Como Reconstruir a Civilização Passo a Passo, Por Júlio Verne

em sábado, 29 de junho de 2019



Caso você suspeite que algum dia se encontrará sozinho numa ilha deserta, sem recursos para retornar à civilização, nem meios de comunicação, você PRECISA ler esse livro. Nele você encontrará tudo o que precisa saber para sobreviver confortavelmente numa situação bastante adversa e sem recursos.
Mais que uma grande obra da literatura clássica universal, A Ilha Misteriosa é uma leitura desafiadora para aqueles que não estão habituados ao estilo de Júlio Verne.
Ao contrário dos demais livros mais conhecidos e cultuados do autor – como Viagem Ao Centro da Terra, A Volta Ao Mundo Em 80 Dias e Vinte Mil Léguas Submarinas –, A Ilha Misteriosa é um livro demasiadamente longo e descritivo.
Antes de prosseguir, preciso abrir um parêntese para falar um pouquinho das outras obras que eu li de Verne, para que não pareça que estou iniciando a resenha com uma crítica negativa. De imediato, adianto: o livro é incrível! Mas é preciso primeiro que se conheça os antecedentes do autor na minha lista de leitura.
O primeiro livro que li de Júlio Verne foi Viagem Ao Centro da Terra, onde o autor cria uma narrativa em direção ao inexplorado e provavelmente inacessível centro do mundo, através de um mineralogista audacioso que simplesmente não pôde recusar o chamado da aventura. Um livro que seria difícil de ler, com tantos termos estranhos e complicados de assimilar, se a narrativa não fosse tão interessante.
Vinte Mil Léguas Submarinas narra as, digamos, aventuras de três náufragos a bordo do extraordinário submarino Nautillus, capitaneado por Nemo, um homem estranho e misterioso que os recolheu do mar, com a condição de que fizessem parte de sua tripulação pelo resto de seus dias. A história vai basicamente do nada a lugar nenhum, e parece não ter outro objetivo, senão demonstrar que existem mais coisas para se explorar no fundo dos oceanos do que poderíamos imaginar. O filme da Disney de 1954 conseguiu tirar leite de pedra e criar uma história infinitamente mais interessante que a do livro. Se eu tivesse começado a ler os livros do autor com esta obra, eu provavelmente não teria lido outro Verne.
A Volta Ao Mundo Em 80 Dias foi o primeiro livro de Verne que não me pareceu um guia de viagem. Neste livro o autor se lembrou de que era preciso criar uma história para dar contexto à viagem grandiosa de Phileas Fogg. E assim ele criou todas as aventuras que poderiam atrapalhar o êxito da viagem do protagonista, e sua vitória na aposta, como as investidas do desventurado Detetive Fix, o resgate da indiana Aouda, condenada a morrer na pira funerária onde queimariam o cadáver de seu marido, e todos os embaraços que quase puseram a perder a empreitada de Fogg. Este é, indubitavelmente, meu livro favorito do autor, pois pela primeira vez, ele se libertou da didática, e se concentrou em contar uma história mais despretensiosa, com começo, meio e fim, e com reviravoltas instigantes para os personagens.
Isto posto, vamos falar de A Ilha Misteriosa.

A ILHA MISTERIOSA
Título Original: L’Île Mystérieuse
Autor: Júlio Verne
Editora: Zahar
Páginas: 552
Gênero: Aventura

Sinopse:
Cinco “náufragos' do ar, arrastados em seu balão por um furacão, aterrissam numa ilha deserta do Pacífico Sul, em 24/03/1865. Contando somente com a roupa do corpo, porém enérgicos e determinados, o pequeno núcleo de colonos irá refazer toda a longa trajetória da civilização: da pré-história aos tempos modernos, da cerâmica rudimentar a instalação de um elevador, do domínio do fogo a fabricação de dinamite, dos primeiros artefatos a bateria, sem deixar de passar pelo advento da agricultura e da pecuária. Mas logo perceberão, escondida na ilha, uma presença misteriosa cujas intervenções eles constatam, sem, no entanto, descobrirem sua origem...
Sucesso desde o lançamento, A Ilha Misteriosa é uma viagem extraordinária e, também, uma reflexão sobre a humanidade, seus limites e sua definição.

EEEEE



O livro, como eu disse, é um relato bastante prolongado do destino de cinco náufragos que, fugindo de Richmond, no estado da Virgínia, onde haviam se tornado prisioneiros dos Confederados sulistas durante a Guerra de Secessão Americana, utilizaram como veículo de fuga um balão que encontraram dando sopa numa praça, sem a devida vigilância, em vista de uma tempestade que se aproximava. Todavia, apanhado por essa tempestade, o balão foi soprado para o Oceano Pacífico, onde, depois de os passageiros terem se livrado de todo o peso inútil, acabou se acidentando próximo à costa de uma ilha, até então, desconhecida.
A princípio, um dos náufragos, o engenheiro Cyrus Smith havia se perdido. Seus companheiros, depois de alcançarem a segurança da praia, esforçaram-se em descobrir o que havia sucedido ao engenheiro – resgatá-lo com vida, se possível, ou, em último caso, darem a ele ao menos uma sepultura digna.
Vejam, esses homens, mesmo tendo sido, de certa forma, prisioneiros de guerra, eram homens honestos e bons cristãos, e nessas condições, não desejavam a perda de nenhuma vida em seu grupo.
Passada a tempestade, eles encontraram abrigo numa caverna, onde mais tarde foram descobertos pelo cão do engenheiro, que eles também julgavam morto àquela altura. Nab, o fiel criado de Cyrus Smith, que não se conformou de maneira alguma com a possível perda de seu patrão, havia se obstinado em sua busca, mesmo depois que os companheiros haviam perdido a esperança, e veio a encontrá-lo com vida, ainda que muito debilitado, numa parte remota da ilha.
Uma vez reunido o grupo – formado pelo engenheiro, seu criado, o marinheiro Pencroff, o jovem Harbert e o repórter do New York Harold, Gédeon Spillet; e mais tarde, um homem resgatado num ilhéu mais ou menos próximo, chamado Ayrton, que havia sido lá abandonado à própria sorte como punição por seus atos de pirataria –, e depois de o engenheiro ter recuperado a saúde, os cinco náufragos iniciaram então uma expedição de reconhecimento à ilha para a qual o balão e a tempestade os arremessara.
E é essa história que eu mencionei como demasiadamente longa.
Só para esclarecer: longo, aqui, não tem o sentido de maçante. A história desses náufragos captura o interesse de uma forma que eu não consegui largar o livro até chegar à última página. Particularmente, gosto do estilo descritivo, e ao mesmo tempo didático empregado por Júlio Verne nessa obra, ainda que por vezes ele tenha se prolongado em demasia.
Do reconhecimento da ilha, à conclusão de que ela não era habitada por homens, da verificação de sua posição no Oceano Pacífico – os náufragos utilizaram seus conhecimentos de geografia e horologia para determinar a latitude e longitude aproximadas da ilha, que mais tarde, verificadas com precisão com a ajuda de um sextante encontrado numa caixa proveniente de algum outro naufrágio ocorrido nas imediações da ilha, se confirmou com bastante aproximação –, até os esforços para tornar mais confortável sua situação de sobrevivência naquele pedaço de mundo tão distante de qualquer outra terra – que incluíram descobrir um refúgio seguro sob qualquer circunstância, numa galeria cavada naturalmente no interior de um maciço granítico, cujo corredor outrora servia para dar vazão às águas de um lago, que desaguava diretamente no mar; fabricar utensílios e ferramentas necessárias à sua sobrevivência, como vasos e panelas de barro, pás, picaretas, machados, fornos, etc.; e inclusive preparados químicos que permitiram criar uma nova vazante para as águas desse lago, desobstruindo a passagem para sua nova habitação –, temos uma narrativa incrivelmente detalhada de todos os esforços e conhecimentos empregados em cada etapa da adaptação dos náufragos à vida naquela ilha. Aos sedentos por conhecimento, Verne nos premia com preciosas informações, e descrições dos processos que permitiram àqueles homens fabricarem todos os itens essenciais à sua sobrevivência, utilizando os recursos naturais que abundavam na ilha.
Naturalmente, essa é só uma parte da história. Enquanto vão descobrindo os territórios, as maravilhas, a fauna e a flora da Ilha Lincoln – que eles assim batizaram em homenagem ao revolucionário presidente americano que, naquela altura, tentava obter a liberdade dos escravos em sua nação –, os personagens também percebem qualquer coisa de sobrenatural ocorrendo na ilha.
Resumindo brevemente os acontecimentos estranhos e inexplicáveis (e economizando nos spoilers): o cão que os acompanha, de tempos em tempos, demonstra certa inquietação ao redor do poço no corredor da muralha granítica, por onde outrora as águas do lago se precipitavam para o mar, e que, mesmo depois de ter sido explorado, não parecia conter nada de anormal; uma bala de chumbo é encontrada na carne de um animal que eles caçaram, quando os colonos já tinham determinado que estavam sozinhos ali, e sem nenhuma arma de fogo, e por mais que eles procurassem, não encontraram qualquer vestígio de presença humana na ilha; uma misteriosa caixa, possivelmente resto de um naufrágio ocorrido nas imediações da ilha, contendo itens preciosos aos colonos, como mapas, ferramentas, utensílios, armas e munição aparece certo dia na praia, sem que eles consigam detectar qualquer outro vestígio do suposto naufrágio; uma caixa com medicamentos imprescindíveis para a cura de um dos colonos a certa altura da história aparece misteriosamente dentro da residência onde os colonos se abrigaram na muralha granítica. Sem falar no misterioso salvamento do engenheiro, que ele não faz ideia de como aconteceu, e uma fogueira acesa certa noite por nenhum dos membros da colônia. Entre outras coisinhas que se eu relacionar servirão como spoilers.
Tudo isso parece evidenciar uma presença, no mínimo, sobrenatural protegendo e auxiliando os colonos da Ilha Lincoln.
A revelação desse mistério não será surpresa a quem, por qualquer meio, já teve contato com as obras de Verne – seja por filmes ou representações e citações das obras dele em séries de TV.
Apesar disso, o livro ainda guarda mais uma surpresa para o final, quando os colonos correm contra o tempo para escapar a um perigo realmente mortal que, durante quatro anos vivendo na ilha, eles sequer suspeitaram que existisse, e que se materializou sobre eles inesperadamente.
Demais é uma palavra que resume bem A Ilha Misteriosa: o livro é longo demais, descritivo demais, instrutivo demais; também interessante demais e incrível demais.
O livro rememora a trajetória da humanidade em busca do progresso, todos os conhecimentos adquiridos desde a pré-história com a descoberta do fogo, até o início da indústria, com a invenção da eletricidade. Mais do que uma simples aventura, relatando os meios de sobrevivência buscados por cinco “náufragos do ar”, obrigados a dispor somente da natureza e dos conhecimentos que cada um adquiriu ao longo da vida, o livro exalta o ser humano e sua excepcional capacidade de superação, desenvolvimento e sobrevivência, bastando ter apenas disposição para o trabalho, e algum conhecimento sobre como aproveitar os diversos recursos que a natureza dispõe para melhorar sua qualidade de vida. Afinal, os personagens foram lançados nesta Ilha Misteriosa apenas coma  roupa do corpo, e ao longo de sua jornada de adaptação, dada a impossibilidade inicial de serem repatriados, desenvolveram-se como agricultores, pecuaristas, moleiros, engenheiros, pedreiros, ferreiros, vidraceiros, oleiros, químicos, industriais, e até mesmo eletricistas, telegrafistas e médicos. Cada um, a seu modo, enriqueceu a colônia com os conhecimentos que possuía, fossem eles quais fossem, e desse modo, não tiveram necessidade de nada que a civilização pudesse lhes proporcionar, tornando aquele pedaço de mundo, a princípio selvagem, numa colônia tão rica em recursos quanto qualquer outro país da época.
O livro demonstra como o ser humano é capaz de se reinventar e se refazer em sociedade, ou mesmo na falta dela; ser civilizado, apesar dos recursos limitados, mesmo tendo que criar os meios necessários, e também de se reabilitar após terem chegado ao estado mais baixo de sua existência – seja ela física ou moral.
Simplesmente maravilhoso!
É o tipo do livro que, quem conseguir suportar as aparentemente demasiadas descrições, achará impossível largar antes do final, e absorverá grandes aprendizados de sua narrativa.


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