irmãs e amigas...
Talvez você não acredite em
mim, mas aceite um conselho sincero: na primavera, afaste todas as moças de
dezessete anos da cidade. Quem sabe, assim possam salvá-las. Pois a cada
primavera, no aniversário de sua morte, ele precisa se casar.
Então, mesmo que você não
acredite em mim, proteja as moças. Não deixe que se tornem suas noivas...”.
(Provavelmente as últimas palavras escritas por
Lizbet Sofer, antes de desaparecer em 24 de março de 1836, num diário deixado
por ela sobre a mesa de estudos).
Capítulo
1 – Perturbação
–
Anne!... – chamou a familiar voz aveludada e sedutora no cais. – Minha
querida...
A
garota de quase dezessete anos olhou em volta. O vento soprava na direção do mar,
jogando seus cabelos contra o rosto. Tinha se levantado no meio da noite, como
vinha acontecendo desde o início de março, e corrido pela praia na direção do
cais.
–
Estou aqui lhe esperando... – disse a voz aveludada novamente, batendo nos
ouvidos da garota como que soprada pelo vento.
Ela
girou pela praia, mas não viu ninguém na escuridão. À sua frente estava o mar,
imenso e calmo como sempre. Havia um navio ancorado no porto, cuja tripulação
devia estar na taverna.
–
Venha, querida Anne... – a voz chamou pela última vez.
A
garota correu para o cais e fitou o navio. A voz dele não podia vir de lá. A
embarcação estava vazia, e ainda que não estivesse, como soaria tão perto,
estando tão longe?
–
Anne! – gritou outra voz atrás dela.
A
garota se virou e viu o vulto da camisola branca de sua irmã, Susan Dawson
correndo ao seu encontro. Os cabelos castanhos e compridos esvoaçavam ao vento
exatamente como os seus. Susan agarrou a mão fria da irmã, ofegante, segurando
as extremidades do robe unidas junto ao colo.
–
Você está sonâmbula de novo? – perguntou, percebendo finalmente o perigo à que
havia exposto a irmã, gritando o nome dela enquanto a procurava pela praia.
–
Não estou sonâmbula, Susan! – afirmou Anne Dawson, convicta. – Quantas vezes
preciso lhe dizer?
–
Prefiro pensar que está. O que pretendia fazer?
Anne
olhou para o cais, para além do navio, e fitou a imensidão azul no horizonte.
–
Ele continua me chamando... – confessou, num sussurro.
Susan
esquadrinhou o rosto da irmã piedosamente. Todos em sua casa estavam
preocupados com ela. Anne estava muito perturbada nos últimos dias: ouvindo
vozes, fugindo para a praia no início da madrugada, e repetindo a todo instante
que precisava encontrá-lo.
O
que ninguém conseguia compreender era quem ela precisava encontrar, porque nem
ela própria sabia dizer.
Susan
passou o braço pela cintura da irmã, sem soltar a mão que estava segurando
desde que se aproximara, e a conduziu de volta para casa. Quando entraram no
quarto, a expressão de Anne se tornou mais angustiada.
–
Você acha que eu estou louca! – queixou-se.
–
Tenho certeza que não – confortou Susan.
Anne
permitiu que ela a colocasse na cama e a cobrisse fraternalmente.
–
O médico disse à Sra. Garber que eu estou – murmurou Anne.
Susan
mordeu a bochecha por dentro. Não queria que a irmã tivesse escutado essa
conversa.
–
O Dr. Prynne não sabe o que você tem – corrigiu, sem conseguir colocar na voz
toda a convicção que pretendia.
–
Eles vão me trancar – sibilou Anne, com a expressão aflita.
Susan
enrijeceu o maxilar e pousou os olhos numa Bíblia fechada sobre a mesa de
cabeceira da irmã.
–
Ninguém vai trancar você – disse, sem conseguir olhar nos olhos de Anne. –
Descanse... Vai ficar tudo bem.
Anne
apertou os olhos, e deu um suspiro pesado. Parecia cansada demais para discutir.
Susan caminhou até a janela e fitou o mar.
Aquele
pesadelo já durava vários dias. Anne nunca havia adoecido, desde que nasceram.
Sempre foi a mais ativa das duas. A mãe contara certa vez que na madrugada em
que deu à luz, Susan demorou a chorar, e ela pensou que a filha tivesse nascido
morta. Anne, ao contrário, deu um chorinho breve, e lançou os olhinhos curiosos
em todas as direções, como se tivesse pressa de conhecer o mundo onde viveria.
Nunca
foram, porém, como as gêmeas que se via em todos os lugares. Susan e Anne não
tinham o mesmo rosto, e, embora os cabelos fossem da mesma cor, tinham uma
textura diferente: os de Susan eram bem lisos e longos; os cabelos de Anne
caíam em grandes ondas pelos ombros e não chegavam ao colo.
O
que não tinham de semelhança aparente, no entanto, tinham de cumplicidade,
sobretudo depois da morte dos pais, há quatro anos, no naufrágio de um
transatlântico quando regressavam de uma viagem à Inglaterra. Susan e Anne
tinham ficado em Salem, aos cuidados da governanta, uma senhora de quarenta e
tantos anos chamada Emma Garber; e depois da tragédia, embora permanecessem
morando com ela na antiga casa de seus pais, à beira-mar, o Reverendo Arthur
Bichop se tornara tutor das meninas.
Desde
então, as irmãs se apoiaram no fato de que eram a única família uma da outra, e
passaram a compartilhar tudo, numa união fraternal invejável. Nunca tiveram
segredo uma para a outra... Ou tinham?
Desde
o início de março esta pergunta torturava a mente de Susan. Por que de repente
Anne ficara tão perturbada? Não dormia uma noite inteira e não ficava na cama;
quando não corria para fora de casa, andava de um lado para o outro no quarto,
suspirando e resmungando, ora dormindo, ora acordada, e às vezes parecia em
transe. E mesmo nas noites em que não saía do quarto, sua janela amanhecia
aberta, embora a Sra. Garber se lembrasse perfeitamente de tê-la trancado à
noite, como sempre. E nessas ocasiões, pela manhã, notava-se um inexplicável
cheiro de jasmim impregnado no quarto.
Na
primeira vez em que a janela amanheceu aberta, Anne contou à irmã que teve um
sonho estranho, onde um homem, com o rosto coberto por uma máscara veneziana,
entrou pela janela de seu quarto e passou a noite ao seu lado. Não contou mais
do que isso, mas Susan agora temia que não fosse apenas um sonho.
Todos
os anos uma moça da idade delas desaparecia em Salem, e Susan teve medo de que
o tal homem de máscara veneziana com quem Anne estava sonhando com tanta
frequência fosse o responsável pelas mortes.
As
pessoas evitavam falar no assunto, e a maioria agia como se nem ao menos se
desse conta do que estava acontecendo.
Para
muitos os desaparecimentos eram um mito, justificado por funerais íntimos, sem
a presença do cadáver. E a omissão de atitudes em relação a isso fazia crer que
as pessoas na cidade estavam sob influência de algum feitiço.
Era
comum, quando uma moça desaparecia ou morria tão jovem naquela cidade, que a
família culpasse uma peste, que, supostamente, só atingia mulheres de até
dezessete anos, e os corpos, eles diziam, eram queimados sem funeral para
evitar contágio. Mas Susan jamais soube onde eram acesas as tais piras
funerárias. Algo lhe dizia que era apenas uma desculpa para que ninguém
comentasse o desaparecimento da moça por mais de dois dias.
Afinal,
morrer não é crime, nem pecado. Mas desaparecer sem deixar vestígios, sobretudo
numa cidade tão marcada por abominações como Salem, poderia comprometer
seriamente a reputação da moça. Era muito mais confortável para as famílias que
se guardasse a lembrança imaculada das vítimas, ainda que sob um manto de
mentiras.
De
qualquer modo, o mistério envolvendo a irmã agora ficara mais complicado, pois
além de todo o transtorno do sono, Anne começara a ouvir vozes. Ou melhor, uma
voz! Aveludada, suave e sedutora, como ela própria a descrevera para Susan.
Não
havia uma noite sequer em que a irmã mais velha não se prostrasse ao lado da
cama de Anne, rendendo preces contristadas por sua recuperação.
Mas
a cada noite Susan se sentia mais impotente, pois a irmã ficava mais e mais
estranha.
Um
pouco mais cedo naquela noite, o Reverendo Bichop fora visitar a doente, e
dissera à governanta em segredo, antes de partir, que se não conseguissem
controlá-la, as pessoas poderiam enxergar nela um demônio que não havia.
Susan
se afastara horrorizada. Mas ao mesmo tempo, as palavras do Reverendo trouxeram
à tona um medo de que ela tentara se esconder desde que a irmã adoecera. Se
vivessem em qualquer outro lugar do mundo ela não se preocuparia tanto com as
pessoas em volta, mas em Salem, Massachusetts, ela já podia prever o desfecho
de sua história.
Comentava-se
ainda com horror os momentos tenebrosos de 1692, quando a histeria local levou
várias pessoas a serem julgadas por bruxaria e condenadas à morte. Elas foram
acusadas por seus vizinhos e amigos, pessoas que as conheceram a vida toda,
influenciadas pelos depoimentos de meninas que supostamente haviam sido
enfeitiçadas por uma escrava.
Se
com tão poucas ou nenhuma prova tantas pessoas foram vítimas do martelo
supersticioso da sociedade daquela época, era estranho que ninguém fizesse nada
pelas moças que, invariavelmente, apresentavam sintomas tão claros de
perturbação pouco antes de desaparecer.
Susan
ouviu um ruído distante, e enxergou o vulto de uma camisola cor de pêssego
avançando pela praia. Com o coração gelado, lançou um olhar súbito para a cama
da irmã e a encontrou vazia. Anne escapara por entre seus dedos sem que ela
percebesse.
Correu
imediatamente atrás dela e a encontrou fitando o mar à beira de um penhasco. Lá
embaixo, a água batia nas pedras e rugia assustadoramente. Por mais calmo que
fosse o mar perto da costa, aquele trecho específico abaixo delas exalava uma
fúria terrível.
Anne
não olhou para a irmã, como se nem ao menos estivesse consciente de sua
presença. Permaneceu imóvel à beira do penhasco, fitando o mar, como se
enxergasse além da superfície, alguma coisa escondida nas profundezas.
Um
arrepio gelado percorreu todo o corpo de Susan dos pés à cabeça ao antever qual
seria o próximo movimento de sua irmã. Quando o pé descalço de Anne se levantou
milimetricamente do chão, o primeiro impulso de Susan foi agarrá-la pela
cintura, numa tentativa desesperada de mantê-la ali, mas era tarde demais.
A
última coisa que pareceu real em sua vida foi a sensação de seu corpo caindo, e
aquele segundo pareceu não ter fim.
Ser
engolida pelo mar, agarrada ao corpo da irmã, fez com que Susan tivesse uma
estranha sensação de alívio. Por um instante ela sentiu que estavam a salvo.
Elas
afundaram juntas, escapando por muito pouco de um destino trágico nas pedras.
Anne não tinha mais aquela expressão perturbada, e naquele exato momento, Susan
também não estava preocupada com a irmã. Tudo parecia incrivelmente certo outra
vez.
Susan
agarrou a mão de Anne e nadou com ela para longe do precipício. À medida que se
afastavam do local da queda, ela percebeu que a cor finalmente voltara ao rosto
da caçula.
Uma
sombra enorme chamou sua atenção quando lançou o olhar à frente. O coração de
Susan se agitou, e o que quer que fosse, vinha rapidamente ao seu encontro na
escuridão.
Um
som melodioso acompanhava a sombra indefinida, acariciando seus ouvidos. Não
era como o canto das baleias ou o grito de um golfinho. Pareciam vozes humanas!
De
repente a sombra se tornou mais nítida e ela percebeu que não era um grande
animal, como havia pensado a princípio. Muitos olhos as encararam. Susan pôde
ver com clareza as diferentes tonalidades dos cabelos que se agitavam ao redor
de cada rosto. E quanto mais perto chegavam, mais claro se tornava o som, de
modo que ela já podia ver os lábios rosados e os vermelhos se movendo. Não
estavam cantando, mas as vozes eram verdadeiramente melodiosas; no entanto, ela
não conseguia entender o que diziam.
Não
precisaram chegar muito perto para que Susan enxergasse suas caudas douradas. O
que vinha ao seu encontro naquele momento era um bando de sereias.
Nunca,
em toda a sua vida, Susan imaginara algo assim. Aquelas mulheres eram
lindíssimas, e todas elas pareciam ter a mesma idade. As maçãs de seus rostos
eram igualmente rosadas, e os cabelos se agitavam paralelamente à cauda
dourada, conforme se aproximavam. Os olhos tinham um brilho intenso e
cristalino, como se as íris fossem feitas de diferentes pedras preciosas. E por
mais que ela tentasse, não conseguia enxergar a última que vinha naquela fila
ao seu encontro. Sem dúvida, eram mais de cem.
A
sereia que vinha à frente do grupo tinha cabelos negros e olhos amendoados, e
sorria de uma forma amigável.
Até
aquele momento, Susan não tinha certeza se deviam fugir ou esperar pelo que
viria em seguida. Quando a sereia que vinha à frente pôs o rosto a um
centímetro do seu, e Susan sentiu seu hálito de algas marinhas, teve os
primeiros vestígios de medo.
–
Não deveria estar aqui – disse a sereia, com uma voz firme e sedutora,
penetrando os olhos de Susan com os seus. – Nenhuma das duas.
Susan
apertou mais firme a mão da irmã, percebendo de repente que conseguia respirar
embaixo d’água.
–
Elas são gêmeas – sibilou uma sereia de cabelos louros e olhos verde-esmeralda,
atrás da primeira.
Como percebeu?
Susan quis perguntar, mas não se atreveu a mover os lábios. Estava assustada
demais para isso.
Anne
espreitava cada rosto, sem expressão, lançando, de quando em quando, um olhar
ao longe, como se procurasse alguma coisa.
Duas
sereias se entreolharam, assombradas, e uma delas chamou a atenção da líder
para Anne. A sereia, embora tenha compreendido, não fez nenhum gesto, e não
disse nenhuma palavra a respeito.
De
repente algo chamou a atenção de Anne; ela se livrou da mão da irmã e nadou para
longe. Susan gritou seu nome e foi atrás dela.
Tudo
ao redor era uma escuridão sem fim, mas ao olhar para o alto, de relance, Susan
viu o brilho prateado da lua no céu, brilhando sobre o mar, como se pertencesse
ao mar.
Ela
logo percebeu o que havia chamado a atenção de sua irmã. Alguns quilômetros
além da costa, nas profundezas do oceano, Susan viu uma mansão em inacreditável
estado de conservação.
Não
tinha ideia de quanto tempo ela estava lá, mas a única coisa que denunciava a
idade antiga da construção era a pintura: desbotada em alguns pontos, e
descascada em boa parte da fachada. As portas duplas da entrada, porém, não
pareciam ter sofrido danos, nem as janelas tampouco.
Anne
se colocou diante da porta e girou a maçaneta. Atrás delas, ao longe, Susan
ouviu a mesma voz melodiosa com que as sereias se apresentaram, porém, naquele
momento, ela soou como um grito de desespero.
Mas
antes que pudesse voltar o rosto para elas, estava com sua irmã dentro da
mansão.
Contrariando
tudo o que era natural, o interior da mansão era debilmente iluminado pelo
luar, assim como as próprias paredes da fachada haviam sido agraciadas com esta
luz. Susan olhou através dos vitrais que emolduravam a porta da frente: a lua
brilhava no céu, pairando sobre superfície do mar. E apesar de vê-la branca e
redonda no céu, era incompreensível como sua luz podia penetrar tão fundo no
oceano, e invadir o interior da mansão, com nuances suficientes para revelar
detalhes assombrosos da decoração, e ao mesmo tempo, cobrir de sombras os cantos
mais remotos da casa.
Susan
e Anne caminharam cautelosamente por entre a mobília, cuidando não esbarrarem
em nada. Os móveis pareciam intocados. Os quadros que decoravam o salão
principal tinham a pintura preservada como se aquelas fossem as paredes de um
museu. Os retratos eram todos diferentes, mas o mesmo tom de azul coloria todos
os olhos.
Dentro
da mansão as duas irmãs pareceram se esquecer de que estavam no fundo do mar, e
começaram a caminhar com os próprios pés sobre o piso de carvalho.
Anne
se aproximou da escada. Susan tentou detê-la, querendo sair logo daquele lugar,
mas a irmã ainda não parecia consciente dela. Olhava fixamente para o patamar
superior, praticamente escuro visto lá de baixo, exibindo um sorriso animado,
como se soubesse exatamente o que havia lá em cima, e tivesse ansiado por estar
ali durante muito tempo. No entanto, ao colocar o pé no primeiro degrau, Anne
se contraiu sobre o ventre e se inclinou para frente, e Susan percebeu
imediatamente que ela não conseguia respirar.
Susan
segurou o corpo da irmã e correu para fora da casa, nadando o mais depressa que
pôde ao passar pela porta. Era estranho o que estava acontecendo, pois ela
ainda respirava normalmente, e carregava Anne nos braços como se ela não
tivesse peso algum. Assim que alcançou a superfície, porém, Susan sentiu o peso
do corpo da irmã impulsionando-a para baixo. Anne mal teve tempo de tomar um
pouco de fôlego, antes que Susan afundasse novamente com ela nos braços.
Agora
ela também estava se afogando, e ambas se agitaram de volta à superfície,
apavoradas.
Foi
um nado difícil até a praia. Quando finalmente alcançaram a areia, as duas
irmãs se entreolharam como se tentassem decidir se tudo aquilo fora real, ou
se, de algum modo, tiveram o mesmo sonho.
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