E
finalmente chegamos ao último episódio prometido da série alemã Sechs auf einen Streich (Os Melhores
Contos de Grimm). Para encerrar com chave de ouro, eu reservei um conto bem
conhecido de todos, mas aposto que muitos de vocês ficarão surpresos ao
conhecer a versão original, contada diretamente pelo povo alemão.
A Gata Borralheira
Sim,
é a história da Cinderela; mas sem Bibit Bobit Bum.
Como
nas postagens anteriores, por se tratar de uma série alemã, cujos atores são
completamente desconhecidos no nosso país, achei interessante incluir uma
pequena ficha técnica apresentando o elenco para vocês. Então vamos lá:
Publicado
no primeiro volume da coletânea dos Irmãos Grimm em 1812.
Título original:
Aschenputtel
Elenco:
Aschenputtel (Cinderela): Aylin Tezel
Prinz Viktor (Príncipe Viktor): Florian
Bartholomäi
Stiefmutter (Madrasta): Barbara Auer
Stiefschwester Annabella (Annabella, a irmã postiça): Pheline Roggan
König Klemens (Rei Clemente, pai de Viktor):
Harald Krassnitzer
Magd Johanna (Johanna, a outra criada da Madrasta): Anna Brüggemann
Knecht Benno (Conselheiro do Rei): Axel
Siefer
Agora
sim, vamos ao conto:
Era
uma
vez, num reino distante, uma mocinha que era muito maltratada pela
Madrasta. Depois que seu pai morreu, e a Madrasta assumiu o controle de
sua
fazenda, Aschenputtel (Cinderela, para os íntimos), foi reduzida a mera
criada,
e obrigada a realizar os serviços mais imundos da casa.
Como
se sente sozinha, Aschenputtel visita com frequência o túmulo de sua mãe, sob
uma nogueira, onde uma pombinha branca está sempre empoleirada, como se o
protegesse. E como não tem ninguém por ela, um encanto na nogueira faz todo o
possível para tornar sua vida mais agradável. Naquela manhã em particular, ao
visitar o túmulo da mãe, ela ganha de presente um pente para que não ande tão
despenteada.
Mas
ao voltar para casa, Aschenputtel não teve tempo de guardá-lo, pois sua Madrasta
já estava procurando por ela, para que levasse alguns leitões para um comprador
na cidade. Então ela os colocou na carroça e partiu imediatamente.
Aschenputtel
aproveitou que o burro que puxava a carroça empacou no meio do bosque para
fazer uma boquinha, e nesse momento quase foi atropelada por um sujeito que
vinha a cavalo, e a fez cair de cara na lama.
Com
o susto, o burro se adiantou, fazendo a carroça bater numa pedra; a portinha
que impedia a saída dos leitões se abriu, e todos eles fugiram. Então,
Aschenputtel e o caçador atrapalhado – porque ela deduziu que aquele homem não
podia ser outra coisa, senão um caçador – iniciaram uma busca para recapturar
os leitõezinhos fujões, que os deixou tão sujos quanto se tivessem brincado de rolar
num chiqueiro.
Infelizmente
para
a pobre menina, um dos leitõezinhos não foi encontrado, então ela teve
que
seguir seu caminho e entregar somente quatro leitões ao comprador. Sua
Madrasta, porém, não gostou nada de saber que só receberia quatro
moedas, pelos
quatro leitões vendidos, e não acreditou na história de Aschenputtel
sobre o
idiota que assustou seu burro e fez os porcos escaparem da carroça.
Sobretudo
depois de revistá-la e encontrar o pente que ela ganhara de manhã, sem
ter como
explicar onde foi que o arrumou. De modo que a Madrasta malvada deduziu
que ela
roubara uma de suas moedas para comprar o pente, e decidiu confiscá-lo e
dá-lo
à sua filha Annabella.
Falando
nisso,
onde foi que enfiaram a outra irmã da Cinderela? Nessa adaptação, a
Madrasta malvada tem somente uma filha a quem mimar, e não duas como no
conto
que conhecemos. Mas, tudo bem... Sigamos em frente.
Aschenputtel
retorna, naquela tarde, ao túmulo da mãe, para lamentar o que lhe aconteceu, e
como é uma boa menina, e foi vítima de uma injustiça, a nogueira lhe dá outro
pente, desta vez de prata, para substituir o pente de madeira que a Madrasta confiscou.
Enquanto
isso, não muito longe dali, o “caçador”, retorna ao castelo, e leva uma bronca
do Rei por chegar em casa fedendo a chiqueiro, mas ele não liga, e garante que
esteve se divertindo na floresta. O Rei, porém, acha que ele já não tem mais
idade para isso, e que já está mais do que na hora de ele arrumar uma esposa,
para que ele possa enfim lhe passar a coroa. O Príncipe Victor – que não é, de
fato, um caçador –, afirma que não está interessado em se casar ainda, mas o
Rei decide, mesmo a contragosto do filho, oferecer um baile a todas as moças
solteiras do reino, para que seu filho possa escolher uma delas.
A
notícia do baile é recebida com entusiasmo na fazenda, e Aschenputtel
confessa
a uma amiga e também criada da fazenda, Johanna, que não tem interesse
no Príncipe, mas que gostaria de poder ir ao baile e dançar um pouco.
Ela pede
permissão à Madrasta, mas esta reage com indignação, pois pretende
induzir o Príncipe a escolher sua filha como esposa; mas depois acaba
consentindo,
contanto que Aschenputtel cumpra primeiro uma longa lista de tarefas –
que ela
imagina ser longa demais para ela terminar a tempo de ir ao baile.
Primeiro,
ela deve ir ao moinho buscar alguns sacos de farinha, apesar de terem farinha
de sobra na fazenda. Mas esta tarefa acaba sendo novamente atrapalhada quando
Aschenputtel se distrai observando o mesmo suposto caçador que está como uma
besta... Digo, com uma besta tentando
caçar passarinhos nos galhos das árvores na floresta. Ela ficou tão absorta
espiando o rapaz, agachada ao lado do burro – Nepomuk, o de quatro patas que
carrega a farinha, quero dizer –, que nem se dá conta quando puxa
acidentalmente o cordão que amarra a boca de um dos sacos ao tentar se
levantar, fazendo toda a farinha cair por cima dela.
Não
bastasse o prejuízo que ela, de novo, teria que explicar à Madrasta,
Aschenputtel acaba escorregando pelo barranco, branca de farinha, e caindo aos
pés do seu suposto caçador.
Os
dois
conversam um pouco, e ela se distrai tirando sarro porque ele não
consegue
distinguir uma árvore da outra, e quando volta para casa, toma outro
esporro da Madrasta por ter usado um saco inteiro de farinha como pó de
arroz.
Felizmente,
desta vez, a Madrasta não quis descontar o prejuízo com o que quer que a
enteada tivesse nos bolsos, afinal, a coitada já teria trabalho suficiente
fazendo o serviço de quinze dias em apenas um se quisesse ir ao baile.
E
como é uma garota determinada, Aschenputtel conseguiu cumprir todas as tarefas
com folga: a casa estava limpa, os chiqueiros também, a farinha estava
guardada, a roupa lavada, a comida pronta, a cozinha arrumada, o aluguel do Seu
Madruga pago... Enfim, ela já estava liberada para começar a se arrumar.
No
entanto, Annabella decidiu, na última hora, que queria comer sopa de lentilhas,
e mandou Aschenputtel preparar. Mas como o plano era atrasar a irmã postiça o
máximo possível, a vadiazinha jogou toda a lentilha do pote nas cinzas ao lado
do fogão para que a irmã tivesse que recolhê-las. E como desgraça pouca é
bobagem, a Madrasta decidiu complicar ainda mais a vida da enteada, adicionando
ervilhas à bagunça de grãos no chão da cozinha, esperando que Aschenputtel não
conseguisse separar tudo antes do baile.
E
ela realmente não teria conseguido, se a pombinha branca que gosta de se
empoleirar na nogueira que cresceu no túmulo de sua mãe não tivesse chamado as
amigas para ajudar a separar os grãos de ervilha numa vasilha, os de lentilha
na outra, e as cinzas para fazer a sopa da Madrasta.
Menos
de uma hora depois, Aschenputtel mostrou os grãos separados para sua Madrasta, que
se admirou por ela ter conseguido cumprir a tarefa a tempo. Então a mocinha
anunciou que só ia se limpar um pouco, e já, já estaria pronta para partir,
porém a Madrasta a proibiu, lembrando-a de que ela era ralé demais para ir a um
baile no palácio, o que fez Aschenputtel dar um chilique.
Então,
na falta de uma saia, a mocinha foi novamente chorar debaixo da árvore da mãe,
lá onde toda a magia acontece, e, pouco tempo depois, ela estava limpa,
penteada, trajada com um belo vestido branco, e com um lindo cavalo branco à
sua espera.
Assim,
tem início o grande baile para desencalhar o Príncipe Victor, e ele começa a
apreciar o desfile de “beldades” ainda no jardim.
Eis
que chega a mocinha – detalhe: sem o toque de recolher à meia-noite; até porque
o baile acontece durante o dia –, em seu cavalo branco, e não demora a perceber
a presença de seu belo caçador dançando no salão.
Aschenputtel
é, sem dúvida, a única mulher na face da Terra capaz de torcer o nariz ao
descobrir que andou flertando com um príncipe...
Mas
não se deixou intimidar. E como sua ideia desde o princípio era ir ao baile
para se divertir e dançar, ela não demorou a se jogar na pista, incentivada
pela Dama de Paus – se é que vocês me
entendem...
E
também não demorou nadinha para atrair a atenção do Príncipe para si. A
princípio, ele não consegue se lembrar de onde a conhece, e imagina que ela
pertença a nobreza, mas ela logo garante que não.
E
vai arrebatando o coração do Príncipe ao demonstrar que conhece suas danças
melhor do que ele. Para desagrado de Annabella e da Madrasta, que ficam
possessas ao perceberem que é Aschenputtel quem está monopolizando a atenção do
Príncipe Victor.
Elas
aproveitam uma distração do Príncipe para arrastar Aschenputtel para fora do
palácio e empurrá-la no fosso, para que não fique no caminho de Annabella e seu
golpe do baú. Humilhada e ensopada, a mocinha acaba não tendo outra
alternativa, senão montar seu cavalo branco e ir embora mais cedo do baile, sem
se preocupar em recolher o sapato que perdera ao ser arrastada pelas duas
malvadas.
Licença poética by Chapolin
Colorado
|
Bem,
não importa muito de quê seja feito o sapato, contanto que ele seja calçado no
pé da garota certa!
Então,
o Príncipe Victor, determinado a não perder sua pretendente desastrada, decidiu
sair em seu encalço. Porém, a Madrasta de Aschenputtel, depois de perceber que
o Príncipe se escafedera atrás de um rabo de saia qualquer, e não tendo mais
ninguém importante ali com quem pudesse casar Annabella, voltou para a fazenda,
e começou a estapear a enteada por tê-la desobedecido e estragado seus planos.
E como uma bronca e um pequeno corretivo não pareceram suficientes para
extravasar sua raiva, a Madrasta jogou Aschenputtel por um alçapão na cozinha,
arrastou uma mesa para cima dele e se sentou para evitar que a enteada
escapasse outra vez.
E
bem nesse momento bateram em sua porta.
E
como percebe que esse milagre é resultado da reza de outra santa, a Madrasta
mantém Aschenputtel trancada e manda Annabella colocar um vestido branco e o
manto de pelerine para esconder seu rosto.
Então
ela conduz Annabella, com o rosto escondido sob o capuz do manto, até o
Príncipe, para que ele a leve embora de uma vez, mas ele pede que ela
experimente o sapato, para que ele possa ter certeza de que ela é realmente a
moça que ele está procurando. E como é muito desconfortável fazer isso em pé, e
é extremamente difícil encaixar um sapato naquela prancha de surf que Annabella
tem no final de suas pernas, a mulher a leva para calçar o sapato dentro de
casa.
Como
todos já sabemos, o sapato é pequeno demais para o pezão da irmã postiça da
Cinderela, mas como sua mãe está convencida de que nenhum sacrifício é demais para
quem quer se tornar rainha, literalmente desce o machado sobre o pé de sua
filha para que ele caiba no sapatinho.
Em
seguida, ela conduz a filha de novo para fora, e mostra ao Príncipe o pé
calçado com o sapato. No entanto, a pomba que gosta de dormir num galho da
nogueira começa a cantar para o Príncipe, alertando sobre a presença de sangue
no sapato. E ao removê-lo para verificar, Victor comprova que aquela louca foi
capaz de cortar um pedaço do pé de sua própria filha para forçá-lo a casar com
ela.
Então
ele pergunta se há outras moças na casa, disposto a experimentar o sapatinho em
cada uma delas, se for preciso; porém a Madrasta garante que não tem outra
filha, mas que Annabella é lindíssima, e que ele poderia facilmente se
apaixonar por ela.
E
enquanto toda essa confusão acontecia no quintal, Johanna, a outra empregada da
fazenda procurava Aschenputtel, e a libertava do alçapão, bem a tempo de sair
para encontrar seu Príncipe e recuperar seu sapato.
Pois
é, dona Madrasta: aqui se faz, aqui se paga!
Aschenputtel
pede permissão ao Príncipe para levar todos os empregados da fazenda para
trabalhar no castelo e ele consente, para alegria geral da nação, que comemora
não ter mais que aturar aquela megera.
Assim,
a Madrasta e a filha malvada ficam sozinhas em sua fazenda – Annabella com o
déficit de alguns dedos do pé –, assistindo enquanto Aschenputtel, a quem tanto
maltrataram, parte para o castelo com o Príncipe Victor, onde viverão felizes
para sempre.
Isto
é, depois de passar um pouco de cola naquele sapato que ela insiste em
continuar perdendo por aí...
Fim.
* Curiosidades:
*
Não se sabe ao certo a origem da Cinderela, mas acredita-se que o conto tenha
nascido na China, por volta de 860 a.C., tendo também versões conhecidas desde
o Antigo Egito. Na Europa, a versão mais antiga é italiana: La Gatta Cenerentola, publicada em 1634,
por Giambattista Basile. Somente em 1697, o conto se tornou popular no resto da
Europa, com a versão do francês Charles Perraut (a versão retratada pela Disney),
e, mais tarde, em 1812, com a dos Irmãos Grimm (a versão que acabo de contar).
*
No conto original dos Irmãos Grimm, não havia Fada-Madrinha nem Bibit Bobit
Bum. O encanto veio mesmo da pombinha branca que vivia empoleirada na nogueira
que cresceu no túmulo da mãe da Cinderela.
*
Cinderela também não era completamente órfã. Seu pai ainda estava vivo
quando o Rei ofereceu o baile para que seu filho escolhesse uma noiva –
baile este, que
durara três dias, e em cada um deles, Cinderela apareceu com um vestido
diferente, sempre mais belo e luxuoso que o anterior –, e não se sabe
bem o
motivo, mas o pai da garota não fazia nada para evitar que sua filha
fosse
maltratada e humilhada pela Madrasta e pelas irmãs postiças – que,
falando
nisso, eram duas!
*
O sapato de cristal também é uma invenção ocidental. O conto original não
descreve exatamente do que eram feitos os sapatos de Cinderela, apenas destaca
que eles eram bordados com ouro e prata.
Bem,
assim terminamos nossa série de postagens sobre os contos de fadas alemães.
Espero que tenham curtido. Nos vemos em breve! *-*
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