A Vida Como Ela É

em sábado, 22 de agosto de 2020

De vez em quando é bom ter uma dose de realidade na literatura.

Textos teatrais não são minhas leituras favoritas – a menos que sejam cômicos; ou Shakespeare –, mas de vez em quando gosto de conhecer os textos mais aclamados do gênero. Raramente me decepciono, embora estranhe um pouco a construção da narrativa – justamente pela, digamos, falta dela. Mas textos clássicos sobrevivem por tanto tempo por alguma razão.

Um Bonde Chamado Desejo já estava na minha lista de leitura há algum tempo, e eu procrastinei o quanto pude para começar a ler. De repente, quis uma leitura curta, apenas para me distrair, e decidi que era chegada a hora de conhecer a aclamada obra de Tennessee Williams.

UM BONDE CHAMADO DESEJO

Título Original: A Streetcar Named Desire

Autor: Tennessee Williams

Editora: L&PM Pocket

Páginas: 160

Gênero: Teatro | Drama


Sinopse:

Um Bonde Chamado Desejo é o retrato de uma sociedade decadente, personificada por Blanche DuBois, uma bela mulher que volta para a casa da irmã por não ter mais para onde ir. À beira da loucura, traumatizada e sofrida, ela entra em confronto com o mundo rude e viril do cunhado, Stanley Kowalski. Essa tensão, estabelecida entre o refinamento e a brutalidade, mostra uma família em ruínas num mundo conflituado, sem lugar para o amor e para a sensibilidade. Peça em onze cenas.

EEEE


A peça começa com a chegada de Blanche DuBois a Nova Orleans, onde vive sua irmã Stella, com o marido Stanley Kowalski. Blanche vinha de Laurel, outra cidade da Louisiana, utilizando como transporte o famoso bonde da linha Desire (Desejo).

Mas não se enganem: o título do livro remete menos ao bonde, e mais a uma metáfora, representando o estado de espírito de sua protagonista.

Ao chegar ao modesto apartamento de sua irmã, Blanche já nos revela alguns traços de sua singular personalidade: trouxera consigo um baú cheio de roupas espalhafatosas e joias – que Stella julga imediatamente serem falsas –, cheia de pose, destilando críticas à situação modesta em que vive sua irmã e ao temperamento bruto e rústico de seu marido. Blanche se gaba de seu refinamento, e de sua educação, muito superior a do Sr. Kowalski, que chega mesmo a ser agressivo com sua esposa, em início de gravidez.

Confesso que, apesar do que acontece com a maioria das pessoas que leem esta obra, não consegui simpatizar com Stanley. No filme, estrelado por Vivien Leigh, Marlon Brando se apresentou de maneira carismática a princípio, mas ao longo da trama, seu antagonismo prevalece ao charme de maneira irremediável.

A história se passa nos anos 1940, quando a função da mulher na sociedade ainda era muito mais limitada do que hoje, e era comum que elas se submetessem a maridos agressivos, para evitar terem que se sustentar sozinhas. Apesar disso, eu esperava um pouco mais de pulso firme por parte da Stella, e um pouco mais de reação, sobretudo agora que tem em casa o apoio e o modelo mais enérgico da irmã, Blanche, que não baixa a cabeça tão facilmente.

Desde o princípio, Blanche e Stanley medem forças, e Stella fica o tempo todo no meio do fogo cruzado, ora argumentando a favor da irmã, contra a desconfiança do marido a respeito dela; ora defendendo as atitudes do marido, diante dos comentários horrorizados de Blanche.


Toda a ação do texto tem lugar dentro do apartamento, então nossa percepção completa a respeito dos personagens é bastante limitada. Sabemos que Blanche é uma mulher perturbada, arrogante e potencialmente alcoólatra, que não aceita críticas ou repreensões, nem está disposta a ouvir conselhos. Sua vinda a Nova Orleans se deu após ter enterrado toda a família, e perdido a propriedade que tinham em Laurel, sem ter mais para onde ir. A história dá a entender que uma hipoteca fora executada por falta de pagamento, mas, desde o princípio, Stanley suspeita que Blanche a vendera, talvez por uma ninharia, e investira todo o dinheiro naquelas roupas espalhafatosas e nas joias, embora Stella não acredite que a irmã a esteja passando para trás. Ao ser pessoalmente confrontada a respeito, Blanche permite que o cunhado examine os documentos e veja por si mesmo o que aconteceu com o imóvel.

Mas isso não melhora o relacionamento dessa família. Nem o fato de Blanche estar romanticamente envolvida com um dos amigos do cunhado, Mitch, que de certa maneira parece representar um possível porto seguro ou uma tábua de salvação para Blanche, embora se saiba que ela joga e o manipula o tempo todo. Primeiro, fazendo-o crer que ela é mais jovem do que realmente é, e depois tentando convencê-lo de sua honestidade e caráter ilibados. Mas a história de Blanche não é bem essa.

A moça casara-se muito jovem, mas seu marido se revelou um degenerado – segundo a escolha de palavras de Stella –, que mais tarde suicidou-se para fugir de seus próprios fantasmas. Daí em diante, Blanche enfrentou a vida sozinha, trabalhando como professora, lutando com uma família que foi diminuindo pouco a pouco, e ao que tudo indica, com inesperadas dificuldades financeiras. Somem a isso, um imenso desequilíbrio sentimental, provocado por todo o sofrimento que teve que suportar, e pela solidão, não sabendo lidar direito com nenhum dos dois.

Apesar de não ter caído de amores pela protagonista, eu consigo entender aquela personalidade confusa e perturbada de Blanche, uma mulher que precisou encarar uma realidade para a qual não fora preparada.

A personagem é a epítome de uma aristocracia decadente, sobre a qual a depressão americana se abateu de forma violenta, e que teve que mudar repentinamente o padrão de vida com o qual estava acostumada, e que não conseguia se acostumar com a nova situação e os revezes de sua vida.

A roleta da sorte não estava a favor de Blanche, e a arma que ela encontrou para lutar contra essa nova perspectiva foi a manipulação, usando seu charme para conquistar novos atrativos, sustentados por uma teia de mentiras.

Quando a verdade vem à tona, no entanto, seu castelo de cartas desmorona, culminando num final relativamente trágico.

Eu disse que não caí de amores pela personagem, mas a compreendi o bastante para simpatizar com sua história, e até para não culpá-la por sua maneira de ser. Ela cometeu muitos erros, sim, mas aparentemente, quando teve seu caráter julgado pelos demais personagens, ninguém levou em consideração os sofrimentos que a levaram a desenvolver aquele temperamento, a cometer aqueles erros, e à inevitável insanidade.

Não digo que o final pudesse ter sido outro. Ela realmente precisava de ajuda, mas acho que o autor se esqueceu de que havia outros caráteres que careciam de um julgamento ao final dessa história.

Como Stanley. No simbolismo da obra, o Sr. Kowalski representou a brutalidade dos difíceis novos tempos que passariam a compor a sociedade americana após aquele período de depressão; e no entanto, foi desenvolvido um antagonismo tão pungente nesse personagem, que eu realmente senti falta de uma punição no final. Pode até ser que Stella não tenha tomado conhecimento da violência insinuada na penúltima cena, mas tudo o que ela já tinha assistido e sofrido demonstra uma passividade ridícula. No contexto metafórico, ela representa o comodismo, aquela parcela da sociedade que apenas se habituou a aceitar o que o destino lhe dá, e que não tem forças para lutar por mudanças ou melhorias.

Como eu disse, a peça foi ambientada numa época difícil para a mulher. Ainda assim, do mesmo modo como Blanche estava determinada a lutar, seja como for, mesmo quando seus nervos já não podiam suportar, da forma certa ou da forma errada, senti que Stella poderia ter feito mais para mudar aquilo que a incomodava naquela vida conjugal abusiva.

Mas os personagens são representações. E analisando sob essa ótica, temos representados no trio principal todas as principais características que compunham a sociedade americana daqueles tempos: o operário que encara os tempos brutais com a mesma disposição, e que não tem humor para futilidades; a burguesia decadente que precisa se reajustar aos novos tempos, que sofre com as novas restrições, e tenta continuar ostentando refinamento através de uma vida de aparências; e a fragilidade daqueles que não têm forças para lutar ou para resistir, e apenas se conformam com o que a sorte lhes oferecer.

No caráter representativo social, Um Bonde Chamado Desejo é uma obra rica em nuances, que desnuda uma época que marcou grandes mudanças na história americana. E acima de tudo, reflete uma realidade crua, sem maquiagem, que se aplica a qualquer época ou cenário da história humana. Afinal, todo mundo está sujeito aos revezes da sorte em todos os aspectos da vida – familiar, social ou econômica –, mas é a maneira como se escolhe encarar esses revezes que determinam as Blanches, Stanleys e Stellas. A vida é dura. Cabe a cada um escolher encarar, aceitar, maquiar, enlouquecer ou vencer as dificuldades.


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