Cuidado Com Aquilo Que Despertas Para a Vida!

em quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Uma obra que evoca sentimentos controversos.

Frankenstein é uma daquelas histórias que te surpreenderá mesmo que você tenha visto o filme milhares de vezes. Até porque já foram feitas tantas versões, todas diferentes umas das outras, e todas tão distantes do livro, que a obra escrita se torna uma história inédita ao leitor.

Numa ocasião, quando relacionava os monstros clássicos da Universal Pictures, citei um comentário que vi num artigo certa vez, que dizia “desde que o estúdio filmou Frankenstein ninguém mais leu o livro”. Os detalhes acerca da obra que todos pensam conhecer deixam isso claro.

* Ao contrário do que o cinema deu a entender, o cientista não era alemão, mas suíço, nascido e criado em Genebra. Ele apenas estudou na Alemanha;

* A pele do monstro nunca foi verde;

* Nunca houve um assistente de Frankenstein. Victor realizou sua experiência completamente sozinho;

* O monstro não afogou a menina no lago. Na verdade, ele a salvou do afogamento;

* A noiva do monstro nunca despertou para a vida.

Essas são só algumas informações para desmistificar a ilusão criada pelo cinema de que nós conhecemos a história de Frankenstein sem jamais ter lido o livro.

Mary Shelley escreveu um romance doentio, tétrico, e de um realismo perverso.

 

FRANKENSTEIN OU O PROMETEU MODERNO

Título Original: Frankenstein: or the Modern Prometheus

Autora: Mary Shelley

Editora: Zahar

Páginas: 250

Gênero: Horror | Ficção Científica


Sinopse:

Frankenstein é sem dúvida o maior clássico de terror de todos os tempos. É também um ensaio sobre a prepotência humana e a solidão em sociedade. Cego em seu propósito de dar vida à matéria inanimada, o cientista Victor Frankenstein constrói um ser monstruoso a partir de restos humanos - mas, quando enfim alcança o resultado pretendido, foge de sua própria criação! Abandonada e fadada ao desterro e à rejeição, a criatura passa a perseguir o cientista e, depois, a buscar vingança.

EEEEE

 


 

Victor Frankenstein era obcecado pelas ciências naturais, e ambicionava utilizar os conhecimentos de diversos autores para um empreendimento inusitado: dar vida a uma nova criatura.

Frankenstein – o cientista, não o monstro – pensava ter descoberto a centelha que era capaz de despertar a vida num ser, e a partir daí, ele pretendia criar um ser humano de proporções únicas, e fazê-lo viver. Sua intenção era fazê-lo belo, mas Victor não calculou que a compilação de pedaços de seres humanos diferentes, ligamentos e pele remendados por toda parte tornariam sua aparência hedionda. Foi só ao concluir o experimento, e ver a criatura ganhar vida que ele se deu conta da coisa horrenda que criara. Ele mesmo teve medo e horror da criatura, e fugiu dela, sem ao menos esperar para saber qual era seu grau de entendimento, e sem qualquer explicação de nenhuma das partes.

O monstro acabou por descobrir o mundo sozinho fora das paredes do laboratório. Abandonado à própria sorte no rigoroso inverno europeu, ele sentiu frio, fome, fadiga. Teve que aprender sozinho a atenuar seus sofrimentos e a prover-se do necessário à subsistência. E também descobriu sozinho, e da maneira mais terrível, que os seres humanos não toleram diferenças, e que ao ver uma criatura de aparência monstruosa, deduzem automaticamente que ela é má, e que não merece qualquer consideração.

O monstro não era mau, em essência, mas as circunstâncias fizeram com que agisse assim. Pois mesmo quando ele praticava boas ações, como auxiliar anonimamente uma família que vivia em quase completa miséria numa cabana isolada na floresta, ou salvar uma criança do afogamento, a simples visão de sua feiura era suficiente para apagar o gesto nobre, e fazer com que o tratassem como a mais vil das criaturas, que sem dúvida não era digno de viver.

Depois de experimentar algumas vezes o ódio precipitado dos homens por suas deformidades, a criatura decidiu transformar-se no monstro que a humanidade via em sua aparência hedionda, e se vingar de seu criador por tê-lo despertado para aquela vida terrível e o abandonado à própria sorte.

Victor teve ainda uma oportunidade de redimir-se com sua criatura, quando este lhe pediu que criasse uma fêmea, tão hedionda quanto ele próprio, que lhe serviria de companheira nessa existência injusta que o cientista involuntariamente impôs. Frankenstein chegou a construir a criatura, mas depois arrependeu-se, imaginando se não estaria na verdade agravando o problema, ao soltar mais uma besta no mundo. Em momento algum ele considerou que a criatura poderia viver em paz, sem fazer mal a ninguém, se apenas conseguisse se livrar da solidão.

É bom enfatizar que, de acordo com a história que contara – e não podemos saber até que ponto estava sendo sincero ao contá-la –, o monstro tinha boas intenções, sabia diferenciar o bem e o mal, e inclinava-se mais para o bem. Foi o repúdio que sofrera por sua aparência deformada, de todos os que puseram os olhos nele, que degeneraram seu caráter, fazendo com que se transformasse num assassino, com ódio da humanidade.

Ele só queria ser aceito. Afinal, ninguém gosta de viver só.

Ao destruir as esperanças do monstro, juntamente com a nova criatura que nem mesmo chegara a despertar para a vida, Victor sentiu na própria carne a ira do monstro, que voltou-se definitivamente contra seu criador, decidido a destruir Victor Frankenstein e sua família.

Mary Shelley escreveu um texto difícil para os leitores apressados do século XXI. Ela se preocupou em descrever a vida e as emoções de Victor Frankenstein e de seu monstro com riqueza de detalhes, e isso, de certa forma, torna a narrativa um tanto arrastada e cansativa. É diferente do Drácula, por exemplo, em que cada carta ou entrada de diário trazia uma novidade, uma ação e uma emoção diferente. O Drácula é uma narrativa mais fluida, que prende mais a atenção do leitor. Por outro lado, a obsessão detalhista de Mary Shelley nos permite conhecer a fundo criador e criatura, em todas as suas nuances, todos os seus sentimentos, e o cerne de seu caráter.

Frankenstein funciona como uma metáfora excelente à degeneração da alma humana, e aos danos que causamos quando excedemos os limites tentando brincar de Deus. Victor queria dar vida à uma criatura por meios não naturais, mas não previu as consequências que sua experiência poderia ter, e que acabou por ser a ruína de sua família. Uma lição que a humanidade nunca aprendeu.

Nos últimos dois séculos os homens têm consumido os recursos naturais num ritmo frenético, e o avanço industrial e o crescimento das cidades gerou poluição, diminuição dos recursos hídricos, agravamento do efeito estufa, e as consequências vieram em forma de aquecimento global e outros desastres. Nós também criamos o nosso monstro, chamado tecnologia, que hoje é mais forte e até mais inteligente do que nós, tornando diversas funções humanas obsoletas. É provável que ela sobreviva depois que a humanidade acabar, assim como aconteceu com o monstro de Frankenstein.

A criatura não era má, mas foi corrompida pelas circunstâncias. E a grande verdade é que a humanidade nunca aprendeu a conviver com as diferenças. Olha o Hitler que não nos deixa mentir, matando milhões de judeus a troco de nada, só porque não possuíam as mesmas crenças que ele; olha o número de pessoas que morrem todos os anos vítimas de racismo, homofobia, ou qualquer outro tipo de preconceito.

Frankenstein é mais idoso que o Drácula, e no entanto, sua história permanece sendo assustadoramente atual. Nós ainda convivemos com os nossos monstros, e, algumas vezes, lamentavelmente, os monstros somos nós.

 

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