Por Verônica
Lira
Conta-se
que o nome da dama era Elena. Viveu na Inglaterra no século XVIII, e foi esposa
de um marquês. Este, embora um homem íntegro, não era o ideal que ela
procurava. De fato, o marquês passava mais tempo com seus amigos políticos e
com suas amantes do que com a esposa, e isso a deixava muito entediada.
Em
contrapartida, ele cedia a todos os caprichos dela. Dava-lhe tudo o que pedia:
os melhores vestidos, as joias mais caras, um pedaço de terra murada para
plantar o jardim grotesco de plantas exóticas que ela garantira ao marido que o
jardineiro não saberia cuidar, por isso ela própria cuidava... Deu-lhe até um
valete! Este não era um luxo comum às damas. Geralmente os valetes só serviam
aos senhores. A não ser que se castrasse o valete. Mas, por alguma razão
incompreensível, o marquês não estava preocupado.
O
moço fora escolhido a dedo. Thomas era jovem e agradável, e apesar do que ela
tenha feito parecer, não era um mero acaso ele ser um jovem atraente.
Um
dia, Elena, entediada e frustrada com uma ausência inesperada do marido, que
partira em viagem à Escócia, dispensou todas as criadas. Apenas Thomas
permaneceu em serviço. Ela esperou até que fosse noite alta, e todos na casa
fossem envolvidos pelo sono mais profundo, para chamar o valete ao seu quarto.
Mesmo
numa época em que a hipocrisia oferecia um delicioso espetáculo à sociedade
moralista, uma mulher se servir do valete como um homem se serve de uma
meretriz era um escândalo ao qual nenhum mortal poderia sobreviver. Mas Elena
não era qualquer mortal.
Certa
vez, quando ainda estava sendo cortejada pelo marquês, alguém deixou escapar em
tom zombeteiro num jantar social que Elena era uma feiticeira. O comentário
viera de seu próprio irmão, e arrancou risos de todos os presentes. O próprio
marquês achara divertido dizer-lhe ao pé do ouvido, num breve instante em que
ficaram a sós no saguão, que estava apaixonado por uma feiticeira.
Aquela
era uma mentira, é claro. Elena estava certa de que o marquês jamais a amara de
verdade. Apenas fazia bem ao seu ego masculino ter uma esposa tão jovem e bela,
visto que sua idade já se avançava.
As
pessoas nunca aprendem a tempo quantas verdades são ditas em meio a sorrisos
marotos. Outro comentário comum que se fazia em tom de zombaria na corte era
que Elena hipnotizara o marquês, e que seria capaz de hipnotizar toda a
sociedade de Londres se lhe fosse conveniente. A este comentário ela apenas
respondia com um sorriso misterioso.
Durante
várias noites, mesmo depois do regresso do marido, ela recebeu o valete em sua
alcova. Aquela casa era tão grande que as coisas aconteciam debaixo do nariz do
marquês e ele não percebia. Até o dia em que ele os flagrou. Mas aquela foi uma
noite confusa. Ele estava ébrio, e as imagens eram tão obscuras em suas
lembranças que ele não estava certo de ter visto ou imaginado o valete no leito
de sua esposa. Talvez fosse ele próprio o homem no leito dela, na ânsia do
amor, sentindo-se jovem como o valete.
Pela
manhã, ao acordar, ele a viu ao seu lado, o que o fez crer, mais do que por
qualquer outro motivo, que imaginara o valete no quarto.
E
pelas semanas seguintes, o marquês voltou a sua rotina de embriaguez social,
discussões políticas e orgias com meretrizes. Às vezes, às vistas das pessoas,
era como se Elena não existisse, já que o marquês tão facilmente a ignorava.
Enquanto
isso, as noites de Elena se perdiam em beijos febris, amores convulsos, e
sussurros levianos. Passado algum tempo ela parecia já haver se esquecido de que
o rapaz que a possuía todas as noites era somente um valete, e ele, que à
princípio se chegou cheio de pudores, temendo as consequências se fosse
apanhado novamente na cama de sua senhora, agora a tomava como um homem
apaixonado toma a donzela de seu deleite.
Tornou-se
comum Elena ser vista no teatro acompanhada do valete, uma vez que o marido não
dava grande importância aos espetáculos públicos. A cena causava espanto a
alguns conservadores. As mulheres se escandalizavam, sobretudo que o marido
permitisse que Elena desfilasse perante a sociedade pelo braço de outro homem. Os
cavalheiros, no entanto, tinham outra visão do jovem valete: “Teve o membro
amputado, por certo”, diziam alguns. “É efeminado”, zombavam outros. A maioria
parecia divertir-se mais que escandalizar-se com a situação.
Certa
noite, Elena sorveu o veneno do ódio diretamente dos lábios do marquês. Era uma
das raras ocasiões em que ele se lembrava que tinha uma esposa, e em vez de
amá-la como deveria, a tomava como por mera obrigação de marido, geralmente
ébrio e frio como um homem que se casa com uma megera e se torna frígido como
ela.
Num
gemido infame, o marquês a chamou de Iolanda.
Iolanda.
A esposa do primeiro-ministro. A dama de olhos safira que todos os homens da
corte cobiçavam. A mulher com quem o marquês passava as tardes em delírios
febris.
Elena
não reagiu, e o marquês pareceu não ter percebido a própria confusão. Mas ela
guardaria aquele nome.
Não
foi uma ideia repentina. Há algum tempo Elena já vinha pensando nisso. Seu caso
com o valete não era simples vaidade de mulher desprezada pelo marido. E não
lhe agradava a ideia de passar toda a vida tendo encontros furtivos com o rapaz
em sua alcova. Poderia conter a fúria do marquês se descobrisse, mas não queria
se obrigar a usar mais uma máscara.
De
madrugada, enquanto o jovem valete dormia em seu leito, Elena se levantou e foi
até seu jardim particular. A porta ficava sempre trancada, e o próprio
jardineiro preferia não entrar ali. Dizia que o lugar parecia mais um panteão
que um jardim. Algumas daquelas plantas tinham um odor repugnante, e outras,
nem mesmo o jardineiro sabia dizer de que espécie eram.
Elena
colheu algumas ervas de um vaso no meio do jardim, e amassou-as ali mesmo na
pedra de uma mesa redonda. O pó daquelas ervas parecia se dissolver ao mínimo
toque, e não possuía cheiro.
A
criadagem dormiu mais do que de costume naquela manhã, e quando começaram o
serviço, uma criada sentiu um odor peculiar de chocolate na cozinha.
Ninguém
notou particularmente o avançado da hora, e todo o dia discorreu normalmente no
palacete do marquês, até o princípio da noite, quando Elena fez questão de
servir pessoalmente o licor habitual do marido na alcova dele.
Havia
algo estranho em seus modos naquela noite. Elena estava carinhosa com o marido,
e muito mais sedutora que de costume, como se de repente adivinhasse todos os
delírios insanos do velho devasso e quisesse assomá-los a outros ainda mais
infames.
O
marquês sorveu o licor todo num gole, e completamente possuído de desejo bebeu
nos lábios dela beijos intensos que jamais cobiçara. Elena alimentava a paixão
do marquês como a lenha que alimenta o fogo, e embora ela não tenha ficado mais
do que dez minutos no quarto dele, lá dentro, era como se as horas discorressem
no mais intenso desvario.
A
certa altura, sem saber se a dominava ou se era dominado por ela, o marquês
deitou a esposa no leito, as faces febris, e os olhos ardendo de paixão. Elena
apertou-o em seu peito. Estava usando o perfume de rosas de suas núpcias,
aquele odor que as ninfas e as deusas conceberam para inebriar os sentidos mais
fracos dos pobres mortais. O marquês inspirou profundamente aquele perfume;
deixava-lhe louco.
Num
lampejo de desvario, as luzes das velas no quarto pareceram oscilar ao som de
tecido rasgado. Os olhos do marquês se dilataram como que perdidos nas órbitas.
Havia uma expressão dolorosa em seu rosto; dor misturada à insanidade.
Outro
som fez as luzes oscilarem novamente, mas já não era mais o tecido. Agora era a
carne que se rasgava. O olhar desvairado do marquês se intensificou, enquanto o
cheiro metálico de sangue inundava o quarto.
De
repente ele caiu sobre o peito dela. Elena ofegou um instante, empurrando o
corpo do marido para um lado. Ergueu a lâmina da adaga embebida no sangue do
marquês diante dos olhos. Aquela seria a única testemunha infame de seu
crime... ou favor. Não podia ter dado àquele homem devasso morte mais prazerosa:
arrancando sua vida em delírios no leito de sua luxúria.
Da
alcova do marido, a marquesa foi direto para os braços do valete. Ainda havia
sangue em suas mãos quando deixou o quarto, mas lavou-as numa tina antes de
entrar na própria alcova. Depois de uma vigília velada em perdição, Elena viu o
valete adormecer ao seu lado e tornou a se levantar.
Os
lençóis do marido estavam banhados em sangue quando retornou ao quarto dele.
Fez deles um saco para envolver o cadáver do marquês e arrastou-o até a
carruagem. Era curioso que o cocheiro não se lembrasse de nada que acontecera
naquela noite, como se tivesse dormido e tido sonhos nebulosos até o amanhecer.
Naquela
manhã, Elena vestiu Thomas com as roupas de seu marido, e pediu que lhe
acompanhasse no desjejum, e se sentasse à mesa no lugar que era do marquês.
Nenhum dos empregados pareceu notar qualquer coisa estranha naquela cena.
Mais
tarde foram notificados por um mensageiro sobre a morte da esposa do
primeiro-ministro. A dama havia se queixado de um mal-estar no dia anterior e
foi se deitar. Pensaram que ela estava apenas repousando, até que a criada a
encontrou morta no quarto.
Quando
chegou ao palacete do ministro para o funeral de Iolanda, de braços dados com
Thomas, a quem ela dera os trajes do marquês, Elena exibia um profundo olhar de
resignação.
Sua
entrada conquistou a atenção de todos os presentes, e interrompeu o relato do ministro
sobre a suspeita de que Iolanda tenha sido envenenada, pois o mal-estar começou
após ela ter degustado alguns bombons que recebera naquela manhã. Apertaram o
moleque que os entregou, mas ele insistia em dizer que não se lembrava de quem
os enviara.
Outro
fato curioso que era comentado no palacete no momento da chegada de Elena, era
a respeito de um homem que fora encontrado morto na viela atrás da taverna, com
o peito rasgado. Na certa, resultado de uma confusão provocada pela embriaguez,
mas ninguém se lembrava de já tê-lo visto antes.
No
entanto, o que deixou Thomas mais perturbado ao adentrar o palacete foi o
anúncio do arauto. A princípio, pensou tratar-se de uma confusão motivada pelo
momento fúnebre. Mais tarde, porém, ele se perguntou por que toda a sociedade
de Londres, de repente, passou a chamá-lo de marquês!
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