Imaginem um conto de fadas, cujo cenário é uma
cidade no interior de Pernambuco.
A mocinha é bem tradicional, meiga, gentil,
sonhadora e apaixonada por filmes românticos.
O príncipe não tem encanto nenhum, porém é
rico, e passa a história toda tirando onda de carioca só porque isso
supostamente é legal.
O rei, pai da mocinha, é o delegado da cidade,
um pai zeloso e profissional autoritário, que cuida em manter a ordem na
cidade, dentro do possível.
E como em todo bom conto de fadas, não pode
faltar um bobo da corte, alguém para fazer graça e animar até as cenas mais
tensas, temos um Cabo do Exército atrapalhado, que acaba de arrumar uma nova
mulher, e passa a história inteira tentando apresentar as armas à sua nova
senhora.
Agora imaginem que a mocinha do nosso conto de
fadas deixe o príncipe sem encanto por um plebeu malandro e cheio de conversa
fiada, que ainda trouxe na bagagem uma amante vingativa e invejosa, cujo marido
é um pistoleiro valente que jurou o malandro de morte quando descobriu o caso
dele com sua mulher.
Embora este conto possa ser chamado de “A
Princesa e o Malandro”, ele é mais conhecido como Lisbela e o Prisioneiro.
Esse filme, além da história divertida, traz
algumas características interessantes, como Lisbela desvendar os segredos da
estruturação de um filme. E à medida que a trama se desenrola, percebemos que
este filme também segue a lógica desvendada por ela.
É tudo muito óbvio. Sabemos com antecipação
tudo o que vai acontecer, mas como a própria Lisbela disse: “a graça não é
saber o que acontece. Mas como acontece e quando acontece”.
Então o que acontece nesta trama?
Primeiro momento: APRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS
Conhecemos Lisbela, que é a mocinha sonhadora
e apaixonada por filmes americanos, e seu noivo, o príncipe desencantado com
falso sotaque carioca, Douglas. Eles vão ao cinema como bons namorados
comportados, típicos dos anos 50.
Também conhecemos Leléu, o trapaceiro que muda
de nome e de profissão a cada cidade para ganhar a vida da forma como melhor
sabe. A princípio ele leva a mulherada no bico para vender seu suposto elixir
para curar a impotência dos maridos, e aproveita para pegar geral. Por aí
percebemos que ele vale menos que um saco de farinha. Depois, em outra cidade,
ele mostra seus conhecimentos de esoterismo, e mais adiante, suas aptidões
artísticas como trapezista.
Então ele chega a Boa Vista para apresentar,
com o pseudônimo Patrick Mendel, A Paixão de Cristo na praça. E é onde
conhecemos Inaura, para quem, entre uma fala e outra da peça, Leléu aproveita
para destilar gracejos de gaiato.
E depois de “conhecê-la mais profundamente”,
Leléu conhece o marido dela, Frederico Evandro, o vilão de nossa história.
Enquanto sua mulher usufruía uma hora extra com Leléu, o coitado estava no
serviço. Leléu só não podia esperar que o marido de sua nova conquista ganhasse
a vida como matador.
Segundo momento: O ENCONTRO DOS MOCINHOS
“Agora que já vimos a mocinha e já vimos o
mocinho, está na hora de ver os dois juntos”.
Isso acontece no parque de diversões, em
Vitória de Santo Antão, cidade onde Lisbela vive, quando ele apresenta um
número em que sua assistente se transforma em Monga, a mulher gorila. Leléu faz
Douglas desistir de entrar para ver o número, e depois que todos saem correndo,
ele fica sozinho com Lisbela, para quem ele apresenta um novo Leléu, muito
diferente do gaiato que conquistou Inaura. Chega até a declamar alguns versos
de um poema de Camões, e assim, conquista o coração da mocinha.
Terceiro momento: O PERIGO ESPREITA
Frederico Evandro chega à cidade, e começa a
interrogar as pessoas em busca do suposto Patrick Mendel. Logo em seguida, o
povo corre pela rua fugindo de um touro bravo. Então Frederico saca o revolver,
pronto para atirar no animal, mas neste momento surge Leléu, que se agarra aos
chifres do touro e o coloca em retirada, salvando assim a vida do homem que
quer dar cabo da sua.
Quarto momento: CONFLITO
Leléu encontra Lisbela no cinema, e depois de
beijar a mocinha, ela decide desistir do casamento para viver seu amor com
Leléu. Mas logo que isso acontece, Inaura reaparece para avisar ao malandro que
Frederico está em seu encalço.
Então Leléu percebe que sua vida é
imprevisível demais para uma moça com a vida tão direitinha quanto Lisbela, e
vai até o cinema se despedir da mocinha. Lisbela novamente nos dá uma lição de
que entende do andamento das histórias de amor, dizendo que nem quer saber o
motivo de força maior que está fazendo ele desistir dela, porque ou é mentira
ou ela vai gostar ainda mais dele. Então Inaura aparece para apressar Leléu, e
Lisbela percebe que o que quer que ele estivesse planejando lhe dizer era
mentira.
E então: O
FINAL
A partir daqui a história se encaminha para o
desfecho, quando Leléu decide pedir ajuda ao valente que ele salvou do touro
bravo, e que jurou se livrar de um inimigo seu em pagamento, sem saber que o
tal valente era o próprio Frederico, de quem ele está fugindo.
Então o matador, quando percebe que ficou
devendo a vida ao homem que jurou matar, garante que cumprirá suas duas
promessas: matará Leléu, para cumprir sua vingança, e depois se matará, para
cumprir a promessa de se livrar do inimigo dele.
Porém, Lisbela surge na hora exata para dar
sua maior prova de amor a Leléu, fazendo-o ser preso, no exato momento em que
ele estava prestes a tomar o teco da fera, salvando assim sua vida.
Há uma dúvida Shakespeariana durante o
casamento de Douglas e Lisbela “fugir ou não fugir, eis a questão”, e nessa
confusão, todos acabam virando reféns de Frederico – a maior de todas as
ironias – dentro da delegacia!
Teria sido realmente engraçado se o grande
vilão da história tivesse sido assassinado pela doce Lisbela. De qualquer modo,
ser morto pelas costas por uma mulher era um final que o valentão não esperava.
É raridade a gente ver um filme nacional
realmente bom. Engraçados têm vários, cheios de apelos de todos os tipos, mas
bom de verdade, com a fórmula simples de humor, em que mesmo que a piada seja
batida, a interpretação e o contexto nos arrancam risadas espontâneas, são
poucos.
“Lisbela e o Prisioneiro” é um desses milagres
nacionais, inspirado na obra homônima de Osman Lins, que fora antes adaptada
para o teatro. É verdade que o livro tinha vários outros personagens, mas
apesar disso a versão para o cinema foi impecável, incorporando todos os
elementos principais da trama, de maneira consistente, mantendo a comicidade e
a simplicidade do texto.
Milagre nacional é ter Guel Arraes na direção e Selton Mello no elenco (sou fã dos dois).
ResponderExcluirEscreve sobre a Grande Família depois, gostei das suas resenhas. Abraço