Sempre Haverá Um Novo Dia

em sexta-feira, 11 de janeiro de 2019


Para abrir 2019 com chave de ouro, quero falar sobre um dos meus livros favoritos de todos os tempos.


... E O VENTO LEVOU
Título Original: Gone With The Wind
Autora: Margaret Mitchell
Editora: Itatiaia
Páginas: 962
Gênero: Romance

Sinopse:
Um relato apaixonante sobre a guerra civil norte-americana, a aristocracia sulista que ela abala e transforma, e a coragem de uma mulher que nunca se deixou vencer. Conheça a linda e tempestuosa Scarlett O Hara e o irresistível Rhett Butler, que a ama ao longo de todas as suas provações. Conheça a doce Melanie, o honesto Ashley Wilkes e os muitos outros personagens que habitam a esplendorosa fazenda Tara. Leia a história de amor que já emocionou milhões de pessoas no mundo inteiro, imortalizada na tela pela beleza de Vivien Leigh e o charme de Clark Gable.

EEEEE ❤



Apesar das quase mil páginas, é uma leitura ágil, você não sente o peso das páginas, e lê com tanta voracidade, que quando acaba, você tem a sensação de que não eram duzentas, tão deliciosa que é esta leitura.
O vento, mencionado no título, é uma alusão ao tempo, às reviravoltas do destino, capaz de mudar completamente a vida das pessoas, anulando toda a segurança que pensavam possuir, e colocando-as diante de situações completamente inesperadas.
E o Vento Levou é considerado o maior romance do século XX, muito menos pela parte romântica da história do que pela força de sua protagonista.
Scarlett O’Hara, se não for a melhor protagonista de todos os tempos, ocupa lugar no TOP 3 com certeza.
Se você não leu o livro, nem viu o filme, um aviso: a resenha contém SPOILERS! Não diga que eu não avisei.
Esqueçamos por um momento o rostinho adorável e o carisma de Vivien Leigh, que a interpretou no filme, e nos concentremos na personagem literária.
 

Scarlett era talvez a maior beldade do condado de Clayton, no estado da Geórgia, no início dos anos de 1860. Naquela época, sua família era uma das mais abastadas da região, e Tara, a fazenda de algodão de seu pai, Gerald O’Hara, era uma das mais prósperas do estado. Nada lhe faltava, não havia nada que ela não pudesse ter ou fazer, e a vida era maravilhosa. Seu único desejo não alcançado, então, era o amor de Ashley Wilkes. Embora ela acreditasse fielmente que ele não pudesse resistir aos seus encantos, como ocorria com todos os rapazes do condado, que sempre a cercavam nas festas e churrascos oferecidos por toda a vizinhança, Scarlett conheceu sua primeira desilusão ao descobrir que os boatos sobre o compromisso de Ashley com sua prima Melanie Hamilton eram verdadeiros. Foi justamente num churrasco na fazenda dos Wilkes que o noivado fora anunciado, logo após Scarlett ter se humilhado para o rapaz, declarando seu amor.
A cena humilhante fora assistida, sem que ela soubesse a princípio, por Rhett Butler, que estava de passagem pela região, e fora levado à fazenda dos Wilkes por um dos vizinhos. Naquele primeiro contato, fica clara a relação de franqueza e intenso sarcasmo que marcaria o convívio de Scarlett e Rhett pelos próximos anos.
A decepção de Scarlett com o noivado de seu amado foi tanta, que ela imediatamente aceitou conceder sua mão ao irmão de Melanie, Charles Hamilton, mesmo sabendo que jamais sentiria qualquer afeto por ele. Os casamentos na época estavam sendo realizados às pressas, pois todos os rapazes do condado haviam se alistado para lutar pelo exército Confederado na Guerra de Secessão Americana – aquela em que os estados do norte, industriais, pretendiam libertar os escravos, enquanto que o sul, agrícola, dependente da mão de obra escrava para o trabalho nas plantações, recusava-se a conceder a liberdade aos negros. A questão hoje talvez seja tomada com mais polêmicas do que na época em que aconteceu, mas é importante mencionar dois fatos: segundo a literatura e a História da época nos revelam, a maior parte das famílias escravistas do sul dos Estados Unidos não tratava seus escravos com crueldade, ou com qualquer agressividade, como acontecia aqui no Brasil – ao menos, não se conhecem muitas queixas de negros nesse sentido; a outra questão a ser colocada é que muitos escravos, especialmente os escravos domésticos, aqueles que trabalhavam dentro das casas das fazendas, não desejavam a liberdade, e muitas vezes eram tratados e considerados como parte da família por seus, digamos, proprietários.
E também tem a questão dos interesses políticos, principalmente por parte dos nortistas, em engrossar seus currais eleitorais com os votos dos negros libertos; e a intenção de certos oportunistas – a maioria também proveniente dos estados do norte – de enriquecer rapidamente se apropriando das posses dos sulistas derrotados a preço de banana.
Isto posto, voltemos ao romance. Os casamentos, tanto de Scarlett com Charles, quanto de Ashley com Melanie, foram realizados no correr de dias, e dois meses depois, Scarlett já estava viúva e grávida, pois Charles morrera de pneumonia logo no inicio da Guerra.
 
Este foi um dos detalhes que o filme deixou de lado: Scarlett teve um filho em cada um de seus casamentos, mas no clássico de 1939, a personagem tivera apenas Bonnie, fruto de seu casamento com Rhett Butler. Mas não vamos nos adiantar.
Depois de ter seu filho, Scarlett fora passar uma temporada em Atlanta, na casa da tia de Charles, Pittypat Hamilton, onde também morava Melanie – agora Melanie Wilkes –, esposa de Ashley, a quem Scarlett odiava acima de qualquer coisa, por ter lhe tirado seu suposto grande amor. E esta convivência forçada não ajudara em nada a fazer a moça subir no conceito de Scarlett, embora fosse extremamente gentil com a viúva de seu irmão, e declarasse e demonstrasse um amor fraternal absoluto e incondicional a ela e ao sobrinho.
Durante os primeiros anos da Guerra, Scarlett mal sentiu seus efeitos, exceto por ser praticamente forçada pelas convenções sociais a auxiliar no tratamento dos soldados feridos e doentes no hospital de Atlanta – assim como todas as mulheres casadas ou viúvas que viviam na cidade. E foi durante este período que a mocinha estreitou os laços com Rhett Butler, mas não de uma maneira romântica. Nasceu entre eles uma amizade considerada estranha por muitos, pois ela, ainda de luto pelo marido, não devia se expor demais, para não dar vazão aos mexericos, mas frequentemente concordava que Rhett a colocasse em situações comprometedoras – uma das minhas passagens favoritas do livro é quando Scarlett está auxiliando na quermesse beneficente, organizada para arrecadar fundos para financiar os soldados Confederados na Guerra. Embora gostasse desse tipo de evento, Scarlett estava infeliz, pois o luto forçado pelo marido não permitia que ela se divertisse na festa. Então, quando os anfitriões organizaram um leilão, em que os cavalheiros poderiam oferecer uma soma em dinheiro em troca de uma dança com uma das senhoras ou senhoritas presentes, Rhett Butler ofereceu o lance mais alto da noite – uma quantia obscena – por uma dança com a Sra. Hamilton (Scarlett). Todos lhe alertaram de que ela não estava disponível, pois estava de luto, e não lhe convinha dançar, mas Scarlett, na mesma hora, se apressou em aceitar o convite. “Tudo pela Causa”, naturalmente...
Por aí já se pode ter uma ideia da personalidade de nossa protagonista. Scarlett não se intimidava pelas convenções sociais que tentavam mantê-la numa coleira, e a única pessoa que conseguia ler sua expressão, e perceber que ela estava acima de todo o recato, de toda a cortesia, e dos limites forçados pela sociedade era Rhett. Ele era o único que realmente a conhecia, que realmente a entendia, e com quem ela não precisava fingir gentilezas ou pudores, com quem ela podia ser totalmente franca, e que a incentivava a ser. Aliás, ele próprio era considerado um pária pela maioria dos cidadãos, não só de Atlanta, mas de todo o estado da Geórgia, pois fora expulso de casa pelo pai, deserdado, conseguiu sua fortuna como jogador de cartas, fazendo negócios ilícitos, e mais recentemente, como atravessador do bloqueio, que impedia que mercadorias chegassem ao sul pelo mar. Apesar de necessitarem de seus serviços como atravessador, isso não impedia que a sociedade o visse como parte da escória – o que, por si só, já demonstra a hipocrisia que regia a sociedade daquele tempo.
É nos últimos meses da Guerra que a força de Scarlett finalmente é exigida, e revelada em toda a sua plenitude. Forçada a abandonar Atlanta, quando a última guarnição do exército Confederado é vencida no arredores da cidade, com o exército ianque – nortista – vindo tomar a cidade, com Melanie extremamente debilitada em suas mãos, e praticamente sem ter a quem recorrer. Naquele dia, ela precisou auxiliar Melanie a trazer o filho de Ashley ao mundo, sem a ajuda de um médico ou parteira, pois os primeiros estavam muito ocupados com os soldados feridos e agonizantes que chegavam em comboios pela ferrovia, e as mulheres se apressavam a deixar a cidade, antes que os ianques a invadissem. Todos sabiam que a vida de Melanie estava em risco por causa daquela gravidez, e Scarlett, embora não deixasse transparecer à cunhada, não se importaria que ela morresse, deixando o caminho livre para que ela reconquistasse Ashley. No entanto, apesar de não sentir qualquer afeto por ela, Scarlett pediu ajuda a Rhett para conseguir uma carroça e um cavalo para levar Melanie, as duas crianças – seu filho Wade, e o bebê da rival –, e Prissy, a escravinha que tinha ficado com elas para Tara. Fazia pouco tempo que ela havia recebido uma carta do pai, informando que sua mãe e as duas irmãs estavam com tifo – febre tifoide naquela época matava mais que a dengue hoje em dia, e era quase tão grave quanto a peste negra na Idade Média –, e se não fosse pela inconveniente gravidez de Melanie, ela teria partido para Tara há muito tempo.
E é a partir daí que sua força começa a ser exigida, pois Rhett roubara uma carroça e um cavalo, ambos muito debilitados – mas foi o melhor que conseguiu arranjar naquele momento de êxodo da cidade –, e somente as acompanhou por um pedaço do caminho, afirmando que finalmente se alistaria no exército, e lutaria por aquela Causa que, desde o começo, ambos consideravam perdida, e não davam a mínima.
Daquele ponto em diante, Scarlett teve que prosseguir sozinha, com Melanie quase morta na carroça, três crianças assustadas – pois Prissy não passava de uma menina naquela altura –, uma carroça a ponto de se desmontar, um cavalo prestes a morrer, e somente a pistola de Charles para protegê-las dos ianques, dos desertores e de qualquer criminoso que pudesse surpreendê-las na estrada. Mas neste ponto, Rhett estava certo ao dizer: “coitado do malfeitor que se atravessar em seu caminho”, pois ele sabia que Scarlett era capaz de tudo, inclusive matar, o que de fato fez, algum tempo depois, atirando na cara de um ianque que invadira a fazenda.
Ao contrário do que esperava, porém, Scarlett não se sentiu segura ao chegar em Tara. Sua mãe havia morrido no dia anterior, o que a deixou desolada; suas irmãs melhorariam, mas o pai estava desorientado, e pareceu ter conservado a razão somente até sua chegada, e ao transferir o fardo de cuidar da família para os ombros da filha mais velha, entregou-se ao desvario.
Naqueles tempos, Scarlett enfrentou os maiores horrores que poderiam se abater a qualquer pessoa, mas especialmente a uma mulher do século XIX, que crescera no luxo, e nunca conhecera a pobreza, ou se preparara para enfrentá-la. Tara era uma das poucas fazendas que não haviam sido completamente destruídas pelos ianques, mas os campos de algodão e toda a colheita dos últimos anos fora queimada. O prejuízo era enorme, e a família estava passando fome. Forçada pelas circunstâncias, Scarlett não se intimidou em roubar qualquer coisa de comer que ainda crescesse nas hortas das fazendas abandonadas, cultivar a terra com as próprias mãos, e colher o pouco algodão que restou, na esperança apenas de colocar comida na mesa, tendo em casa onze pessoas em suas costas – duas crianças, quatro escravos, três mulheres doentes e o pai enlouquecido, além dela mesma.
Nunca havia comida suficiente para todos, ninguém se alimentava como devia, o trabalho era exaustivo, e ainda havia o perigo constante de que os ianques retornassem para tomar o pouco que lhes restou e destruir a casa.
Com o fim da Guerra, o alívio não veio. Ashley, que àquela altura elas não sabiam se estava vivo ou morto, apenas tinham notícias de que ele fora preso no norte, retornou, mas não foi de ajuda alguma. Era um janota, um estudioso, mas como fazendeiro ou trabalhador braçal era imprestável. A verdade é que Scarlett sozinha valia pelos três homens da casa com sobra. E com a débil ajuda de Melanie – que tinha boa vontade e disposição, mas uma saúde extremamente fragilizada –, conseguiu ir tocando a vida, nos meses seguintes. Até que os ianques que agora estavam no poder no sul, apoiados por sulistas corruptos, aumentaram os impostos sobre Tara a uma quantia exorbitante, que Scarlett simplesmente não tinha de onde tirar. A não ser...
Assim, tomada por uma ideia salvadora, mas completamente imoral, Scarlett decidiu retornar à Atlanta e recorrer mais uma vez a Rhett Butler; casar-se com ele, se fosse necessário, apesar de ele ter deixado claro havia muito tempo que não tinha pretensões de se casar com ela, nem com quem quer que fosse. Isso foi dito na mesma época em que ele lhe propôs que fosse sua amante. Quando a proposta foi feita, Scarlett se ofendeu, menos pela moral, que pela perspectiva de ter um monte de filhos indesejados. Agora, quando nenhuma alternativa lhe restava, ela estava disposta a ceder e aceitar sua proposta indecente se ainda estivesse de pé, contanto que ele desse o dinheiro para salvar a fazenda.
Mas por causa de circunstâncias imprevistas – Rhett na prisão, correndo risco de ser enforcado, e impossibilitado de acessar suas contas, sob o risco de ter todo o seu dinheiro confiscado –, Scarlett teve que recorrer a outro artifício, talvez mais baixo que tornar-se concubina do homem mais odiado da Confederação: roubar o noivo de sua irmã, Suellen, que na época prosperava, com uma loja em expansão, e planos de adquirir uma serraria – com a cidade em Reconstrução, o comércio de madeira era tão seguro quanto lucrativo.
E foi assim que Scarlett se casou com Frank Kennedy, outro homem que ela não amava, mas que acabou sendo sua salvação naquele momento.
Apesar de não ter afeto pelo marido, eles se davam bem. Pelo menos, até Scarlett decidir comprar pessoalmente a serraria em que Frank estava interessado – com o dinheiro que, agora sim, pegara emprestado com Rhett –, e colocar a mão na massa para garantir o êxito do negócio, o que mais uma vez chocou toda a sociedade de Atlanta. Era inconcebível que uma mulher trabalhasse naquela época. Se ela fosse viúva, sozinha, e começasse um negócio doméstico, vendendo tortas, costurando ou vendendo bordado, vá lá... Mas Scarlett tinha um marido que podia sustentá-la, portanto sua conduta era considerada um escândalo.
Mas Scarlett nunca se importou com a língua ferina dos cidadãos sulistas, e não apenas geriu pessoalmente seus negócios, como prosperou mais do que a maioria dos homens, todos bem nascidos, e tão despreparados quanto ela para aquela nova realidade de pobreza e desamparo.
Sua prosperidade, aliás, foi o que mais irritou o povo de Atlanta. E o fato de sair sozinha pela cidade, desprotegida, com tantos patifes tocando terror naquela época, fazia com que as pessoas a criticassem ainda mais. E contratar a mão de obra barata de detentos para trabalhar nas serrarias colaborou menos ainda para melhorar sua reputação.
Assim como casar-se com Rhett um ano após a morte de Frank Kennedy – cuja culpa, a maioria das pessoas atribuía a ela. E mesmo assim, ela não se intimidou. Scarlett nunca se importou com falatórios. Contanto que tivesse dinheiro no bolso e comida na mesa, pouco lhe importava que as pessoas não gostassem dela. Teria, aliás, muito prazer em mandar todos para o inferno. E se fosse necessário se associar aos aventureiros ianques, aos novos-ricos recém-chegados à Atlanta, e à escória sulista para conseguir bons negócios, pois que seja.
Eu disse lá no início da review que E o Vento Levou não focou na vida romântica de sua protagonista; isso, porque Scarlett na verdade não dava importância a qualquer romance. Era uma mulher prática. Sua paixão era pelo dinheiro, por se distanciar o máximo possível da pobreza e dos dias duros que vivera em Tara devastada no fim da Guerra. Quanto ao romance, Scarlett continuou martelando na tecla de que sempre amaria Ashley Wilkes, não importava o que acontecesse, ou o que o destino lhe fizesse. O assunto não vinha à tona de minuto em minuto, mas através da história, estava lá: com a mais ou menos confissão de que ele correspondia, mas que sua honra e lealdade à Melanie jamais lhe permitiria ser infiel à esposa, e em todas as conversas sem sentido que tiveram ao longo dos anos.
E, sim, reafirmo: conversas sem sentido. A relação de Scarlett com Ashley parecia um diálogo entre um árabe e um chinês, cada um falando em sua língua nativa. Enquanto ele falava por enigmas, utilizando metáforas filosóficas e poéticas, Scarlett era literal, e não compreendia metade do que ele tentava lhe dizer. Nunca houve paixão nos diálogos desse casal, nunca houve química entre os personagens – e quem está acostumado a ler romances sabe que é perfeitamente possível sentir a química entre os personagens no papel, tanto quanto entre os atores num filme.
O único homem com quem Scarlett realmente tinha química era Rhett. Pena que ela era tonta demais para perceber... até ser tarde demais.
O fim da pobreza não significou, absolutamente, o fim de suas provações. Desentendimentos com o marido, o acidente que a fez perder o quarto filho, o repúdio e o isolamento social, a obsessão por Ashley, e finalmente a morte de Bonnie, sua filha com Rhett, foram mais destruidores do que todas as provações que ela passou naqueles meses de extrema pobreza em Tara.
E ainda lhe faltava o golpe final: a morte de Melanie.
Scarlett não gostava da cunhada. A culpava por ter ficado entre ela e Ashley, considerava sua conduta tola, gentil demais até com quem não merecia, inocente, e ela foi, durante toda a narrativa o alvo preferido de seu desdém. Mas de vez em quando, Scarlett era obrigada a reconhecer as virtudes de Melanie: sua bondade e sua gentileza incansáveis, sua tranquilidade diante das adversidades, sua fé nas pessoas, e até mesmo sua coragem, que aparecia nas horas mais necessárias, e quando menos se esperava. Como na ocasião em que Scarlett matara o ianque que invadira sua casa. Melanie, ouvindo a agitação, empunhou a espada que fora de seu pai, e correu para auxiliar e possivelmente salvar Scarlett, sem saber que ela já tinha resolvido tudo. Houve momentos em que a própria Scarlett precisou reconhecer que Melanie valia seu peso em ouro.
Mesmo diante das fofocas sobre uma possível infidelidade de Ashley com sua cunhada, Melanie não acreditou numa palavra – talvez por nunca ter suspeitado de seus sentimentos; talvez porque conhecia seu marido melhor do que Scarlett supunha; ou talvez porque ela fosse, de fato, tão ingênua quanto Scarlett pensava –, e a defendeu diante de todos, inclusive rompendo relações com a irmã de Ashley, Índia, a principal disseminadora da fofoca.
Scarlett e Ashley eram, de fato, inocentes naquela ocasião, mas nem Rhett acreditava nisso.
E quando soube que ela estava morrendo, Scarlett finalmente se deu conta de que em toda a sua trajetória, Melanie havia sido seu porto seguro, sua única amiga, a única pessoa que ficou ao seu lado no melhor e no pior, mesmo quando ela estava disposta a abrir mão da própria honra para alimentar a família; e por que não dizer, Melanie era sua única família, a única que lhe restava, além dos dois filhos. E foi só nessa hora angustiante que ela se deu conta do quanto amava Melanie, e se arrependeu de algum dia ter desejado sua morte.
E agora já não tinha razão para desejar, pois já se dera conta de que seu amor por Ashley fora um engano, a que ela se apegou obsessivamente por tantos anos, ignorando o único homem que realmente a amara, e a quem ela entregou seu coração tarde demais: Rhett.
 
O livro é considerado a maior história de amor do século XX, mas, na minha opinião, não é a história de amor entre um homem e uma mulher; não é o romance entre Scarlett e Rhett que realmente move a trama de Margaret Mitchell – esta é a segunda razão para a obra ser tão idolatrada. Esta é a história de amor – e de ódio – entre duas mulheres tão diferentes, que de certa forma mediram forças durante anos, fortalecendo uma a outra durante anos, uma movida por seu amor incondicional pela suposta amiga, e a outra, movida pela raiva, mas também pelo desejo de honrar a promessa que fizera ao seu suposto amado, de que cuidaria da esposa dele em qualquer circunstância. A lealdade de Melanie à Scarlett só não foi maior que o desdém da amiga por ela. Mas no fim, quando teve que pesar o coração e fazer um balanço de sua trajetória, Scarlett teve que reconhecer o quanto precisava de Melanie, o quanto ela era importante em sua vida, e o quanto amava aquela amiga que por tanto tempo se forçou a odiar. E mesmo antes disso, quando era Scarlett quem estava enferma, ao perder o bebê que esperava, Melanie foi o único nome que ela chamou em seus delírios. Ela não pensou em Rhett. Não pensou em Ashley. Não procurou por Mammy, sua babá, a quem considerava sua segunda mãe. Ela somente procurou o consolo e a segurança de Melanie.
 
Acho que no fim das contas, essa foi a grande história de amor que o livro narrou. Não era um amor romântico, não chegou a ser nem mesmo um amor fraternal – ao menos, não mutuamente –, mas é notório que o amor mais genuíno na vida de Scarlett O’Hara fora Melanie Hamilton – aquela a quem um dia ela considerou sua inimiga.
Mas até esse amor o vento levou. E Scarlett ficou só com sua esperança e sua determinação; a convicção inabalável de que “amanhã será um novo dia”. E nele tudo pode acontecer.


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